• Nenhum resultado encontrado

A instituição do Estado Moderno e a construção do conceito de soberania nacional e absoluta

O ESTADO ABSOLUTO E A CONSTRUÇÃO DA SOBERANIA E DE UMA TEORIA DA NÃO-PARTICIPAÇÃO

1. A instituição do Estado Moderno e a construção do conceito de soberania nacional e absoluta

As relações entre os cidadãos e o Estado, fosse na qualidade de funcionários do Estado, fosse enquanto membros daquela Sociedade, estabeleceram-se, desde os alvores da modernidade 1 (1576 –1948 2), e especificamente desde finais do século

XVI, num quadro político-jurídico em que o Estado é o detentor da capacidade legislativa, organizativa e regulamentar quer do aparelho político-administrativo

1 Utilizamos o conceito de Modernidade para significar não só um período histórico, longitudinal à Idade

Moderna e à Idade Contemporânea mas, sobretudo, para representar um conjunto de características políticas e sociológicas que o opõem a Pós-Modernidade. Tais características evidenciam a importação dos pressupostos do pensamento racional (causa-efeito) e da mecânica clássica (mecanicismo) para as ciências sociais, transportando consigo uma representação de atomismo científico, saber fragmentado, cultura dogmática da certeza, da a-religiosidade e do cientifismo, e ainda, linearidade do saber e do pensamento, características que contribuíram para a instauração de Poderes absolutos e autoritários. Em contrapartida, a Pós-modernidade definir-se-á pelas características antinómicas destas: interdisciplinaridade, relatividade científica, social e cultural, articulação social expressa na construção partilhada do projecto democrático, pluralidade de pensamento e de culturas, pensamento complexo, poder partilhado.

2 Escolhemos a data de 1576, como ano da publicação do «Les Six Livres de la République», de Jean

Bodin, como obra emblemática do início da teorização do poder absoluto do Monarca. Do mesmo modo, escolhemos o ano de 1948 para fim da Modernidade, não só porque ele representa o fim do fragmentarismo estatal que conduziu à II Guerra Mundial mas também a consagração da universalização do projecto democrático, expresso na «Declaração Universal dos Direitos do Homem», e ainda porque tal declaração representa o reconhecimento da igual dignidade de todas as culturas e povos, facto a que o progresso das ciências sociais não é alheio. Porém, estas datas são apenas indicativas, dado que há outros factores que podem ser levados em conta.

estatal quer da organização da sociedade civil, variando a intensidade da intervenção do Estado em função da maior ou menor autonomia conferida quer ao(s) aparelho(s) político-administrativo(s) quer à sociedade civil.

O que há de novo na modernidade é, em primeiro lugar, a progressiva construção do Estado enquanto entidade independente do exercício físico do poder, com a substituição de uma concepção do poder governativo assente na pessoalidade (pessoa do Rei, do Príncipe ou do Tirano) por uma outra em que o poder se condensa na representação de uma ordem racional supra-pessoal, supra-temporal e meta- empírica que se sustenta a si própria, enquanto conjunto coerente de valores e de normas.

Um segundo aspecto novo da modernidade é a substituição do fragmentarismo político-administrativo medieval pela associação e concentração de diferentes comunidades com ideossincrasias comuns num mesmo Estado, o qual se apropria e usurpa, em maior ou menor escala, da capacidade autonómica dessas comunidades, construindo um aparelho centralizado de poder e de administração, em nome, sobretudo, da segurança individual (Thomas HOBBES, 1651), da propriedade privada e da liberdade individual (John LOCKE, 1690) e do bem comum sob a forma de «vontade geral» (Jean-Jacques ROUSSEAU, 1762).

Segundo C. AMARAL (1998: 40), a ideia de Estado Soberano é a de «um poder político (que se) encontra centralizado e é aplicado unitariamente em todo o território e a todos os membros, a nível interno; e a nível externo, não reconhece superior nem admite interferências, colocando-se a um nível de absoluta igualdade face aos demais poderes dos demais Estados (...).».

Na análise do mesmo autor, o início da construção do Estado Moderno resulta dos acordos gerados no Tratado de Paz de Vestefália (1639-1648), que «veio consagrar os princípios da tolerância religiosa e da igualdade fundamental entre os Estados» (C. AMARAL, 1998: 43) , orientando-se, ao mesmo tempo, para a separação em relação ao poder religioso.

A construção do Estado Moderno opera-se então contra a ordem medieval, «sobre as ruínas do feudalismo» (Marcelo CAETANO, s.d.) . Deste modo, e como sintetiza C. AMARAL, 1998: 35,

«(...), enquanto forma de associação e de organização da vida colectiva da sociedade, artificial e historicamente situada, o Estado surge na modernidade com o denominado sistema de Westefália que, marcando o fim das guerras religiosas na Europa, marcou igualmente o fim das pretensões universalísticas da Igreja e do Império, por um lado, e dos desafios internos do feudalismo segmentário, por outro.»

Ao contrário do fragmentarismo medieval, o Estado Moderno tenderá para a transferência do poder das várias unidades autónomas para um poder central, seja por uma forma de consentimento seja por uma forma de imposição e coacção.

Gianfranco POGGI (1989) caracteriza o sistema de organização medieval como tendendo claramente para a fragmentação e para a dispersão do poder, crescente e em cascata, em unidades cada vez menores, conduzindo à institucionalização de uma riquíssima malha de unidades que se constituíram em autênticos sistemas políticos autónomos e autosubsistentes.

Neste contexto, segundo C. AMARAL (1998: 37), a organização política medieval é anárquica porque

«marcada pela sobreposição de uma multiplicidade de sistemas de poder, em que, tanto o imperador, como o próprio monarca, apenas detinha um tipo particularmente limitado de poder.»

Nesta linha, também Roger KING (1986: 35) caracterizará a natureza do sistema político medieval como fragmentada, particularizada em pequenas autonomias, organizadas hierarquicamente a nível interno, faltando integração e densidade a tal sistema político. E Joseph CAMILLERI e Jim FALK (1992:12) caracterizarão o mesmo sistema político como um labirinto de pequenos reinos, principados, ducados e outras instituições quase autónomas, como igrejas, mosteiros e conventos, desfrutando de privilégios e imunidades especiais, cidades independentes, guildas, universidades, mercadores e senhorios, construindo uma manta cosmopolita de lealdades e de fidelidades que se sobrepunham e entrelaçavam.

O poder político medieval encontrava-se assim efectivamente disperso e partilhado pela pluralidade de unidades orgânicas que integravam a pirâmide hierárquica social, e cuja unidade base de poder não era o imperador nem o monarca mas sim o «cavaleiro armado no seu castelo», na expressão de John HERS (1976: 12). Neste sentido, o poder estava disseminado por unidades políticas autónomas que se constituíam em verdadeiras «ilhas dispersas de poder político, cada uma delas praticamente isolada das outras» (John STRAYER, 1986: 18).

Em consequência, «a estrutura política medieval era formada por uma malha de poder fraccionada e policêntrica» (C. AMARAL, 1998: 39), cuja unidade frágil era garantida pela Igreja, a qual, no dizer de John FIGGIS «não era um Estado, era o Estado» (citado por C. Amaral, 1998: 40). Por isso, C. AMARAL (1998: 39) sintetiza nestes termos a vida social e política medievais:

«A Igreja era a estrutura orgânica e o corpo visível da sociedade. Corporação universal, com os seus sistemas de direito e de tribunais próprios, governava directamente sobre todas as actividades humanas que tocavam os seus interesses, e indirectamente sobre tudo o mais – através da organização civil da sociedade que funcionava, muitas vezes, como o seu braço armado. E, em segundo lugar, surgiam as demais corporações, como as guildas e as aldeias que, com os seus costumes e

sistemas jurídicos e de tribunais próprios, controlavam de perto a vida económica, social e política dos seus membros» .

2. Soberania como capacidade para o exercício do poder e da autoridade do

Outline

Documentos relacionados