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Jean-Jacques Rousseau e a transformação da soberania do Estado Democrático em Estado e Soberania autoritários

A CONSTRUÇÃO DA SOBERANIA NO ESTADO AUTORITÁRIO E NO ESTADO TOTALITÁRIO E A LIMITAÇÃO DA PARTICIPAÇÃO

1. As teorias da Soberania Absoluta no Estado Autoritário: participação limitada ou não participação

1.1. Jean-Jacques Rousseau e a transformação da soberania do Estado Democrático em Estado e Soberania autoritários

A teoria da soberania absoluta de Thomas Hobbes será democratizada por Jean-Jacques ROUSSEAU (1712 – 1778), que a desloca da pessoa do monarca para o todo orgânico da sociedade, a República, cujas decisões, democráticas, constituirão a «vontade geral», à qual o cidadão só pode obedecer, por razão livre, não devendo precisar de ser, para o efeito, coagido pela força.

3 Veja-se o que diz Guy HERMET, 1985, 269 sobre o amplo espectro do conceito de estado autoritário:

«L`adjectif autoritaire (...). Aujourd`hui il qualifie aussi bien les dictatures civiles de type franquiste ou salazarien que les régimes militaires modernes en vigueur en Amérique Latine, ou en Asie du Sud-Est, les gouvernements mobilisateurs martiaux ou de parti unique des États décolonisés, les monarchies patrimoniales islamiques ou encore les totalitarismes avortés à la manière polonaise. En ce qui concerne des expériences passés, mais toujours présentes à la mémoire, il désigne également l`autoritarisme post-démocratique appellé fasciste, ainsi que l`autoritarisme pré-démocratique, baptisé bonapartiste.»

Apesar de Jean-Jacques Rousseau ser considerado genericamente como um dos baluartes teóricos da democracia em geral e da democracia participativa em particular 4 , ele é, também, no juízo de outros autores 5, um dos principais teóricos

fundamentadores do Estado Absoluto e do Estado Autoritário. Por isso, consideraremos Rousseau passível de ser lido tanto como teórico do Estado Autoritário, como do Estado Liberal 6, como ainda do Estado Democrático Participativo.

No que respeita à construção da soberania, Jean-Jacques ROUSSEAU (1973:20-23) parte das mesmas constatações que Hobbes sobre o «estado de guerra» dos homens no seu «estado natural» pois

«O homem nasceu livre, mas em toda a parte está a ferros. Este julga-se senhor dos outros e é mais escravo do que eles. (...).

(...). Mas a ordem social é um direito sagrado que serve de base a todos os outros. Contudo, este direito não veio da natureza; apoia-se em convenções.»..

A tentativa de superação da ideia de que uma sociedade composta por indivíduos movidos por paixões e crenças antagónicas só possa manter-se em ordem pelo exercício do poder absoluto, como teorizou Thomas Hobbes, constitui o desafio que Rousseau tentou resolver conjugando a obediência à lei e a paz civil com a liberdade do cidadão.

Este desafio será a tarefa do contrato de associação civil, de acordo com a fórmula que lhe dá Rousseau:

«Encontrar uma forma de associação que defenda e proteja de toda a força comum a pessoa e os bens de cada associado e em que cada um, ao unir-se a todos, só a si mesmo obedeça e continue tão livre como antes.».

(...).

4 Ver por exemplo Carole PATEMAN (1970), Participation and Democratic Theory, Cambridge,

Cambridge University Press, p. 22: «Jean-Jacques ROUSSEAU might be called the theorist par

excellence of participation (…)» e Licínio Viana LIMA (1998), A Escola Como Organização e a Participação na Organização Escolar. 2ª Edição. Braga: Universidade do Minho. Instituto de Educação

e Psicologia. Centro de Estudos em Educação e Psicologia, designadamente p. 97: «Jean-Jacques ROUSSEAU privilegia a participação dos indivíduos e não dos grupos e concebe a participação como uma forma de intervenção nos processos de decisão (...)».

5 Por exemplo, Michel TERESTCHENKO, 1994, Philosophie Politique, I, Paris, Hachette. Também Jean

TOUCHARD (1970), História das Ideias Políticas, Vol 4: 86 – 103. E ainda Marcel PRÉLOT e Georges LESCUYER (2001): História das Ideias Políticas, Vol II, p. 63. Lisboa: Editorial Editorial Presença

6 Esta consideração decorre do facto de Jean-Jacques ROUSSEAU ter procurado superar a contradição

entre direito natural e direito comunitário, instituindo o direito civil, uma vez os cidadãos constituintes do corpo político porque «Enfin, se Cada um se entrega a todos, não se confia a ninguém, e como em todo o associado se adquire o mesmo direito que cada um cedeu, ganha-se o equivalente de quanto se perdeu e mais força para se conservar o que se possui.» (Cf Jean- Jacques ROUSSEAU, 1973, Contrato Social: 21-22. Lisboa. Editorial Presença. Original: Du Contract Social. Genebra, 1762). Cf ainda, na mesma linha, Marcel PRÉLOT e Georges LESCUYER (2001: 62)

Estas cláusulas, quando bem compreendidas, resumem-se a uma: a alienação total à comunidade de cada um dos seus associados, pois dando-se cada um inteiramente, para todos a condição é igual, e sendo ela igual para todos, ninguém está interessado em torná-la pesada aos outros.».

No espírito de Rousseau está a ideia de que qualquer contrato será nulo se anular a liberdade individual. Cada indivíduo contrata ao mesmo tempo consigo e com os outros, de acordo com um princípio de reciprocidade. O indivíduo contratante torna- se, em consequência do acto de associação, participante do todo social, do corpo orgânico que é a sociedade civil. Mas torna-se, ao mesmo tempo, cidadão e, enquanto tal, ele deixa de poder agir exclusivamente de acordo com a sua liberdade individual. É que o corpo social não é fundado na adição de vontades particulares, mas na sua integração na vontade geral.

A vontade geral não tem nada de soma ou de adição quantitativa. Designa em que condições uma vida social harmoniosa é possível na medida em que não é uma soma de interesses particulares mas um conjunto no qual os interesses particulares devem exercer-se livremente como tais no quadro dos princípios da vontade geral.

Por isso, a obediência à lei da vontade geral é um acto de liberdade cívica do cidadão e não de liberdade natural. Nota-se aqui a influência do imperativo categórico de Immanuel KANT (1960: 56) como ideal de liberdade, de responsabilidade, de moralidade e de reciprocidade:

«age apenas segundo uma máxima tal que possas ao mesmo tempo querer que ela se torne lei universal.» .

Estes princípios de Rousseau são contestados por Michel TERESTCHENKO (1994: 31-32) para quem

«existe nesta doutrina uma dificuldade insuperável pois os homens, tornados cidadãos do corpo político, não podem regressar à sua liberdade particular (...). Por conseguinte, a solução de Rousseau conduz à violência (...)»,

tornando-se uma solução metafísica em nome da qual Robespierre praticou os seus despotismos e a sua política de terror, continua o mesmo autor. E esta posição crítica haverá de ser adoptada pelos politólogos liberais, sobretudo Constant e Tocqueville, e afirmada hoje pois que «pelo primado sobre as partes que concede ao todo, pelo facto de esse primado ser o da vontade geral, Rousseau e, com ele, os Jacobinos, não rompem (...) com as ilusões voluntaristas do absolutismo.» (Luc FERRY, 2002: 39).

No entanto, é possível contestar esta interpretação de Terestchenko a partir da possibilidade-dever de o «Soberano» (o Povo) controlar os actos dos «magistrados» (os membros do Governo) e poder demiti-los sempre que se desviem do espírito da «vontade geral», possibilidade-dever para a qual Rousseau (1762) instituiu, conciliando Locke e Hobbes, o princípio da separação do poder legislativo, a cargo do «Soberano», o Povo, e do poder executivo a cargo do Governo, constituído pelos

«magistrados» e ao qual, no seu todo, Jean-Jacues ROUSSEAU (1973: 69-75) designa por «Príncipe» .

Porém, o aviso de Terestchenko é pertinente do ponto de vista sócio- organizacional. A teoria de Rousseau não resolve nem os problemas inerentes à burocratização do exercício do poder nem os inerentes ao controle dos «magistrados» que exercem tal poder em nome do Povo soberano. No entanto, ele identifica-os. Primeiro porque quem convoca o «Soberano», isto é, o Povo, ou seja, a comunidade de cidadãos, para apreciar as leis e os actos de Governo são os mesmos «magistrados», sendo ainda estes quem prepara e controla a agenda das reuniões. Segundo porque o «Soberano» respeita a especificidade técnica do exercício do Governo e não intervém na acção governativa 7, sob pena de infringir o pacto fundador do contrato social.

Assim, à possibilidade-dever de o «Soberano» legislar e controlar o exercíco do poder deve contrapor-se a questão de: convocado, organizado e orientado (manipulado?) por quem ? E à possibilidade-dever de o «Soberano» tudo decidir por democracia directa, em assembleias gerais, ou na impossibilidade destas, seccionárias, deve perguntar-se: quem tira as consequências das deliberações do «Soberano», quem as põe em marcha e quem lhes cria as condições organizacionais ?.

Do facto de os «magistrados», ou membros nomeados para o Governo só praticarem «actos particulares» e deverem obedecer necessariamente ao Soberano e do facto de este os poder demitir com a mesma autoridade com que os nomeou (Jean- Jacques ROUSSEAU, 1973: 115-117) não deriva, necessariamente, como, de resto, Rousseau reconhece (Jean-Jacques ROUSSEAU, 1973: 115-117), uma acção governativa em conformidade com o pensamento do Soberano, sendo necessário organizar formas e «meios de evitar as usurpações do Governo» (Jean-Jacques ROUSSEAU, 1973: 117).

Rousseau propôs para isso as «assembleias periódicas» (Jean-Jacques ROUSSEAU, 1973: 118), para apreciação e validação ou anulação dos actos do Governo (Príncipe) pois previu mesmo que os governos quisessem «usurpar» o «poder do povo» para se manterem no poder

«(...) porque, parecendo usar os seus direitos, pode (o Príncipe) 8 facilmente expandi-los, e impedir, a pretexto da

tranquilidade pública, as assembleias destinadas a restabelecer a ordem; vale-se assim de um silêncio que impede de se quebrar ou das irregularidades que comete, para fazer crer que estão a seu favor os votos daqueles que o medo faz calar ou para reprimir os que se atrevem a falar. (...).» (Jean-Jacques ROUSSEAU, 1973: 118).

7 Ver particularmente, a este respeito, o Livro Terceiro de «Contrato Social», Cap. XVI, p. 114: «Uma

vez instituído o poder legislativo, cumpre estabelecer o poder executivo, porque este, que acrtua apenas por actos particulares, se é essencialmente diferente do primeiro, deverá estar separado dele. Se fosse possível que o soberano, considerado como tal, tivesse o poder executivo, o direito e o facto estariam de tal modo confundidos, que nunca se saberia o que era lei e o que não era; e o corpo político, perdida a sua natureza, em breve seria presa fácil da violência contra a qual fora instituído.».

E, na sequência do texto, exemplifica uma situação da República Romana, em que os decênviros procederam da mesma forma.

Porém, Rousseau, apesar de ter todos estes elementos que lhe permitiriam deduzir que era necessário um terceiro poder – «o poder neutro» proposto pela primeira vez por Benjamim CONSTANT (1819), que pudesse convocar as Assembleias e arbitrar conflitos, deixou tal tarefa ao mesmo Governo. E, assim, Robespierre pôde, em nome do Soberano, praticar as maiores atrocidades contra este. Demasiado cedo, apenas 31 anos depois (1793), os receios de Rousseau realizavam-se na sua forma mais execrável: o morticínio pela guilhotina da «Revolução Francesa». Apenas porque uma concepção de poder como dominação 9 e «Terror» substituiu uma concepção de poder

como racionalidade ético-moral, portanto, pensada teoricamente como universal e universalizável, apenas no plano dos princípios, à maneira do racionalismo idealista Kanteano.

O pressuposto fundamental da teoria política Rousseauneana consiste, no fundo, em dois dogmas, só realizáveis por um «povo de deuses»: 1) a vontade geral é sempre o bem e a verdade; 2) o cidadão que contratou com a comunidade regida por aquela vontade geral só pode querer aquele bem e aquela verdade quanto aos meios e quanto aos fins. O homem e o cidadão, na sociedade instituída politicamente, só seria livre de querer o bem. E, se não quisesse o bem, teria que ser imputado. A democracia rousseauneana parte pois de pressupostos metafísicos.

No âmbito do racionalismo iluminista, Rousseau não tinha outra saída porque a normatividade do bem só podia conceber o bem. Porém, na concepção da dinâmica da acção governativa, Rousseau não se terá apercebido que não é menos autoritário nem déspota aquele que se sente no direito de interpretar a vontade da maioria e impõe a sua interpretação pessoal como sendo a daquela, do que aquele que julga que a vontade da maioria, só por esta interpretada, implica necessariamente um poder autoritário, na medida em que muitos indivíduos e cidadãos não se orientam para o bem comum, ou interesse geral, mas para o bem pessoal, ou interesse particular.

Rousseau deixou-nos assim em aberto a resolução dos dois problemas maiores de uma sociedade justa e democrática: 1) como e por quem deve ser tomada a decisão justa e conveniente ao todo colectivo?; 2) como deve tal decisão ser imposta a esse todo colectivo, sem privar ninguém de liberdade?. Em nome do pragmatismo e da luta de interesses pessoais e grupais dos mais fortes económica e culturalmente, as soluções encontradas até hoje parecem ser eminentemente rousseauneanas, parecendo ainda ser necessário inventar um «povo de deuses» para a vitória da democracia como liberdade, como igualdade e como fraternidade. Mas poderá uma democracia assim ser desejada num povo de homens?

9 Referimo-nos à concepção Weberiana de Dominação como «probabilidade de encontrar obediência

a uma ordem de determinado conteúdo em dadas pessoas;», seja pela via da autoridade, seja pela via informal. In Max WEBER, 1997, Conceitos Sociológicos Fundamentais. Lisboa, Edições 70, p. 81. ou, Max WEBER, 1991, Economia e Sociedade, vol I. Brasília – Universidade de Brasília, 5ª edição, p 139. Tradução da edição alemã, 1972, Tubingen – J.C.B. Mohr (Paul Siebeck). Tradução de Regis Barbosa e Karen Elsabe Barbosa. Revisão Técnica de Gabriel Cohn

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TEORIA POLÍTICA, EDUCAÇÃO E PARTICIPAÇÃO DOS PROFESSORES

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