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O LIBERALISMO COMO TEORIA DO ESTADO DE SOBERANIA LIMITADA E COMO TEORIA DA PARTICIPAÇÃO REPRESENTATIVA

1. Emergência histórica do liberalismo

Segundo Francisco VERGARA (2002: 3-4), o liberalismo é um projecto económico, social, político, cultural e religioso, cuja construção teórica se sistematiza a partir do início do Século XVII 1, baseada na defesa:

1) da liberdade individual e do individualismo 2 contra a ideologia holista

dos autoritarismos e dos totalitarismos, ideologia esta que «valoriza a totalidade social e negligencia ou subordina o indivíduo humano» (Louis DUMONT, 1983: 272);

2) da afirmação inequívoca do indivíduo e dos seus direitos e, por isso, também da Sociedade Civil face ao Estado;

1 Como veremos, o pensamento filosófico, social, cultural e religioso, contribuinte para o liberalismo, é

anterior ao Século XVII, sobretudo o derivado da Reforma, da dessacralização das ciências, do experimentalismo científico, do sensualismo artístico, do humanismo da cultura, estando vinculado ao humanismo, ao naturalismo e ao experimentalismo renascentista dos Séculos XIV a XVI. Do mesmo modo, também a acção política no contexto dos diferentes poderes intermédios, baseados nas comunas, nas corporações, ducados e condados, herdados da Alta Idade Média, e no contexto da emergência, a partir do Século XIII, da nova classe burguesa, o são.

Porém, em termos de sistematização da teoria política, é no Século XVII que ela começa a desenvolver-se. Entre os principais contribuintes para o liberalismo inicial, neste século, entendemos dever referir: na Alemanha, João Althussius (1603) e Samuel Pufendorf (1672 e 1673); na Holanda, Hugo Grócio (1625) e Baruch Espinosa (1674 e 1677); na Grã-Bretanha, Oliver Cromwell (1653), Anthony Shaftesbury, autor da teorização do Bill of Habeas Corpus (1670) e John Locke (1690). O movimento das ideias políticas liberais consolidar-se-ia ao longo dos Séculos seguintes. Parecem-nos de referir: na Grã-Bretanha, Bernard de Mandeville (1714), Henry Bolingbroke (1733 e 1738), David Hume (1738 e 1752), Adam Smith, (1759 e 1776), Jeremy Bentham (1776 e 1789), Edmund Burke (1789), James Mill (1821), John Stuart Mill (1848, 1859, 1861, 1863, 1869), Henry Sidgwick (1883, 1886 e 1891) e Georges Moore (1873-1958) ; na França, Francisco Voltaire (1740 e 1765), Charles de Secondat, Barão de Montesquieu (1748), Stephane Condillac (1754, 1756 e 1776), Cesare Beccaria (1764), Roberto Turgot (1775); António Caritat (Marquês de Condorcet, 1790), Emanuel Sieyès (1789 e 1792), Benjamin Constant (1806, 1814, 1815, 1819), Alexis de Tocqueville (1835, 1840 e 1856); na Alemanha, Christhian Wolf (1758), Carlos Humboldt (1792), Emmanuel Kant (1781, 1784, 1785, 1795), Guilherme Hegel (1821 e 1836) e Robert Michels (1912); nos EUA, Thomas Jefferson, Alexander Hamilton e James Madison (1787), Milton Friedman (1980 e 1982), John Rawls (1971); Robert Nozick (1974); na Áustria, Joseph Shumpeter (1927, 1942 e 1946) e Friederick Von Haiek (1974).

2 Com efeito, os dois conceitos andam correlacionados, como veremos, na formação sócio-política da

modernidade. Esta relação emerge desde os alvores da modernidade mas afirma-se particularmente com os estudos sobre a economia política associada à valorização dos egoísmos utilitaristas como motores de progresso económico e social (Anthony Shaftesbury, 1711; Bernard de Mandeville, 1714; Adam Smith, 1759). Depois, no início do Século XIX, esta relação é elevada por Benjamin Constant (1819) e por Alexis de Tocqueville (1835) à categoria de fundamentação sociológica da natureza da organização política liberal democrática, porque exigida pela «liberdade dos modernos» contra a «liberdade dos antigos» (Benjamin CONSTANT, 1819), pela igualdade de condições face à perda do «tutor» do autoritarismo (Tocqueville, 1835), e porque «valor cardinal das sociedades modernas» (Louis DUMONT, 1983: 28).

3) da tolerância 3 e pluralismo de pensamento económico, social, cultural,

político e religioso;

4) da liberdade de iniciativa, circulação e organização na acção civil; 5) da propriedade e da segurança individuais;

6) do direito à vida e à inviolabilidade física;

7) da valorização dos egoísmos e dos interesses pessoais como motores da iniciativa e das relações sociais 4;

8) da prevalência da Sociedade Civil sobre o Estado, prevalência constituída a partir da construção de uma ordem social acordada, instituída ou consentida pelos membros da Sociedade que, para o efeito, instituem o Estado e a sua organização, plasmando-a numa Declaração de Direitos e de Deveres recíprocos;

9) da separação entre assuntos políticos e assuntos civis, salvaguardando o máximo de liberdade de iniciativa e de organização por parte da Sociedade Civil e prevendo o mínimo de intervenção do Estado (Estado Mínimo) nos assuntos civis (economia, religião, cultura, relações sociais, educação, etc.); e

10) da consagração dos direitos naturais do homem como direitos fundamentais (vida, propriedade, segurança, liberdade de iniciativa, expressão, organização, actividade económica, cultural, social, religiosa, etc.) para que a organização social se baseie na competição e coordenação entre interesses, valores e ideias, de modo a que os «melhores» e mais bem apetrechados conduzam os destinos da

3 Embora o apelo inicial tenha sido de John Locke, em Carta sobre a Tolerância, é de salientar que

Franscisco VERGARA (2002: 5-6) refere que o uso do termo «liberal» aparece em Espanha, aquando das invasões napoleónicas, para designar «(...) les mesures qu`ils proposaient (Jefferson et Turgot), telle l`abolition de l`esclavage, des corvées, de la torture, etc., étaient ressenties comme

généreuses (qui est le sens initial du mot «libéral (...).».

4 Michel TERESTCHENKO (58-60) considera que esta valorização está na origem do liberalismo

económico, origem, por sua vez, de todo o liberalismo político, e que atravessa praticamente toda a história ocidental e expressa: 1) no «amor de si» e da «libido sentiendi» da Cidade de Deus (426 d.c.), de Santo Agostinho, no Século V, comungados por Blaise PASCAL (1656) e por Pierre NICOLE (1679); 2) na defesa do luxo e dos desejos e interesses dos ricos como processo de ajuda aos pobres, feita no Século XVII por moralistas protestantes como Pierre JURIEU (1686) e Isaac PAPIN (1688) e, no Século XVIII, por Bernard DE MANDEVILLE, na sua Fábula das Abelhas (1714); 3) na exaltação do valor das paixões e dos interesses como motores de motivação e de articulação nas relações sociais, feita por sensualistas como David Hume (1748) e por materialistas como Helvetius (1758) e Holbach (1772); e, 4), na construção teórica, por Adam SMITH (1776) de uma sociedade de mercado, baseada na defesa dos interesses egoístas e das paixões individuais, e auto-reguladora de si própria pela harmonização natural dos interesses, pressupondo uma igualdade de competição e de possibilidades entre os homens e uma limitação quase total do papel do Estado como regulador das relações sociais, em substituição das teorias contratualistas apresentadas por Thomas HOBBES (1652), por John LOCKE (1690) e por Jean-Jacques ROUSSEAU (1762). É de salientar que, quase meio século depois, Benjamin CONSTANT (1819), já no contexto da construção teórica de um liberalismo democrático, defenderá o comércio não só como substituto da guerra mas também como substituto parcial do Estado na construção da ordem social (Cf. Benjamin CONSTANT, 2001, «A Liberdade dos Antigos

Sociedade, e, por isso, possam também vir a ser seleccionados para dirigentes do Estado;

11) da regulação social a partir desta competição na qual o Estado deverá intervir o menos possível, permitindo assim a harmonização natural dos interesses.

A construção teórica do movimento de ideias subjacente ao liberalismo, e também ao futuro Estado Liberal 5 é contemporânea, e também sucedânea, da

instituição do Estado Moderno e é uma das consequências das lutas económicas, sociais, políticas, culturais e religiosas 6 que, principalmente ao longo do século XVI e

5 Torna-se assim necessária a distinção entre Liberalismo e Estado Liberal, entendendo-se por aquele a

corrente das ideias, diversas, e por este o resultado da organização político-administrativa correspondente ao período mais marcante da realização das ideias (António S. FERNANDES (1992 (5- 41); António FRANCISCO de SOUSA (1995: 149 – 152); Georges BURDEAU (s.d.:10, enquanto portador do ideário da democracia liberal e dos fundamentos da participação representativa. Os três autores referidos identificam, para este tipo de Estado, o período 1770- 1918. António FRANCISCO de SOUSA (1995: 149 – 152) divide-o mesmo em três fases. A primeira, a da «Revolução Atlântica», que se inicia em 1770, com a guerra da independência dos EUA e que terminou com o desterro de Napoleão para Santa Helena, e que se caracteriza pela definição legal dos seis princípios básicos do liberalismo, como veremos adiante. A segunda é a fase denominada de «Restauração», um movimento contra os excessos da Revolução Francesa, que vai até à Revolução de Julho de 1830, em França, e que é caracterizado por um regresso a um estado central forte mas respeitando as assembleias representativas. Mas que também é uma fase atravessada por outros movimentos liberais que até dão origem a estados como a Bélgica e a Holanda. E a terceira fase inicia-se em 1830, atingindo o seu auge em 1848, revelando o esplendor da burguesia e do capitalismo a que se vão opor, a partir de então, os sindicatos e partidos socialistas emergentes. No entanto, da nossa análise não resulta que este período corresponda nem à construção nem à implementação de uma ideologia Liberal mas antes de uma ideologia democrático-liberal, dado que muitas das características invocadas para o período são próprias do ideário democrático, designadamente a igualdade perante a lei e a centralização como sua garantia.

6 O liberalismo inglês, designadamente o de John Locke, foi originado pelo movimento contra o

absolutismo inglês dos Stwarts, na segunda metade do século XVII, afirmando e reivindicando a manutenção e a extensão dos direitos que os nobres viram reconhecidos por João- Sem- Terra, em 1215.

Porém, o liberalismo inglês vai muito mais longe, prolongando-se, na sua forma clássica, até finais do século XIX, e tendo como principais referenciais teóricos, na Grã-Bretanha: o liberalismo económico, originado pelo pensamento (1776) de Adam SMITH (1723 – 1790), introduzindo com a sua teoria da sociedade de mercado e da harmonia natural dos interesses; e o liberalismo utilitarista de Jeremy BENTHAM (1748 – 1832), de James MILL (1773 – 1836), e de John STUART MILL (1806 – 1873), filho de James Mill .

Mas o liberalismo utilitarista, enquanto princípio governativo, tende para o princípio da utilidade, isto é, para a satisfação dos interesses e do bem-estar do maior número de pessoas, o que representa uma ruptura com o liberalismo Adamsmitheano da harmonia natural dos interesses, baseado na livre iniciativa e na livre-concorrência, e uma aproximação aos ideais democráticos da igualdade.

Em França, país onde o absolutismo só foi apeado do poder, em 1789, com a tomada da fortaleza da «Bastille» e a consequente deposição da Monarquia, na figura de Luís XVI, também existiram dois movimentos de pensamento liberal: um, anterior à Revolução, e baseado em John Locke, com Carlos de Secondat, mais conhecido por Barão de Montesquieu (1689 – 1755) e Claude-Adrian HELVETIUS (1715 – 1771), preconizando a separação do Poder Legislativo e do Poder Executivo, o primeiro, e do valor da experiência, do prazer e do bem-estar, o segundo; outro, um movimento intelectual de reacção contra o «Terror» e absolutismo, designadamente jacobinista, saídos da Revolução Francesa (1789 –

primeira metade do século XVII, convulsionaram a Europa 7 (Antoni JUTGLAR,

1973: 397-418; Georges BURDEAU, s.d.: 15-36; Norberto BOBBIO, 1989:21-26; Samuel EISENSTADT, 2000: 15-27; Luc FERRY, 2002: 41-42).

Sobretudo na Grã-Bretanha, na Holanda, na Bélgica, na Dinamarca, na Alemanha, na França e na Suíça, foi-se construindo uma nova ordem política, social, económica, religiosa e cultural que, ao valorizar a capacidade racional do ser humano e reconhecendo-lhe capacidade de auto e de co-determinação, lhe colocou nas mãos o poder-dever de dirigir os seus destinos, em vez de os receber passivamente dos representantes de Deus, mas conservando Deus e o humanismo cristão como guias, apesar das diferentes e conflituosas leituras das suas mensagens 8.

O liberalismo é igualmente, de acordo com o pensamento dos mesmos autores, o resultado de um equilíbrio acordado entre os representantes dos diferentes

1798), contra o imperialismo napoleónico (1802 – 1830), e ainda contra os ideais da democracia participativa de Rousseau (1762), que haviam inspirado a aspiração à igualdade, enquanto ideário da Revolução. Este segundo movimento é identificado por isso com o movimento da «Restauração da Monarquia», tendo como principais teorizadores Emanuel SIEYÈS (1748 – 1836), Benjamin CONSTANT (1767 – 1830) e Alexis de TOCQUEVILLE (1805 – 1859).

Na Alemanha, as ideias liberais, enquanto projecto político datam de 1603, início da teorização da autonomia dos lander e das cidades alemãs, com João ALTÚSSIO (1557 – 1638), mas afirmam-se essencialmente em 1792 na obra Ideias para um Ensaio sobre os limites da Actividade do Estado, de Wilhem von HUMBOLDT (1767 – 1835.

Embora confrontado, a partir da segunda metade do século XIX, com: os ideais e reivindicações do movimento operário; com as teorizações do materialismo histórico de Marx e Engels; com os movimentos socialistas democráticos; e ainda com a doutrina social da Igreja Católica, nem por isso a teoria liberal ou teoria da democracia constitucional, no dizer de Norberto Bobbio (1989, Liberalismo y

Democracia), perdeu força, transformando-se, ao longo do século XX, estrategicamente, em teoria da

democracia liberal ou democracia de elites, fundamentadas na teoria da sociedade de mercado e da livre concorrência, em alternativa à democracia social e à democracia participativa, saídas da síntese entre o socialismo democrático e a democracia rousseauneana, para emergir de novo em força, a partir de 1974, após o «Estado Providência» (1946 – 1974) e após a «Guerra Fria» (1961 – 1986). Esta reemergência do liberalismo inicia-se com o Prémio Nobel da Economia, Friederick Von Haieck, dando força ao «Reaganismo» e ao «Thatcherismo» no sentido de preparar o derrube do muro de Berlim, em 1989, e dar início a uma nova «internacional» do liberalismo, a «globalização».

7 A respeito destas lutas, escreve António Francisco de SOUSA (1995: 145- 146): «No plano social e

político assistiu-se a uma intensa luta de classes entre, por um lado, o povo e a já forte burguesia e, por outro, a nobreza e o clero, luta que gerou um grande descontentamento por parte dos menos favorecidos – a generalidade da população – seguido de um forte desejo de mudanças radicais.».

8 É assinalado por vários autores o contributo das utopias religiosas para o novo espírito do liberalismo,

não só do Europeu como do do «Mayflower». Tais contributos encontram-se, designadamente, em Thomas Campannella (1568- 1639), com A cidade do Sol; em Thomas Morus (1478- 1535), com A

Utopia;, e em Erasmo de Roterdão (1467- 1536), com Elogio da Loucura, como também nos

movimentos da Reforma, sobretudo através de Martinho Lutero (1483- 1536), na Alemanha; de João Calvino (1509- 1564), na Suíça; e de Thomas Morus na Inglaterra. Através destes dois movimentos, consagram-se os ideais da liberdade e da autonomia individual na compreensão e adesão à fé e à religião, ao mesmo tempo se afirmando que esta deve estar ao serviço da justiça social e da boa organização do Estado e da Sociedade. Cf. Particularmente Georges BURDEAU (s.d. 10-20).

grupos de interesses e poderes construídos a partir do início do século XIII 9, e os

monarcas herdeiros / usurpadores / substitutos do poder espiritual até então agregador dos Estados e das Sociedades, que havia dominado a Europa entre os Séculos IX a XIII daquela Idade da história europeia, na sequência da instauração da Dinastia Carolíngia, iniciada em 814 D.C.10.

Garantindo uma autonomia económica, política e religiosa relativa face ao poder do Monarca unificador, os representantes daqueles poderes impuseram a instituição de uma ordem política, económica e social que, por um lado, salvaguardava a unidade do Estado, instituído também graças ao «consentimento» deles 11, e que, por

outro lado, lhes garantia o usufruto das suas propriedades e bens, segurança, liberdade de iniciativa e autonomia na administração dos territórios, comunidades, organizações e corporações, face ao monarca.

Este pré-liberalismo representaria pois uma ordem social inicial de liberdade e de autonomia comunitárias 12 face ao Monarca e seu Estado Central, liberdade e

autonomia que estes, ao longo dos Séculos XVI a XVIII, com a construção do Estado-

9 Norberto BOBBIO, (1989: 12 ) localiza o início deste processo na Grã-Bretanha, onde o Rei João-Sem-

Terra teve de negociar, em 1215, com os nobres guerreiros e cavaleiros, um conjunto de privilégios consignados no documento Magna Carta.

10 Com efeito, o primeiro império europeu (no século IX) de que foi principal representante o imperador

Carlos Magno, e tendo como centro a França, só foi possível graças à articulação entre o poder temporal do imperador e o poder espiritual do papado: «(...) le caractère sacré de la royauté ne provient plus du sang (origine divine des familles royales paiennes) mais de l`onction (autorité religieuse: «par la grâce de Dieu»). La conception impériale de CHARLEMAGNE ne se relie pas à la tradition césarienne, mais à une combinaison de paganisme et de christianisme. (...). Le Pape décerne la dignité impériale en tant que «translator imperii». En tant que tuteur de l`église, CHARLEMAGNE revendique la direction suprême de l`État et de l`Église (théocratie). Il a le devoir de veiller sur l`Église à cause de la fonction royale dont il est investi.» ( Cf. Pierre MOUGENOT, 1968: 122).

11 Este conceito não significa essencialmente aceitação do poder instituído mas, sobretudo, acordo no

processo da instituição desse mesmo poder, no seu exercício e no seu controlo. É nestes sentidos que John Locke cria o conceito: «O único meio por onde qualquer se priva da sua liberdade natural, e se liga à sociedade civil, é convindo com outros homens em se juntar e unir com eles em sociedade civil, a fim de haver segurança, paz, e sossego entre eles, e obterem um gozo seguro das suas propriedades, e uma segurança maior contra qualquer que não pertence à mesma sociedade. (...).

Porquanto, quando qualquer número de homens estabelece com consentimento de cada indivíduo uma sociedade civil, eles por esse facto constituem essa sociedade como um corpo com poder de obrar como tal, o que é unicamente pela vontade e determinação da maioria; porquanto, sendo o consentimento dos seus indivíduos unicamente o que dirige a sociedade, que é um corpo só, se mova para aquela parte para onde a força maior o conduz, a qual é o consentimento da maioria: do contrário, é impossível poder obrar, ou continuar a ser um corpo, uma comunidade, em que consentiu cada indivíduo que entrou nela; portanto, todos estão obrigados em consequência desse consentimento a ser governados pela maioria.» Cf. John LOCKE, 1999: 89).

12 Norberto BOBBIO, 1989, Cap. IV, «La libertad Contra el Poder», pp. 21 – 26, deixa clara esta ideia,

já asumida na primeira metade do Século XIX por Jeremy Bentham, de que «Hay una acepción de libertad, y es la acepción preponderante en la tradición liberal, de acuerdo con la qual «libertad» y «poder» son dós términos antitéticos que denotam dos realidades contrastantes entre ellas y por tanto incompatibles: (...).».

Nação e com a centralização do «poder real» foram tentando aniquilar - de vários modos, e por períodos diferenciados, conforme os países -, quer pela força e pela coerção quer pela racionalização e burocratização da vida económica, política, social, cultural e religiosa, dando assim origem ao Estado Absoluto 13.

Como acentua Georges BURDEAU (s.d.: 17- 23), o desenvolvimento do Liberalismo, enquanto teoria política e social, veio a impor-se porque, primeiro, se construiu sobre as ruínas religiosas e sócio-políticas do mundo greco-cristão, a partir da afirmação da liberdade e da razão humana, sobretudo graças ao «cisma» e ruptura religiosos operados pela Reforma Luterana e Calvinista, contexto em que «a reforma aparece como a própria escola do individualismo» (Georges BURDEAU, s. d.: 20) e a liberdade como «libertação em relação a toda autoridade temporal externa ao homem» (IDEM: 21).

Porém, o liberalismo é devedor também da autonomia da razão humana construída pelos movimentos humanistas, científicos e sociais do Renascimento, entre os quais: a valorização da experiência e do naturalismo, por Francis Bacon; a aquisição do método científico por Galileu; a destruição do mito do mundo ordenado, finito e fechado por Copérnico e Galileu; a autonomização do sujeito pensante por Descartes; e a autonomização do sujeito moral por Espinosa.

Estes dois conjuntos de contributos fortaleceram a capacidade de invocar direitos próprios, aproveitados por muitas comunidades e poderes intermédios para se imporem face aos monarcas.

Na Grã-Bretanha, e no final do Século XVII 14, sob a influência teórica de

Cromwell (1648) e de John Locke (1690), os diferentes poderes intermédios venceram relativamente, na sua luta contra os monarcas absolutistas, instituindo assim o Estado Liberal Clássico, de natureza aristocrática, oligárquica e semi-feudal 15, que lhes

possibilitou negociarem com o monarca respectivo a construção política, económica e social do Estado, na base da criação dos Parlamentos e da representação dos diversos interesses aristocráticos e oligárquicos na elaboração das leis e influenciação das políticas governativas 16.

No Continente Europeu, os Monarcas Absolutos e o Estado Central limitaram, em grande parte, e pelo menos até meados do Século XVIII, a ascensão dos

13 É de notar, porém, que o Estado em que o Absolutismo menos durou foi o da Grã-Bretanha (1648 -

1688), precisamente aquele onde os poderes intermédios e o da burguesia emergente eram mais fortes.

14 Mais propriamente com a Revolução de 1688, a que John Locke dá consistência teórica com o seu

Tratado sobre o Governo Civil, de 1690.

15 Característico desta semi-feudalidade é o facto de John Locke, em 1690, considerar normal a

escravatura e a censura. Cf. John LOCKE, 1999: 77- 87).

16 Mesmo na França absolutista de Luís XV e de Luís XVI, as leis tinham de passar pelo Parlement

(órgão jurisdicional), para serem ratificadas ou devolvidas pelos parlamentares, que eram os nobres. O acto de ratificação consistia no registo das leis e dos regulamentos; o acto da recusa consistia na sua devolução ao Rei. O impasse só era ultrapassado com a presença do Rei no Parlamento para justificar os actos legislativos e regulamentares. Por isso, uma das principais causas da Revolução Francesa terá sido a perda de privilégios pelos nobres, quando Luís XV, em 1771, suprimiu o Parlement e Turgot, em 1775, lançou o imposto sobre os prédios rústicos. Cf. António FRANCISCO de SOUSA, 1995,

ideais liberais e a consolidação dos respectivos contra-poderes intermédios, controlando-os quer pela força quer pela via da regulamentação da liberdade de iniciativa e civil, através de um processo de racionalização e de burocratização da organização económica, política, social, cultural, educacional e religiosa.

Porém, também na Europa Continental a expansão do comércio, da ciência e da técnica deram à burguesia emergente o poder e as condições necessárias para vir a

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