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O Utilitarismo Clássico ou a busca da construção artificial da harmonização dos interesses

JOHN LOCKE (1632 – 1704)

2.2.3. O Utilitarismo Clássico ou a busca da construção artificial da harmonização dos interesses

No percurso que vimos fazendo, o utilitarismo, movimento filosófico, epistemológico, moral, ético, político, económico, social e cultural (AUDARD (2002: 43-48), que se desenvolve a partir do início do Século XVIII, vai aparecer-nos como a originalidade da contribuição do iluminismo escocês, em particular 54, e francês, mais

pontualmente 55, e também dos moralistas augustinianos e jansenistas, para a resolução

do problema da conciliação entre Estado e Sociedade ou entre indivíduo e colectividade. Tal contribuição, porém, coloca-se nos antípodas teóricos da contribuição coeva do Continente, sobretudo a de Rousseau, de Kant e de Hegel, deduzida esta de princípios abstractos, religiosos, morais e metafísicos.

Neste sentido, Catherine AUDARD (2002: 48-50) considerou o utilitarismo dos Séculos XVIII e XIX como um anti-kantismo 56 ou como um kantismo invertido 57,

54 Representado essencialmente por: Francis HUTCHESON (1694-1747); David HUME (1711-1776);

David HARTLEY (1705-1757); Thomas REID (1710: 1796); Adam SMITH (1723 – 1790).

55 Representado essencialmente pelo sensualismo de Stephan CONDILLAC (1715-1780); pelo

materialismo de Julien Offray de LA METTRIE (1709-1751), de Paul-Henri D`HOLBACH (1723- 1789), de Robert TURGOT (1727-1781) e de António CARITAT (Marquês de Condorcet, 1743-1794); e pelo sensualismo materialista de Claude-Adrian HELVETIUS (1715-1771), que influenciou profundamente Jeremy Bentham (1748 – 1832).

56 De resto, F. VERGARA (2002: 12-17) estabelece o confronto entre as duas correntes, como

representantes do pensamento ocidental na organização da felicidade da comunidade, colocando do lado do utilitarismo D. Hume, A. Smith, J. Bentham, D. Ricardo e S. Mill, e do lado do «kantismo» moral, E. Kant, Turgot e D. Stewart. O utilitarismo adoptará como critério de apreciação do valor das acções a sua utilidade na felicidade e no bem estar terrenos e a-religiosos de todos os indivíduos de uma comunidade ou no maior número possível deles. O Kantismo tentará derivar o critério de tal juízo a partir de categorias transcendentais e metafísicas, cujo fundamento será, em última análise, Deus e as «Ideias» dele derivadas. Daí dizer-se que o utilitarismo é uma moral e uma política «a posteriori» e o Kantismo uma moral e uma política «a priori». Por outro lado, o utilitarismo porá a ênfase na defesa da utilidade para a felicidade, enquanto que o Kantismo porá a ênfase na defesa da utilidade para a salvaguarda dos direitos naturais («Turgot disait que “tout doit tendre non à la plus garnde utilité de la société (...) mais au maintien de la jouissance dês droits naturels”». - VERGARA, 2002: 16). Seja como for, estas duas correntes propuseram, em grandes linhas, a mesmas instituições: liberdade de expressão, liberdade de comércio, responsabilidade do Estado em matéria de educação, de infraestruturas e de ajuda aos desfavorecidos. Eis por que Constant dirá: «La route que Bentham a

com origens no eudemonismo e epicurismo gregos, procurando, como o kantismo, um princípio universal – o «sumum bonum»58, a felicidade, o bem-estar, individuais e do

maior número possível de pessoas 59 – como critério de conduta moral, política e

social. Só que a afirmação deste critério impôs uma ética da interacção e da harmonização de interesses que não foi uniforme, ao longo do período de formação do utilitarismo.

Com efeito, o utilitarismo económico do Século XVIII, que culmina com Adam SMITH (1776) mas que se prolonga pelo Século XIX, designadamente em Herbert SPENCER (1879), enfoca sobretudo o individualismo dos interesses pessoais e egoístas, num processo de interacção natural, onde, necessariamente, prevalecem os interesses do mais forte, do mais inteligente e do mais bem apetrechado (M. TERESTCHENKO, 1994: 72), na linha dos direitos e liberdades naturais do liberalismo clássico e da Fábula das Abelhas (1714), de Bernard de Mandeville.

Já o utilitarismo político da segunda metade do Século XVIII e primeira metade do Século XIX, tendo como expoentes máximos Jeremy BENTHAM e James MILL, enfocará a felicidade e o prazer do maior número como critério organizador da sociedade, da política, da economia e da moral, critério ao qual se devem subordinar os interesses individuais, mesmo se com sacrifício destes, e toda a elaboração legislativa

60.

Finalmente, na segunda metade do Século XIX, e numa espécie de síntese entre as duas tendências anteriores, tanto John STUART MILL quanto Henry SIDGWICK tentarão harmonizar o interesse do maior número de pessoas com a preservação da liberdade individual, elevando os conceitos de participação, de

préféré l`a conduit à des résultats parfaitement semblables aux miens.» (B. CONSTANT, 1997: 61)

57 Perceber-se-á melhor esta inversão se se reflectir sobre aquilo que deve ser julgado nas acções das

pessoas. Para Kant, e também para os cristãos católicos era a intenção e a orientação moral da vontade. Para Bentham e Mill é o valor da acção em si mesma, libertando-a de toda a subjectividade na apreciação externa: «Toute action est accomplie en vue d`une fin et il est naturel de supposer que les règles de l`action doivent tirer tout leur caractère et leur coloration de la fin à laquelle elles son subordonnées.» (Stuart MILL, 1998 : 22). Ou ainda: «Pour que le principe de Kant ait une quelconque signification, il faut l`interpreter comme disant que nous devons conformer notre conduite à une règle que touts les êtres rationnnels pourraient adopter avec un bénéfice pour l`intérêt collectif.» (MILL, 2002: 121). Cf ainda AUDARD (1998: 5 e 2002: 50-51).

58 Veja-se o que escreveu J. BENTHAM, 1970, An Introduction to the Principles of Moral and

Legislation, Clarendon – Oxford University Press, Oxford, pp. 12-13, cit. por F. VERGARA (2002: 13-

14): «Un home peut être dit partisan du principe d`utilité lorsque l`approbation ou la désapprobation qu`il manifeste à l`égard d`une action ou d`une mesure, est déterminé par, e proportionnelle à la tendance qu`elle a, d`après lui, à augmenter ou diminuer le bonheur de la communauté.».

59 Michel TERESTCHENKO (1994: 71) refere que o utilitarismo «repose sur une définition

largement égoiste de l`homme et sur une conception qui met en évidence la nature strictement intéressée du lien social».

60 Dirá J. BENTHAM, Princípios de Moral e de Legislação, 1776: «Qu`est-ce que donner une bonne

raison en fait de loi? C`est alléguer des biens et des maux que cette loi tend à produire: autant de biens, autant d`arguments en sa faveur; autant de maux, autant d`arguments contre elle.» (Cit. por M. TERESTCHENKO, 1994 : 74).

negociação e de concertação à categoria de pressupostos instrumentais para a construção de uma sociedade que satisfaça a felicidade, o interesse e o bem-estar, se não de todos, pelo menos do maior número.

Ao postulado da origem divina dos valores da acção social, da moral e da religião, elaborado por Calvino e por J. Locke, ao qual os seres humanos deveriam conformar-se, os autores utilitaristas contrapuseram o materialismo sensualista, a busca espontânea do prazer e da felicidade, a harmonização de interesses, pessoais e colectivos, em suma a articulação das liberdades individuais de acordo com a apercepção da experiência, a inter-simpatia de interesses e a inter-subjectividade na percepção geral de tais interesses, como critérios de organização da Sociedade e do Estado.

Porém, não deixam de basear-se todos em postulados de ordem metafísica, utilizando os conceitos de «critério último», de «bem supremo» e de pedra de toque». Às palavras de John Locke segundo as quais o critério último de decisão moral é

«A lei divina, pela qual compreendo esta lei que Deus prescreveu aos homens para orientarem a suas acções (...) é a única pedra de toque pela qual poderemos julgar a Rectidão Moral» 61,

respondem os utilitaristas Clássicos e, sobretudo, Stuart MILL, com o critério último da felicidade da comunidade ou do maior número de indivíduos nela contidos, também em termos metafísicos, porquanto,

«É necessário que haja um critério que permita julgar do bem e do mal, do absoluto e do relativo, dos objectivos, ou dos objectos de prazer. E, seja qual for este critério, só pode haver um: porque, se existissem vários princípios últimos para a conduta, ela poderia ser aprovada por um e condenada por outros.» 62

As bases teóricas do utilitarismo são pois várias – o que nos parece inevitável num movimento que demorou pelo menos dois séculos e meio a constituir-se – começando por se basearem no amor de si e no sentimento 63, no individualismo, no

empirismo, no sensualismo, no associacionismo, no experimentalismo e na tradição contratualista entre diferentes poderes, na Grã-Bretanha 64, e no sensualismo e no

61 John LOCKE, Essay sur L`Entendement Humain, cit. por VERGARA (2002 : 19). 62 Jiohn Stuart MILL (1843), A System of Logic, in VERGARA (2002:20).

63 De resto, a exaltação destes dois elementos tem uma enorme tradição no Ocidente desde, como vimos

atrás (Secção 1), o «amor de si» e a «libido sentiendi» da Cidade de Deus (426 d.c.), de Santo Agostinho, no Século V, comungados por Blaise PASCAL (1656) e por Pierre NICOLE (1679); a exaltação do valor das paixões e dos interesses como motores de motivação e de articulação nas relações sociais, feita por sensualistas como David Hume (1748) e por materialistas como Helvetius (1758) e Holbach (1772);

64 Na Grã-Bretanha, é forçoso ir buscar as origens do utilitarismo à valorização da experiência como

critério de conhecimento por parte de Francis BACON (1561- 1626), com a obra Novum Organum (1620), e à construção do método indutivo pelo mesmo autor, em radical oposição aos métodos abstracto-reflexivos da escolástica, entre outras fontes. Esta valorização da experiência e do «sensacionismo» como elementos fundamentais do conhecimento é feita também por John LOCKE

materialismo, na França 65. Porém, tanto com Bentham como com Stuart Mill, como

ainda com Sidgwick, o utilitarismo evoluiu para a reflexão sobre a utilidade ética e moral, tornando-se numa filosofia moral e política por referência ao ideal de «sumum bonnum».

Ao contrário das tradições inglesa e americana, profundamente influenciadas pelo utilitarismo, a tradição europeia, com a excepção de Benjamin CONSTANT e de Alexis de TOCQUEVILLE (1840) 66, caricaturizou-o 67, apresentando-o como

«filosofia do burguês»68 (MARX, 1974, I: 385-387) e filosofia sem espírito, apesar

da exaltação que dele fazem Stuart Mill e Sidgwick, reaparecendo a sua influência na segunda metade do Século XX, através de Karl POPPER (1949), de Isaiah BERLIN (196969), de John RAWLS (1971 e 1993), revelando o utilitarismo como um sistema

teórico da felicidade e do bem-estar (welfare) que vai muito para lá da perspectiva hedonista.

Uma das questões que se colocam na abordagem do utilitarismo é a consideração do seu estatuto face ao liberalismo 70 . Existem argumentos a favor e

argumentos contra a sua integração nas teorias liberais. De qualquer modo, quem

(1632 – 1704), em Ensaio sobre o Entendimento Humano, também de 1690. Se a obra de Francis Bacon é uma reacção contra o racionalismo idealista em construção no continente europeu, a construção teórica dos fundamentos do utilitarismo prosseguiu depois com o aprofundamento desta reacção, com o sensualismo e com o associacionismo: Francis HUTCHESON (1694-1747), com a obra

Recherches sur l`Origine de nos Idées de Beauté et de Vertu, de 1725; David HUME (1711-1776), nas

obras Traité de la Nature Humaine, de 1740, I parte, secção IV - «De l`Association des Idées», e ainda

Une Enquête sur L`Entendement Humain, de 1758, secção III - De l`Association des Idées ». Também

com o associacionismo de David HARTLEY, em De L`Homme, de 1749, secção IV, §§ 97 e 99. Estes dois autores substituíram o princípio de causalidade pelo associacionismo das sensações e dos prazeres e da transformação de ambos em ideias por semelhança, por contiguidade e por relação, fornecendo as bases da «harmonização artificial» dos interesses. Do mesmo modo que William GODWIN (1756- 1836), na sua obra Inquiry on Political Justice, de 1793.

65 Essencialmente, para o sensualismo, Stephane CONDILLAC (1715-1780), com a obra Traité des

Sensations (1754) e, para o materialismo, Claude-Adrian HELVETIUS (1715 – 1771).

66 Diz Tocqueville: «a doutrina do interesse bem compreendido se me afigura, entre todas as

teorias filosóficas, a mais apropriada às necessidades dos homens do nosso tempo. (...) Adaptando-se maravilhosamente às fraquezas dos homens, obtém com facilidade um grande domínio que nada lhe custa conservar, pois que vira o interesse pessoal contra si mesmo e serve-se, para dirigir as paixões do aguilhão que as excita.» (Citado por AUDARD (2002: 45). De resto, a correspondência entre Tocqueville e Mill, atesta a influência recíproca entre os dois autores. No caso de Mill, em On the Liberty e, no caso de Tocqueville, em L`Ancien Regime et la Révolution.

67 Pode colher-se uma síntese dessa caricaturização em Francisco VERGARA (2002: 39-40).

68 É o caso de Marx, 1965, Oeuvres, 726, Gallimard: «Liberdade, igualdade, propriedade e

Bentham. Bentham! Porque, para qualquer um trata-se apenas de si próprio. A única força que os põe em presença e os relaciona é a força do seu egoísmo, do seu lucro particular, dos seus interesses privados.». Citado por Audard, 2002: 44.

69 Isaiah Berlin faz mesmo uma introdução para a edição de 1969 de On Liberty and Utilitarianism, por

Ozford University Press, a que acedemos através da tradução de Eunice Ostrenski, publicada pela Livraria Martins Fontes de S. Paulo, em 2000, sob o título John Stuart Mill: Liberdade, Utilitarismo.

70 Jean TOUCHARD (1970), Catherine AUDARD (2002) e Francisco VERGARA (2002) colocam-no no

âmbito do liberalismo político mas Michel TERESTCHENKO (1994) insere-o no âmbito do liberalismo económico.

primeiro levanta esta questão é Alexis de TOCQUEVILLE (1840), ao autonomizar a articulação do sistema de interesses individuais como processo auto-suficiente de obtenção do interesse geral, associando-o ao liberalismo.

Entre os argumentos contra está o facto de, a partir de David Hume e de Jeremy Bentham, o utilitarismo rejeitar

«(...) qualquer ideia de um contrato social originário, fonte de legitimidade das leis, e qualquer ideia de direitos naturais e imprescritíveis do homem. (...). (...) a ideia de direitos naturais e imprescritíveis é um obstáculo ao progresso da legislação, por essência mutável: um direito que só tem razão de ser devido à sua utilidade, não poderia ser imprescritível e imutável. (...) Para o utilitarismo, as declarações dos direitos do homem nada mais são do que sofismas. (...). Assim, mais do que de liberdade, Bentham preferirá falar de segurança.» (Catherine AUDARD, 2002: 46).

De igual modo, no liberalismo pré-StuartMilleano, existe uma dimensão sacrificial do indivíduo pela qual a felicidade pública deve prevalecer sobre a felicidade individual. Então os direitos e liberdades individuais devem poder ser sacrificados «à maior felicidade do maior número» 71. A defesa do utilitarismo

clássico do Século XVIII é a de que não faz sentido falar em sacrifício porque os interesses nocivos à sociedade são nocivos aos indivíduos, preferindo-se falar de segurança (securities) em vez de direitos naturais, tão inexistentes e aberrantes como o contrato social, segundo Jeremy Bentham. E só a partir de John STUART MILL (1863) e de Henry SIGDWICK (1874) é que este conflito entre «hedonismo universalista», tendente para a felicidade do maior número, e «hedonismo psicológico», ou egoísta, tendente para a felicidade individual será assumido.

Como argumentos a favor, deve dizer-se que, quer no utilitarismo económico quer no utilitarismo político e, para lá das aparências superficiais, o utilitarismo permanece liberal por causa do seu individualismo (Catherine AUDARD, 2002: 47- 48). Tanto a felicidade colectiva como a felicidade do maior número constituem a soma das felicidades individuais e não a sua integração.

A semelhança entre liberalismo e utilitarismo colhe-se ainda pela análise da economia política liberal. Com efeito, o utilitarismo está directamente ligado à emergência do liberalismo económico, podendo falar-se de utilitarismo económico (Michel TERESTCHENKO, 2002: 71-85). No entanto, o utilitarismo económico de Bentham não reconhece autonomia à ciência económica, sobrepondo a felicidade colectiva aos interesses individuais 72, enquanto que o liberalismo económico de Adam

71 Esta ideia, originária de Claude-Adrian HELVETIUS (1758 - 1988: 83-84), o mestre de Bentham,

serviu eficazmente a ideologia do Terror: «Tout est legitime, même vertueux, pour le salut publique.». Do mesmo modo, William GODWIN (1756- 1836), na sua obra Inquiry on Political

Justice, de 1793, submetendo por completo o indivíduo ao interesse público.

72 Em abono desta tese, conferir Joseph SHUMPETER, 1983, Histoire de l`Analyse Économique, Paris,

Gallimard e F. VERGARA, 1992, Introduction aux Fondements Philosophiques du Libéralisme, Paris, 1992, pp. 33-34

Smith e de Bernard de Mandeville, de David Hume e de Herbert Spencer parte da prevalência dos interesses individuais sobre a sociedade e, sem perspectiva do social no seu todo, elegendo a categoria económica como determinante 73 (Catherine

AUDARD, 2002: 49).

Porém, se o utilitarismo «pré-benthameano» e «benthameano proclamou esta submissão do interesse individual ao interesse colectivo, o projecto de John STUART MILL (On the Liberty, 1859) vai no sentido de preservar a liberdade individual face ao interesse do maior número possível de pessoas, procurando subtraí-la à tirania da sociedade e do Estado. Neste sentido, Mill é profundamente liberal. Mas as tensões (se não contradições) entre as vias ensaiadas por Bentham e por Mill, reflectir-se-ão no utilitarismo do Século XX, com Karl Popper (1949) a seguir a via «Benthameana» e Isaiah Berlin (1969), a via «Milleana», agravando-se a ruptura entre estas duas perspectivas com John Rawls (1971) 74 .

De resto, poderemos considerar o utilitarismo como um construtivismo voluntarista mas evolucionista, (que poderá mesmo encontrar-se em John Rawls, 1971), a meio caminho entre o ultraconservadorismo de Edmund Burke (Século XVIII) e de Herbert Spencer (Século XIX), retomado por Friederich Hayek, na segunda metade do Século XX, e as teorias da busca de um ideal de excelência, regra geral nocivo e tendente à tirania, como pudemos descortinar no Capítulo sobre o Autoritarismo, relativamente aos pensamentos de Rousseau, de Kant e de Hegel.

É a Francis HUTCHESON (1725) que se atribui a primeira formulação do princípio do utilitarismo, defendendo que «a melhor acção é a que proporciona a maior felicidade ao maior número»75, princípio reinscrito na tradição utilitarista por

Cesare BECCARIA (1764) como «la massima felicità divisa nel maggior numero»

76. Ao contrário de Bernard de Mandeville, de Hobbes e de Calvino, Hutcheson

defendeu uma predisposição natural e desinteressada do homem para o bem e para a acção recíproca.

Anthony SHAFTESBURY (1711 77) defendeu que o ideal de felicidade, de

prazer e de bem-estar deriva de uma tendência universal da humanidade para a compaixão pelo outro, para a solidariedade e para a identificação de interesses e que é esta identificação que permite construir a aproximação entre os homens. Mas que tal

73 Porque ela é entendida como categoria de organização ética e moral, ou seja: «La société est

tellement constituée qu`en travaillant à notre bonneur particulier, nous travaillons pour le bonneur général. On ne peut augmenter ses propres moyens de jouissance sans augmenter ceux d`autrui.» (David HUME, cit. or M. TERESTCHENKO, 1994: 75).

74 Pelo menos é esta a tese de Derek PARFITT, 1984, Reasons and Persons, Oxford, Oxford University

Press.

75 Francis HUTCHESON (1991), Recherches sur l`Origine de nos Idées de Beauté et de Vertu. Paris:

Vrin. Citado por Catherine AUDARD, 2002: 52.

76 Cesare BECCARIA (1991), Traité des Délits et des Peines, Paris, Flammarion. Original, 1764. In C.

AUDARD, 2002: 56-59

77 Anthony SHAFTESBURY (1711). Enquête concernant la Vertu ou le Mérite. In Denis Diderot (1969).

Œuvres Complètes – Tomo I. Paris : Club Français du Livre. Citado por Catherine Audard (2002 52 e

aproximação não tem nada de religioso, antes sendo natural. Tal como outros autores da formação da modernidade, Shaftesbury contribuiu para libertar a moral e a política da esfera da religião.

Numa perspectiva oposta 78, Bernard de MANDEVILLE (1714), servindo-se

da mítica Fábula das Abelhas, defendeu que «os vícios privados fazem o bem público» 79 e que as acções egoístas, muitas vezes, defendem melhor o bem público do

que as pretensamente altruístas, tese que influenciou directamente A Teoria dos Sentimentos Morais, de Adam SMITH (1759). Por isso, Mandeville é um autor fundamental no lançamento teórico do liberalismo económico da segunda metade do Século XVIII.

David HUME (1751 e 1758) criará as condições epistemológicas necessárias para a fundamentação do individualismo moral do utilitarismo, desligado de qualquer lei, natural ou sobrenatural. No debate entre sentido moral inato (Hutcheson) e egoísmo natural do homem (Hobbes e Mandeville), Hume antecipa Stuart Mill, procurando conciliar os dois pólos, preservando a liberdade.

No entanto, prefere alicerçar a tendência natural dos homens para a associação na simpatia pelos outros e na teoria do «espectador imparcial» pela qual um indivíduo consegue identificar-se com os sentimentos de outrem e de todos os «outrem(s)» naquilo em que eles realizam a utilidade. Herbert SPENCER (1879 80) e

John RAWLS (1971) retomarão este princípio da simpatia. Rawls na sua «Uma Teoria da Justiça» (2001) 81 . Porém, Jean TOUCHARD (1970: 78-79) considera Hume

78 Mas que tem antecedentes na tese de que a concretização do luxo e dos desejos e interesses dos ricos é

um processo de ajuda aos pobres, defendida no Século XVII por moralistas protestantes como Pierre JURIEU (1686) e Isaac PAPIN (1688) e, no Século XVIII, por Bernard DE MANDEVILLE, na sua

Fábula das Abelhas (1714).

79 . O subtítulo da obra resume o essencial da mensagem da Fábula: «La Fable dês Abeilles ou les

vices prives font le bien public contenant plusiers discours qui montrent que les défauts des hommes, dans l`humanité dépravée, peuvent être uitiles à l`avantage de la swociété civile, et qu`on peut leur faire tenir la place dês vertus morales.» (Michel Terestchenko, 1996, 59). Jean TOUCHARD (1970:78) resume assim as ideias da Fábula: «Temos uma colmeia na qual as abelhas se tornam virtuosas, sóbrias, austeras, caritativas: é um desastre. Conclusão: os vícios dos indivíduos são um benefício para a sociedade, o egoísmo de cada um condiciona a prosperidade de todos.».

80 «O altruísmo que deverá surgir no futuro não é um altruísmo que esteja em oposição ao

egoísmo mas virá, por fim, a coincidir com este em grande parte da vida, e exaltará as satisfações que são egoístas por constituírem prazeres fruídos pelo indivíduo, embora sejam

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