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O ESTADO ABSOLUTO E A CONSTRUÇÃO DA SOBERANIA E DE UMA TEORIA DA NÃO-PARTICIPAÇÃO

3. As teorias da Soberania no Estado Absoluto ou de Império 9 e da não-

3.1. Jean Bodin, a República Soberana e a construção do Estado Absoluto

Em Jean Bodin, República e Soberania andam associadas. A soberania é «o poder absoluto e perpétuo da República» (Michel TERESTCHENKO, 1994: 44). No entanto, a República deve ser «Monarquia Real ou Legítima» porque, como referem Marcel PRÉLOT e Georges LESCUYER (2000, II: 251),

«Querendo que a soberania fosse una e indivisível, concebeu-a, desde logo, monárquica; querendo-a não delegada, afastou a eleição; querendo-a irrevogável, fundou-a numa doação, ou seja, num acto praticado de uma vez para sempre; querendo-a perpétua, pensou-a hereditária; querendo-a suprema, entendeu que nenhum outro poder podia pedir-lhe contas, nem o Papa ou o Imperador, no exterior, nem os Estados ou os Parlamentos, no interior.»

Enquanto Poder supremo, a soberania não conhece nem interrupção nem limites. Ela é « força toda-poderosa, sobre a qual não existe superioridade, absoluta e eterna, como o poder absoluto de Deus.» (Idem, Ibidem). Face a estes predicados, Carl SCHMITT (1922) concluiu pela transcendentalização do conceito de soberania já que «Todos os conceitos pregnantes da teoria moderna do Estado são conceitos teológicos secularizados.» (in Michel TERESTCHENKO, 1994: 45).

A noção de soberania afigura-se pois como noção despersonalizada e dessacralizada 10. Ela designa «a infinidade de poder jurídico do Estado, que não

10 A este respeito, escreve Bruno Bernardi, 1999, La Démocratie, Paris, Flammarion, p. 31: «Mais l`idée

de souveraineté (…) est immédiatement mise en œuvre dans une positivité nouvelle, celle de l`état. Le pouvoir sera désormais de moins en moins une relation d`hommes à hommes, une

conhece, acima de si, nenhuma norma, regra ou lei que se lhe imponha.» (Michel TERESTCHENKO, 1994: 44) , ideia traduzida por Carl SCHMITT (1922) como sendo «a soberania (...) a potência suprema, juridicamente independente, não derivada de nenhum outro ente». (Michel TERESTCHENKO, 1994, op. cit.: 45).

Nestes termos, não só a soberania será una e indivisível – como em Hobbes -, mas ainda independente do direito natural e dos costumes tradicionais e cristãos: «a lei civil não é senão a ordem e a sanção da autoridade soberana»11 . Porém, como

escreve o próprio Bodin, a lei civil não pode ser contrária à lei natural e à lei de Deus pois «nem as leis humanas nem os estatutos de privilégios dos príncipes poderão derrogar a lei de Deus e da Natureza»12 .

Por outro lado, a soberania exprime-se em termos absolutos pois «não existe coisa pública sem que haja algo de próprio que una os membros e as partes» (Jean TOUCHARD, 1970, III: 59) mesmo «sem o consentimento dos cidadãos» (Idem: 60). Por isso, a soberania «é o poder absoluto de fazer a lei» (Idem) , poder que está muito acima do rei, do príncipe ou do tirano mas que não pode contradizer as leis de Deus e da natureza, ainda que o seu poder pertença a uma ordem racional externa.

Como conclusão – síntese do pensamento de Bodin, diremos ser ele contrário à participação dos cidadãos, quer nos assuntos da governação quer nos assuntos da administração e gestão, revelando-se como um dos primeiros teorizadores da centralização do Estado e da anulação da autonomia de todos e qualquer dos seus corpos intermédios, assim como dos da sociedade 13 . Thomas Hobbes levará este

pensamento até às últimas consequências.

No entanto, para Marcel PRÉLOT e Georges LESCUYER (250-251), Bodin teve o mérito essencial de ter feito evoluir a Monarquia, da «Monarquia Tirânica» para a «Monarquia Real ou Legítima», ultrapassando, como ponto intermédio, a «Monarquia Senhorial», conseguindo, com isso, desligar a soberania da patrimonialidade, garantindo assim a propriedade privada dos súbditos.

Cardin LE BRET, conselheiro dos Reis Henrique II a Luís XIV, de França, divinizará o Monarca (in De la Souveraineté du Roy, 1632), considerando-o investido por Deus, que retirou aos súbditos do Rei o poder que até aí era deles. Mas, a partir da intervenção de Deus, compete ao Rei fazer a lei, modificá-la e interpretá-la, assim como superintender na Administração Pública. A soberania do Rei é indivisível e só há

relation personnelle, mais un rapport institué, s`effectuant par des multiples médiations d`appareils, de corps, d`administrations, qui n`auront de cesser de se développer.».

11 Jean BODIN, citado por Michel TERESTCHENKO, 1996, op. cit.: 40. 12 Jean BODIN, citado por Michel TERESTCHENKO, 1996: 40.

13 Ver a este respeito Carlos AMARAL, 1998: 65, designadamente: «Quando muito, os corpos

intermédios poderão, por delegação do Estado, e sob seu controlo, ser autorizados a exercer uma capacidade regulamentar (...) naquelas matérias que (...) não afectem o interesse geral». E «O poder que os corpos intermédios possam assumir é-lhes emprestado pelo Estado – que, evidentemente, o pode recuperar quando bem entender.».

um limite ao seu poder, que é a propriedade privada. Razão pela qual, em muitos casos, a centralização do poder real teve a aliança da «burguesia».

Os contributos de RICHELIEU para a constituição do Estado Absoluto vão no sentido do afastamento do «povo» da proximidade do poder, misturando a indivisibilidade do poder do Rei com a sua opulência, qual Deus brilhando no céu em todo o seu esplendor, porque, segundo ele, ver o poder é acreditar no poder.

A indivisibilidade do poder condu-lo à unicidade do poder porque «um corpo ... com várias cabeças não pode ter o mesmo espírito» 14. Daí à

contestação do papel dos Parlamentos vai um passo porque «usurpam a autoridade dos Reis»15.

Na condução dos interesses do Estado, só a «razão de Estado» deve contar porque «a perda dos particulares não é comparável à salvação pública» 16.

Além disso, a forma como trata os súbditos obriga-nos a considerá-lo como um dos percursores do Estado Totalitário. Veja-se as seguintes passagens:

«Seria impossível conter os povos dentro das regras dos deveres se os deixássemos muito à vontade. Devem ser retidos por uma qualquer necessidade dentro da regras que lhes são apresentadas pela razão e pelas leis. Julgariam estar livres de obediência se estivessem livres de tributos.» 17

e

«Devem ser comparados às mulas que, acostumadas à carga, se estragam mais com um longo descanso do que com trabalho.»

18

Pior ainda parece ser a forma como o Estado se deve impor aos particulares já que «muitas vezes, as conjecturas devem fazer as vezes de prova» 19,

«sendo necessário começar pela execução porque as testemunhas virão depois»20.

O Bispo BOSSUET dará mais uma ajuda na divinização do «Poder Real» e do do Estado, teorizando o Estado Teocrático. Segundo ele, o Estado deve ser visto como a Lei de Deus: uno, infalível e acima das «paixões» dos homens. Aliás, se foi necessário inventar a Realeza e o Estado foi porque os homens não se entendiam 21.

14 Richelieu, Citado por PRÉLOT e LESCUYER, 2000, I: 262. 15 Idem, Ibidem.

16 Idem, p. 263 17 Idem. Ibidem. 18 Ide, Ibidem. 19 Idem. Ibidem

20 Marcel PRÉLOT e Georges LESCUYER, 2000, I: 263.

21 Veja-se uma certa semelhança com Thomas Hobbes, quanto ao «estado de natureza» e à

Por isso, e ao contrário do que defendeu Le BRET, o povo nunca deteve a soberania porque ela era de Deus e Deus transmitiu-a ao Rei, investido do «poder de Deus» e seu representante junto da humanidade. Eis o Estado Teocrático, tão útil aos monarcas absolutistas do Século XVII. Aliás, Thomas Hobbes tomará a sério esta ideia. E como limitar então o poder do Rei à esfera do Bem? Bossuet responde que os limites para a acção do poder real são constituídos pela moral e pelas boas vontades do Príncipe 22

Nestes termos, nada mais resta aos cidadãos senão a obediência porque «Os homens nascem todos súbditos, e o império paternal, que os habitua a obedecer, habitua-os, ao mesmo tempo, a ter um único chefe.» 23 E este

«chefe», à semelhança de Deus, tem um poder e um saber «papais», por isso, infalíveis. Por isso, «Nunca as pessoas estão tão unidas como sob a direcção de um único chefe, e também nunca são mais fortes, pois que tudo concorre para o mesmo.»24. Além disso, este chefe nunca pode ser mulher porque «feitas as

contas, é obrigada a ter um senhor ao casar-se»25.

Até Bossuet, e com a excepção de Le Bret, a análise das relações entre o Estado e a Sociedade Civil é anti-individualista, isto é, prevalece o todo sobre a partes e estas são inexistentes sem o todo.

A inversão deste paradigma de análise vai começar a dar-se com Hugo GRÓCIO (1583- 1645) e Thomas Hobbes (1588 – 1679), os quais criaram o indivíduo enquanto entidade relevante para a constituição do Estado e do contrato social. É graças a esta linha de pensamento, que radica na autonomia do «cogito» cartesiano e no homem «animal político», de Aristóteles, que, em meados do século XVIII, Rousseau e Kant conciliarão o indivíduo e o cidadão.

E, no entanto, tanto com Grócio quanto com Thomas Hobbes, movemo-nos num paradigma absolutista. Mas as mudanças começam a ser visíveis.

Grócio criou o direito natural, tão caro ao liberalismo, e fez dele a base da Sociedade, na medida em que, pelo direito natural, os homens são indivíduos que se relacionam, individual ou comunitariamente, criando relações de poder entre si. Distinguiu-o de direito positivo, aquele que provém do poder estabelecido e se impõe por autoridade deste.

Pelo direito natural, reconhece-se o direito à propriedade, à vida, à associação civil, aos contratos mútuos. O Estado será então a extensão do direito natural às relações entre as comunidades de um mesmo território. Os cidadãos instituem o Estado porque, tal como no direito natural, precisam de se respeitar mutuamente, de garantir os seus contratos e as suas propriedades. Assim, alienam a sua liberdade na do Estado, representante da Nação (enquanto conjunto de povos e comunidades), mas que não pode ultrapassá-la porque Estado e Sociedade são uma e

22 Veja-se esta proclamação, em 1679: «Já disse. Sois deuses: quer dizer que tendes na vossa

autoridade e trazeis na fronte uma marca divina... Mas, ó deuses de carne e sangue, ó deuses de lama e pó, morreis como os outros homens.». (Bossuet, citado por Marcel PRÉLOT e Georges LESCUYER, 2000, I: 279)

23 BOSSUET, citado por PRÉLOT LESCUYER, 2000, I: 276 24 Idem. Ibidem.

mesma coisa. O Estado corresponde ao domínio público mas público significa, para Grócio, apenas o que é de utilidade comum.

Entre a utopia e o misticismo, Grócio, ao identificar Estado e Sociedade está a percursar o Totalitarismo. Ao estabelecer o contrato de associação civil, está a percursar Thomas Hobbes e a consolidar o autoritarismo.

Na sua principal obra, De Jure Belli ac Pacis (Do Direito da Guerra e da Paz), publicada em 1625, Grócio aplica também a sua teoria do direito natural ao Estado, na ordem internacional, dando assim origem a um direito do mais forte.

A obra de Grócio foi aprofundada por Samuel PUFENDORF (1632 –1694), que a laicizou, dando ainda mais força ao contrato social como base da constituição civil da colectividade. Os homens associam-se para se defenderem comumente e para preservarem os seus espaços comuns, por um lado, e de liberdade individual, por outro. E, por isso, necessitam de uma autoridade forte para impor a vontade comum e salvaguardar a propriedade e a liberdade.

Quando, em 1709, foi publicada A Política, de Bossuet, já o absolutismo estava a entrar em decadência porque alvo de duras críticas. De aristocratas como Fénélon, de liberais como Locke e de aristocratas e liberais como Montesquieu. Mas ele continuou no Século XVIII, sob a forma de absolutismo esclarecido com: Christian Wolf26 (1679 –1754), com Voltaire (1694- 1778) e com D`Holbach (1723 –1784).

Voltaire, mais que um político, será um livre pensador, que não terá aprendido nada em Inglaterra, sobretudo de John Locke, apesar de ali se ter isolado três anos (Marcel PRÉLOT e Georges LESCUYER, 2000, I: 305-306). Neste sentido, apesar das críticas que faz ao absolutismo, prefere o poder supremo do Rei, como garantedor da ordem e da harmonia das diferenças entre os homens: «somos todos igualmente homens mas não membros iguais da sociedade» 27. Ignora a divisão

dos poderes, já praticada em Inglaterra e louva Catarina II da Rússia pela perseguição aos católicos. Dominado pelo anti-cristianismo, Voltaire representará mais os ideais anticlericais do Iluminismo do que um pensamento político esclarecido. Apesar de querer ver os melhores a assessorarem o Rei. Mas isso é uma consequência do Iluminismo.

Na mesma linha seguiu D`Holbach. É preciso acabar com a religião, o mal que assola o nosso tempo e instituir uma autoridade superior que saiba e possa governar com autoridade e no respeito pela lei. Nota-se, portanto, a influência da racionalidade do Iluminismo. E daí a dificuldade de classificar estes três autores como absolutistas puros no sentido clássico da arbitrariedade do poder. Tanto mais que o início do Século XVIII já conheceu a obra de John Locke.

26 É também considerado um dos introdutores da filosofia liberal mas a defesa de que o Monarca não

deve ter limite nos seus direitos faz dele um autor absolutista (cf. M. PRÉLOT e G. LESCUYER, 2000, I: 290 e 298)

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