• Nenhum resultado encontrado

O LIBERALISMO COMO TEORIA DO ESTADO DE SOBERANIA LIMITADA E COMO TEORIA DA PARTICIPAÇÃO REPRESENTATIVA

2. O percurso histórico do liberalismo e a dinâmica liberal

2.1. O liberalismo económico

A doutrina liberal da economia de mercado, constituiu-se nos Séculos XVII e XVIII, em particular com: os contributos dos moralistas protestantes jansenistas (Século XVII 28); a Fábula das Abelhas (1714), de Bernard de MANDEVILLE (1670-

1733); a teoria do laissez-faire (1750), de François QUESNAY (1694-1774); A Riqueza das Nações (1776), de Adam SMITH (1723-1790); e On the History of Civil Society (1767), de Adam FERGUSON (1723-1816) .

Esta teoria constituiu-se em contraposição às teorias comunitaristas do contrato social, tanto na sua vertente autoritarista (Thommas HOBBES, 1650) como na sua vertente democraticista oligárquico-liberal (John LOCKE, 1690), como ainda na sua vertente contratualista participativa igualitária (J.-J- ROUSSEAU, 1762).

Os introdutores do liberalismo económico defenderão que a propriedade e a economia 29 são o suporte da liberdade, da vida política e da cidadania (Georges

BURDEAU (1979; s.d.: 65-78 30), o que tenderá a excluir os pobres dos processos de

construção das ordens social e política, e a enfatizar a economia, a propriedade e os processos de interacção económica como o fundamento e a estrutura fundamental da sociedade.

27 Esta afirmação pode ser facilmente testada através da reflexão sobre mudanças sociais do Século XX,

que tiveram por base os processos de produção e marketing capitalistas, tais como a generalização do rádio e da televisão, da electricidade, dos fatos de banho e biquinis, da nova organização social baseada na emergência das grandes superfícies comerciais. A própria estrutura da produção e comercialização dos bens não só fomentou o desejo da sua posse como a necessidade de os comprar para se poder fazer parte da nova estrutura social por eles gerada. Neste aspecto, o capitalismo foi profundamente inovador, embora deixando um rasto de marginalização e exclusão social naqueles que não pudessem pagar.

28 Mas que tem antecedentes na tese de que a concretização do luxo e dos desejos e interesses dos ricos é

um processo de ajuda aos pobres, defendida no Século XVII por moralistas protestantes como Pierre JURIEU (1686), Isaac PAPIN (1688), Pierre BOISGUILBERT (1646-1714) La ROCHEFOUCAULD e B. PASCAL e, no Século XVIII, por Bernard DE MANDEVILLE, na sua Fábula das Abelhas (1714).

29 Apesar de citadas por Georges BURDEAU (1979; s.d.: 74-76), valerá a pena documentar este juízo

com as expressões referidas em «Encyclopédie, V, in Réprésentants, de que «é a sociedade que faz o cidadão»; por D`HOLBACH, 1776, de que «só o proprietário é um verdadeiro cidadão»; e ainda por Jules FERRY, 1874: «(…) é porque a democracia francesa é uma democracia de proprietários que ela há-de-ultrapassar (…) todos os transes difíceis.»

30 Diz a este respeito BURDEAU (1979; s.d.: 66): «Encarada relativamente à economia, a liberdade

reveste-se de um significado concreto: revela-se no comércio, nas trocas, no trabalho, na produção de bens e na apropriação, no seu uso, no modo de transmissão. A propriedade está no centro deste universo. E não apenas sob a forma tangível de coisas possuídas, mas enquanto motor da actividade humana.»

Na origem do liberalismo económico acaba por estar toda a teoria experimentalista da acção humana, desde Francis Bacon até ao sensualismo de David Hume e ao experimentalismo de Isaac Newton. Toda a luta pela liberdade na acção contra os absolutismos. Toda a valorização daquilo que pelo absolutismo papal e escolástico era considerado o lado mau do homem: o mal, o egoísmo, as paixões e o interesse individual, os quais proporcionam uma dinâmica de interacção social na qual se constituiriam, segundo os liberais clássicos, relações de vinculação e de dominação, espontaneamente.

O liberalismo económico reclama e institui pois o primado da liberdade na acção e na autonomia individual e social, arrastando consigo o primado da economia sobre a política mas, na prática, a economia foi o instrumento de que os «burgueses» da Idade Moderna, «a parte mais importante e mais bem instalada da Nação» (Howard LASKI, 1950:113), se serviram para controlarem quer a construção da ordem política quer a construção da ordem social, colocando-as a seu favor. De tal modo que, controlada a política, o aparelho do Estado ficará organizado de tal modo que, ou não é obstáculo à liberdade da economia ou favorece esta liberdade, transformando-se em liberalismo económico-político.

Nesta visão do primado da economia sobre a política, o liberalismo económico terá, ao longo da história, duas versões: 1) a de Liberalismo Económico Moderado, onde o Estado deve desempenhar um papel ainda importante na garantia dos direitos dos cidadãos e da educação, e um papel supletivo no desenvolvimento da economia (Adam Smith, Turgot, Condorcet, B. Constant, A. De Tocqueville); 2) a de Ultraliberalismo Económico ou de Estado Mínimo e Ultramínimo (B. de Mandeville, F. Bastiat, H. Spencer, F. Hayek, Robert Nozick).

A primeira, de Liberalismo Económico Moderado, é a dos autores clássicos dos Séculos XVII e XVIII e, em geral, do utilitarismo inglês. A preocupação destes autores não é a de solicitar a menor intervenção possível do Estado mas sim a de analisar qual deve ser o papel do Estado no progresso da actividade económica e no da riqueza dos povos e quais devem ser as relações do Estado com a Sociedade Civil, de modo a que a liberdade individual e de grupo possa prevalecer.

Neste sentido, e segundo F. VERGARA (2002: 166-172), nem Adam Smith nem os outros economistas liberais dos Séculos XVII e XVIII, com excepção de Bernard de Mandeville, foram liberais no sentido da defesa de um Estado Mínimo. Seria necessário esperar pelo Século XIX, para que tal defesa fosse continuada por Frédéric BASTIAT (1849) e por Herbert SPENCER (1879), e pela segunda metade do Século XX para que a defesa do Estado Mínimo e Ultra-Mínimo tivesse arautos.

Com efeito, ao longo dos Séculos XVIII e XIX, tanto os autores da linha teórica utilitarista (A. SMITH, J. BENTHAM, J. S. MILL, H. SIDGWICK) como os da linha teórica «direitos humanos» (TURGOT, CONDORCET, CONSTANT, TOCQUEVILLE) puseram alguma vez em causa o papel do Estado como responsável pelo conjunto de condições inerentes à salvaguarda do direito natural, nas quais os cidadãos pudessem organizar-se e serem autónomos, chegando mesmo Adam Smith e Turgot a defenderem que o Estado se deveria substituir aos cidadãos quando estes não

fossem capazes de satisfazer os princípios da utilidade pública (A. Smith) e da Justiça (Turgot).

Segundo F. VERGARA (2002: 123-165), os autores da linha teórica «direitos humanos» levarão a sua defesa da intervenção do Estado muito mais longe, propondo, entre outros, o princípio da discriminação positiva como condição de salvaguarda do princípio do direito natural «igualdade natural entre indivíduos»31 .

Bernard de MANDEVILLE (1714), servindo-se da mítica Fábula das Abelhas, defendeu que «os vícios privados fazem o bem público» 32 e que as

acções egoístas, muitas vezes, defendem melhor o bem público do que as pretensamente altruístas, tese que influenciou directamente A Teoria dos Sentimentos Morais, de Adam SMITH (1759) 33.

A doutrina liberal da economia de mercado ou liberalismo económico moderado começou por defender assim uma autoregulação natural da sociedade, através das relações de troca, de comércio, de associação e de conflito, postulando que a sociedade funcionaria tanto melhor quanto o Estado pudesse deixar de intervir nela. Este tese representada pela célebre metáfora de Adam SMITH (1776; 1999: I, 668) da «mão invisível» do mercado, conduzi-los-ia à defesa de um Estado Moderado e Tutor (por isso nunca ausência de Estado), na regulação da actividade humana e social.

31 Ao lermos F. VERGARA, 2002, Les Fondements Philosophiques du Libéralisme, sobretudo no que

respeita ao contraponto entre a teoria «direitos humanos», em França, e a teoria utilitarista, em Inglaterra, não pudemos deixar de nos confrontar com as referências de Alexis de TOCQUEVILLE à promoção, pela Monarquia francesa do terceiro quartel do Século XVIII «da marcha irresistível para a igualdade. A descrição que VERGARA faz da obra de TURGOT, enquanto governante, na Monarquia, obriga-nos à interrogação da natureza da Revolução Francesa e ao levantamento da hipótese da sua natureza liberal, como resposta à perda decretada de privilégios pela classe burguesa e como resposta ao aumento de impostos contra essa mesma classe.

32 O subtítulo da obra resume o essencial da mensagem da Fábula: «La Fable dês Abeilles ou les vices

prives font le bien public contenant plusiers discours qui montrent que les défauts des hommes, dans l`humanité dépravée, peuvent être uitiles à l`avantage de la swociété civile, et qu`on peut leur faire tenir la place dês vertus morales.» (Michel Terestchenko, 1996, 59). Jean TOUCHARD (1970:78) resume assim as ideias da Fábula: «Temos uma colmeia na qual as abelhas se tornam virtuosas, sóbrias, austeras, caritativas: é um desastre. Conclusão: os vícios dos indivíduos são um benefício para a sociedade, o egoísmo de cada um condiciona a prosperidade de todos.».

33 Edwin Cannan, 1904, editor de An Inquiry into the Nature and Causes of the Wealth of Nations e

traduzido na introdução a «A Riqueza das Nações», 1999, Cit. Vol. I: 58-65, faz uma análise do pensamento de Alan Smith no que respeita à identificação deste com o pensamento de Bernard de Mandeville. Explicita o pensamento de Mandeville e evidencia que a colmeia das abelhas que se tornaram solidárias no bem e na bondade se autodestruiu, enquanto que a colmeia das abelhas egoístas e competitivas prosperou. Ironicamente, concluía Mandeville que a origem do bem entre os homens era o mal, porque era este que os motivava para a acção, para a interacção, para a competição e para progresso: «Depois disto, orgulho-me de ter demonstrado que não são nem as qualidades de bondade ou as afeições delicadas naturais ao homem, nem as reais virtudes que ele é capaz de adquirir pela razão e pela abnegação, que constituem o fundamento da sociedade: mas aquilo a que no mundo chamamos mal, tanto moral como natural, (…)» (B. Mandeville, 1729, in Edwin Cannan, 1904: 63-64)

A reificação da doutrina liberal na utilização, em contraponto, de duas expressões: a proposta, pelas Teorias do Contrato Social, «harmonia artificial dos interesses» (Élie HALEVY, 1904: 316, in F. VERGARA, 2002: 190), resultante da imposição, pela Lei, de uma ordem de relação hierárquica de comando e de obediência, e a proposta pelos autores liberais, «harmonia natural dos interesses» (Frédéric BASTIAT, 1849; 1983: 130), espontaneamente realizada pela interacção dos indivíduos livres e iguais 34, e com a mínima intervenção do Estado 35 é pois própria do

Ultraliberalismo.

O liberalismo económico em geral assenta também na defesa de uma sociedade de comerciantes que fazem uma circulação universal das mercadorias, segundo a lei da oferta e da procura. A regulação dos interesses não será mais tarefa do Estado mas dos mercadores, «uma das mais úteis espécies de homens», segundo David HUME (citado por TERESTCHENKO (1994:62).

Mesmo autores ligados à construção do liberalismo político (MONTESQUIEU, 1748; 2002: Livro XXI, Cap. 20; CONSTANT, 1819; 2001) puseram em evidência o papel do comércio como substituto da autoridade e da guerra na construção da ordem social espontânea.

Segundo a teoria do liberalismo económico inicial é ainda necessário substituir a relação social de desigualdade, no contexto da vinculação a uma linha de comando e de obediência, por uma relação social de igualdade natural, no contexto do comércio e da associação económica, movidos pelo jogo das forças sócio-económicas, das paixões dos interesses, destruindo assim o que Adam SMITH (1759) designou por «homem sistemático» da burocracia, para exprimir o chefe ou dirigente que pensa que há-de moldar a vida social a um plano teórico inicial, através da relação de comando e obediência.

A defesa das paixões e dos interesses - contra a bondade e contra uma moral de subserviência-, era apresentada como a evidência do motor e motivação das iniciativas individuais e sociais com vista ao desenvolvimento e ao progresso, na convicção de que a riqueza e a prosperidade de uns implicavam a riqueza e a prosperidade dos outros. Tais convicções seriam partilhadas, como veremos por outros autores não menos importantes na história do liberalismo: David HUME (1711- 1776) e Francis HUTCHESON (1725).

A seguinte passagem de Adam SMITH (1776; 1999) no seu Riqueza das Nações, Vol. I: 94-95, é ilustradora da importância que atribuiu à interacção dos interesses na regulação social:

34 Considere-se que o conceito de «iguais» se insere, no âmbito do liberalismo em geral, e do liberalismo

económico em particular no domínio da igualdade natural, ou seja, protecção da vida, da propriedade e da segurança. No mais, o estatuto económico, social e cultural de cada indivíduo dependia do triângulo de condições Weber-Collinsneano, a saber, influência social, capacidade económica e capacidade cultural.

35 De resto, estas teses continuar-se-ão a desenvolver com WALRAS (1834-1910), com Vilfredo

PARETO (1848- 1923), com Joseph SHUMPETER (1942), e, na última metade do Século XX, com Friederich HAYEK e com Robert NOZICK.

«(…) o homem necessita quase constantemente do auxílio dos seus congéneres e seria vão esperar obtê-lo somente da sua bondade. Terá maior possibilidade de alcançar o que deseja se conseguir interessar o egoísmo deles a seu favor e convencê-los de que terão vantagem em fazer aquilo que ele deles pretende. Quem quer que propõe a outro um acordo de qualquer espécie, propõe-se conseguir isso. Dá-me isso, que eu quero, e terás isto, que tu queres, é o significado de todas as propostas deste género; e é por esta forma que obtemos uns dos outros a grande maioria dos favores e serviços de que necessitamos. Não é da bondade do homem do talho, do cervejeiro ou do padeiro que podemos esperar o nosso jantar, mas da consideração e que eles têm o seu próprio interesse. Apelamos não para a sua humanidade, mas para o seu egoísmo, e nunca lhes falamos das nossas necessidades, mas das vantagens deles. Ninguém, a não ser um mendigo, se permite depender essencialmente da bondade dos seus concidadãos. (…)».

Estes postulados implicam a assunção de outros: 1), o homem é um ser egoísta; 2), a sociedade é um mercado; 3), a sociedade divide-se em classes sociais originadas pela participação dos indivíduos na produção de riqueza; e 4) o papel do Estado deve limitar-se, se possível, à protecção do espaço público onde decorre o jogo do mercado mas prover as necessidades da Sociedade, caso esse jogo as não satisfaça em algum domínio social.

Que a sociedade seja um mercado, uma «sociedade comerciante» ou «um sistema de necessidades», na perspectiva de Hegel (1818), implica que ela seja um conjunto de relações materialistas, despidas de conteúdo intersubjectivo e moral. Daí, o liberalismo económico da segunda metade do século XVIII reage ao «rousseauismo» sob o fundo de um anarquismo que se opõe ao totalitarismo regulador das relações sociais. Não admira, por isso, que os ideais anarquistas da segunda metade do Século XVIII e do Século XIX, tenham servido de fundamento, principalmente, ao liberalismo.

No liberalismo económico, o parco equilibro social é realizado pelo jogo de interacções e de forças que se constituem espontaneamente na sociedade. Se uns são ricos e outros pobres; se uns são instruídos e outros não; se uns obtêm poder e capacidade de influenciação e outros não, isso é perfeitamente natural e resulta da teoria dos dons e do trabalho.

Uns são inteligentes e trabalhadores e têm sucesso; outros são inteligentes mas não são trabalhadores e não têm sucesso; outros são trabalhadores mas não são inteligentes e, por isso, também não têm sucesso; outros, finalmente, nem trabalhadores nem inteligentes e, como tal, não poderão ser membros activos da sociedade nem merecedores de estatuto social.

Na retórica do liberalismo económico, o sucesso estará sempre ligado ou à inteligência e ao oportunismo ou à inteligência e ao trabalho. Mas nunca à sorte, à

herança, ao poder económico ou aos favores do grupo económico a que se pertence. Não há lugar nem para a bondade nem para a compreensão nem ainda para a solidariedade. Apenas para a caridade. Cada um terá de prover à sua vida, à sua saúde, à sua educação, aos seus seguros e à sua reforma.

Verifica-se, portanto, que o liberalismo económico está profundamente ligado ao utilitarismo inicial, propugnando a ideia comum de que o que prevalece é a visão do ser humano como «hommo oeconomicus» e egoísta e de que toda a ordem social e cultural deriva do interesse individual e da economia, numa antecipação da teses marxistas, pela negativa.

O liberalismo económico atravessou toda a história posterior, sendo relativamente camuflado, como já dissemos, no terceiro quartel do Século XX.

As teses do liberalismo económico foram assimiladas pelo liberalismo político do Século XX, reemergindo em força na segunda metade do Século, como reacção ao que acusaram de excesso de Estado e de regulação das sociais-democracias, acusando-as de um novo «racionalismo construtivista» de tendências totalitaristas (F. A. HAYEK, 1990).

Este movimento neoliberal, do qual falamos em secção autónoma, neste capítulo, e que Francisco VERGARA (2002: 10-11) apelida de Ultraliberalismo, emergiu logo após a II Guerra Mundial, sobretudo nos Estados Unidos e em Inglaterra, e teve como principais representantes: F. A. HAYEK, 1946, 1974, 1976 e 1979; R. DAHL, 1956 e 1971; Robert NOZICK, 1973; e Milton FRIEDMAN, 1982 e 1986.

Estes autores prepararam o caminho para que, após o choque petrolífero de 1973 e a consequente crise das economias capitalistas, se instalassem nos EUA e na Inglaterra as derivas liberais RonaldReaganeana (1980-1988) e MargarethTatchereana (1979-1990), com alastramento a todo o mundo, após a queda do Muro de Berlim, em 1989, iniciando-se assim a desconstrução do Welfare State ou Estado Social, consolidado entre 1950 e 1975, ainda que começado a teorizar (e, em parte a aplicar como «acusa» Tocqueville) por Turgot e Condorcet 36, em França, na segunda metade

do Século XVIII.

Outline

Documentos relacionados