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Georg Wilhelm Friedrich Hegel e a absorção da Sociedade Civil pelo Estado de Direito

A CONSTRUÇÃO DA SOBERANIA NO ESTADO AUTORITÁRIO E NO ESTADO TOTALITÁRIO E A LIMITAÇÃO DA PARTICIPAÇÃO

1. As teorias da Soberania Absoluta no Estado Autoritário: participação limitada ou não participação

1.3. Georg Wilhelm Friedrich Hegel e a absorção da Sociedade Civil pelo Estado de Direito

O pensamento de Hegel (1770 – 1831), tal como o de Kant, não tem tido interpretações convergentes. Considerado por uns como ideólogo da «Restauração» 15

do absolutismo imperial 16 e por outros como instituidor do direito democrático 17,

14 Conferir a este respeito Georges PASCAL (1966: 148 – 160). Este autor resume os princípios Kanteanos

da conciliação entre a liberdade e a universalidade da lei a três (p. 156): «1º - un axiome, c`est-à –dire une proposition apodictiquement certaine, qui résulte immédiatement de la définition du droit extérieur (l`accord de la liberté de chacun avec celle de tous suivant une loi générale) ; 2º - un postulat de la loi publique extérieure, comme volonté collective de tous suivant le principe de l`égalité, sans laquelle il n`y aurait aucune liberté pour chacun ; 3º - un problème consistant à déterminer le moyen de conserver l`harmonie dans une société assez grande, en restant fidèle aux principes de la liberté et de l`égalité (c`est-à-dire le moyen d`un régime représentatif). Ce moyen c`est un principe de la politique, dont le dispositif et le règlement supposent des décrets. (…). Il ne faut pas que le droit se règle sur la politique ; mais bien la politique sur le droit.» .

15 Conceito com o qual se agrupam todos os movimentos ideológicos anti-revolução francesa e anti-Jean-

Jacques ROUSSEAU, sobretudo o liberalismo democrático de Constante Tocqueville, iniciados com a deportação de Napoleão para a ilha de Santa Helena, em 1814.

16 São os casos de Jean HYPOLITE, 1948, Introduction à la Philosophie de l`Histoire de Hegel, Paris,

Riviera; de Eric WEIL, 1950, Hegel et l`État, Paris, Vrin; e de K. KORSH, 1976, Marxisme et Philosophie, Paris, Minuit. Este afirma designadamente, p. 184:

«Não se pode criticar a filosofia hegeliana e o seu método dialéctico sem a conceber em conexão com o carácter histórico concreto do movimento revolucionário da sua época:

1. Ela é uma filosofia, não da revolução em geral, mas da revolução burguesa dos séculos XVII e XVIII.

2. Mesmo como filosofia da revolução burguesa, ela não exprime todo o processo desta revolução, mas apenas a sua última conclusão. Neste sentido, é uma filosofia, não da revolução, mas da «restauração». (In Alfredo Reis (1983): A Revolução Idealista. Porto: Edições Contraponto, p. 193. Tradução de Alfredo Reis.

17 «A filosofia política de Hegel foi muito maltratada por toda uma tradição que se empenhou,

sobretudo, a pôr em relevo o que ela considerava como o império autoritário, leia-se totalitário, do Estado sobre o indivíduo. Assim, ele foi tido por um filósofo da “Restauração”, por um defensor do Estado Prussiano, ou ainda por um ideólogo da Burguesia ascendente. Porém, Hegel também foi o pai do Estado Providência e o iniciador da separação do Direito racional, como entidade autónoma, relativamente à religião.» (D. ROSENFIELD, O Efectivo e o Racional:

uma abordagem da Lógica de Hegel, in Filosofia e Epistemologia IV. Porto: A Regra do Jogo, p. 181).

Hegel ficou prisioneiro da sua interpretação da história e dos factos da sua época que o ligam, por um lado a Napoleão Bonaparte e ao «absolutismo personalizado» da Revolução Francesa e, por outro, a Frederico Francisco II da Prússia e ao seu absolutismo objectivo.

E, no entanto, pelo que lemos em Princípios da Filosofia do Direito, não o poderemos considerar como fundamentador por inteiro do estado absoluto mas tão só do Estado Centralizado e Forte, não só para justificar a monarquia prussiana como para construir a unidade da Prússia. Com efeito, não só Hegel confere uma autonomia relativa à Sociedade Civil, o «ser-outro» ou «os particulares do universal» do Estado como também reconhece a autonomia relativa das comunas, das corporações e das ordens18:

«Os interesses particulares das colectividades que fazem parte se encontram situadas fora do universal em si e para si do Estado, são administrados nas corporações, nas comunas e outros sindicatos e classes, e pelas autoridades: presidentes, administradores, etc.. Os assuntos de que eles cuidam são, por um lado, a propriedade e os interesses privados desses domínios particulares e, neste aspecto, a sua autoridade assenta na confiança dos companheiros e concidadãos, mas, por outro lado, tais domínios devem estar subordinados ao interesse superior do Estado, de tal modo que, para a designação destes pontos, deve conjugar-se a eleição pelos interessados e a confirmação pela esfera superior.» (Georg HEGEL, 1976: § 288, p. 264).

Por outro lado, Hegel não nega em absoluto a importância da opinião pública («ela contém os princípios substanciais eternos da justiça», «mas tanto pode ser benéfica como prejudicial» (Idem, § 316 e 317, pp. 284 – 285) nem a liberdade de imprensa (embora a ache desnecessária, porque as Assembleias já analisaram os problemas, e perigosa nas mãos dos incultos e malévolos (Idem, § 319 – 320, pp. 287 – 290) e até defende o direito à participação, negando-o embora ao indivíduo isolado 19.

Também Paulo OTERO, 2001, op. cit: 50 – 54, e Jean TOUCHARD, 1970. op. cit, vol 5: 58 - 73 se dividem entre a consideração de Hegel como percursor do Estado Totalitário e a sua consideração como contribuinte para o racionalismo democrático.

18 Coincidente a opinião de Luc FERRY (2002: 36), o qual, a propósito da distinção entre Sociedade Civil

e Estado, diz que o reconhecimento da autonomia daquela era inexistente em Hegel pois que «o Estado Hegeliano pretende ser a síntese da República platónica e do Estado Liberal». E a expressão «sociedade civil» designa «o Estado como união ou associação de interesses privados, mas não ainda a esfera de interesses privados por oposição ao próprio Estado.».

19 Hegel justifica: a participação faz-se para emissão de opiniões, pareceres, pedidos, protestos e eleição

dos dirigentes das corporações, eleição dos deputados, etc..«Mas, se tais representantes são deputados da Sociedade Civil, imediatamente resulta que deverá esta designá-los na qualidade daquilo que ela é, quer dizer, não como dispersa em individualidades atómicas que só por um acto isolado e temporário se reúnem, mas como constituída por corporações, comunas e confrarias que, deste modo, adquirem unidade política.» (Hegel, 1976, Princípios, § 308, pp. 279 – 280.

Ela só poderá ser realizada através das comunas, das corporações, das ordens, das classes (Idem, § 308, p. 279) .

As obras de Hegel, que consultámos para efeitos do nosso estudo, são: A Fenomenologia do Espírito (1807) e Princípios da Filosofia do Direito (1821).

Em nossa opinião, Hegel levou o pensamento de Kant para a esfera do Estado, dessacralizou este transformando Deus em Espírito Absoluto 20, tornando o

Estado finalidade em si mesmo, e tornando-o também em razão de ser e condição da liberdade individual.

Como sugere Paulo OTERO (2001: 50-54), a crítica da concepção liberal da sociedade, a recusa da separação entre o indivíduo e o Estado, a vontade de fundamentar a liberdade civil na obediência consentida à lei e não sobre os interesses egoístas, a intenção geral de captar a racionalidade profunda da história conduziram-no à definição da marcha desta para o Estado racional moderno no qual se realizará a liberdade racional e ética do cidadão.

Michel TERESTCHENKO (1996: 74) escreve que «Hegel opõe a sua doutrina do estado racional à concepção liberal da sociedade civil».

Hegel tenta resolver no plano do Estado e da racionalidade do Direito os problemas colocados pelo liberalismo económico de Adam Smith (1723 – 1790), em «Recherches sur la Nature et les Causes de la Richesse des Nations» (1776).

Posiciona-se na linha de Kant e de Rousseau, construindo uma ideologia da transformação do indivíduo da «sociedade civil» (do estado de natureza em Rousseau), que reconhece existir por si, de facto, no cidadão que se orienta segundo as normas do direito, cuja garantia é o Estado. Mas diverge de Rousseau na medida em que não considera que o homem seja feliz no «estado de natureza» (Georg Hegel, 1976: § 187: 174-175), «o modo da animalidade», só podendo realizar-se plenamente, como cidadão, no Estado 21.

Assim, Hegel não pode admitir a existência de uma «mão invisível» como preconizou Adam Smith, que constitua uma racionalidade imanente às relações de interesses entre os homens e que regule tais relações, assim como os mercados.

O que caracteriza a sociedade civil, segundo Hegel, é, ao mesmo tempo, a particularidade dos interesses individuais e a dependência recíproca de tais interesses 22,

20 Baseamo-nos na interpretação que H. HEIMSOETH, 1966, La Metafísica Moderna, Revista del

Occidente, Madrid, pp.230 a 235, faz: «(...) o espírito é a unidade vital do múltiplo. (...) é a lei vivificadora (em oposição à lei morta do Deus transcendente ou do imperativo categórico); é a ideia criadora na própria realidade. Na vida religiosa torna-se consciente e manifesto que o ser é vida e esta é espírito.» (Idem, p. 234).

21 Note-se a formulação de Georg Hegel, 1976, Princípios da Filosofia do Direito, Lisboa, Guimarães

Editores, 2ª edição, § 258, p. 216 (original, 1820): «O Estado, como realidade em acto da vontade substancial, realidade que esta adquire na consciência particular de si universalizada, é o racional em si e para si; esta unidade substancial é um fim próprio absoluto, imóvel; nele, a liberdade obtém o seu valor supremo.» .

22 Na visão de Paulo OTERO, 2001: 51, «Deve-se a Hegel, com efeito, a ideia de que o Estado

procura preservar a universalidade, elevando-se acima dos interesses corporativos e da sociedade civil, e integrando em si os interesses particulares e os interesses colectivos (...).».

que a divisão do trabalho, já então bem visível, acentuou 23. Nesse sistema de

interesses, os indivíduos possuem bens cuja posse é necessário proteger. Assim, há que garantir não só a segurança das pessoas como a propriedade, nesta incluídas a aquisição, a doação e a herança. Ora, estas duas necessidades impõem o direito como lei reguladora das relações sociais 24 e salvaguarda da segurança e da propriedade, já

que os homens, por si «são pessoas privadas que têm como fim o seu próprio interesse e não ultrapassam o cálculo racional dos interesses privados.» (Georg HEGEL, 1976, § 187: 174).

Mas este direito que assim se revela necessário para regular a «sociedade civil» tem de ser um direito exterior à sociedade, tem de constituir um domínio formal (Georg HEGEL, 1976: 52-53 e 188-189) e tem de se «impôr» a cada um pela consciência individual da cidadania, reconhecedora da «bondade» universal da norma porque integradora de todos os casos particulares. E, caso a cidadania não seja suficiente, o Estado deve ser garantia do direito pela persuasão e pela força.

Além disso, a sociedade, não sendo um todo orgânico, como pretendia Rousseau – neste aspecto Hegel concordou com os teorizadores liberais, considerando- a um conjunto de indivíduos que vivem em associação -, mas sendo um conjunto de interesses em competição, levanta o problema dos mais pobres e da coesão social (Georg HEGEL, 1976: 172 – 187), tanto mais que as relações de trabalho da nova sociedade industrializada destruíram os laços económicos e de solidariedade tradicionais. E perante este problema dos mais pobres, o Estado tem o dever de garantir os direitos subjectivos dos indivíduos particulares e dos seus interesses, no contexto da sociedade civil, ou seja: 1) «o sistema das carências económicas», pelo trabalho; 2) «a defesa da propriedade pela justiça»; e, 3), «a defesa dos interesses particulares como algo de comum, pela administração e pela corporação» (Georg HEGEL, 1976, § 188: 176.

Mas, para realizar este objectivo, é necessário criar a oposição entre Estado e Sociedade civil para integrar esta naquele, mantendo a autonomia relativa dela. O seja, dado o egoísmo dos homens, não só o Estado tem de ser um Estado exterior à Sociedade Civil como constituir-se em ente autónomo, com uma racionalidade própria, formal, legal, ético-moral, entidade na qual o indivíduo deixa de o ser e passa a ser cidadão, na medida em que se reconhece e participa desta nova ordem racional em que todos cooperam para todos e em que o particular faz parte do universal racionalizado.

No dizer de Michel TERESTCHENKO (1996: 76), «Assim se realiza uma síntese entre o individual – o cidadão – e o universal – o Estado», plasmado na Constituição, «que é o fim e a realidade em acto da substância universal e da vida pública nela consagrada» (Georg HEGEL, 1976: § 157, p.154).

23 Parte do pensamento de Hegel sobre a organização da Sociedade Civil desenvolve-se em «Princípios de

Filosofia do Direito. Edição Portuguesa: Lisboa: Guimarães Editores.

24 Escreveu Hegel: «O facto de uma existência em geral ser a existência da vontade livre, constitui

O Estado é pois a síntese entre o particular e o universal não exigindo a negação nem do indivíduo nem dos seus interesses mas a sua conciliação racional com o interesse geral, a vontade universal, o espírito absoluto 25:

«O Estado é a realidade em acto da liberdade concreta; ora, a liberdade concreta consiste em a individualidade pessoal com os seus particulares de tal modo possuir o seu pleno desenvolvimento e o reconhecimento dos seus direitos para si (nos sistemas da família e da sociedade civil) que, em parte, se integram, por si mesmos no interesse universal e, em parte, consciente e voluntariamente o reconhecem como seu particular espírito substancial e para ele agem como seu último fim. Daí provém que nem o universal tem valor e é realizado sem o interesse, a consciência e a vontade particulares, nem os indivíduos vivem como pessoas privadas unicamente orientadas pelo seu interesse e sem relação com a vontade universal; deste fim são conscientes em sua actividade individual.» (Georg HEGEL, 1976, § 259: 224 –225)

Tal conciliação implica duas condições (Jean TOUCHARD, 1970, V: 67): 1) que o cidadão racional possa perseguir os seus interesses individuais e a sua realização pessoal; e, 2), que as leis do Estado sejam reconhecidas como justas por todos aqueles que renunciaram a viver segundo o instinto natural e que compreenderam que só podem ser livres se conciliarem o seu interesse particular com o interesse geral.

Alexandre KOJÈVE (1947: 10-12) sintetiza esta conciliação nos vectores satisfação individual e reconhecimento do interesse geral no direito do Estado. E quando estes vectores deixam de se realizar? O Povo deixa de se reconhecer no Estado e instaura-se a desordem. E quem são os principais responsáveis pela desordem? O partido formado pelos trabalhadores em consequência de os seus membros, ou ficarem sem emprego, ou se encontrarem despersonalizados pelas condições em que trabalham, exigindo a refundação do Estado.

Mas, no sistema hegeliano não podem existir nem Partidos nem Povo 26. Só

existem, enquanto «unidades políticas», corporações, comunas, ordens, sindicatos, classes, Estados Federados 27 e, por isso, a mudança só acontecerá quando uma nova

personalidade encarnar o novo espírito da história.

25 É por isso importante desmistificar este conceito de espírito absoluto, correspondente a interesse geral,

da sociedade civil, vontade universal, da política e da administração, e espírito absoluto, da síntese das formas da cultura e da civilização.

26 Veja-se a explicação de Hegel: «A massa é composta de indivíduos; aquilo a que muitas vezes se

chama povo é o que forma decerto um conjunto mas apenas como multidão, quer dizer, como massa informe como movimentos e acções apenas elementares, irracionais e selvagens.» Cf Hegel, 1976, Princípios ..., § 203, p. 277.

27 Veja-se a influência que Hegel exerceu no Estado Autoritário Português: «Ao lado da família, a

corporação constitui a segunda raiz moral do Estado, a que está implantada na sociedade civil.». Cf Hegel, 1976, Princípios ... p.214 § 255

A história é real, trágica, violenta mas racional e processa-se por crises sucessivas. Realiza, no seu devir, uma dada racionalidade tornada real, que é o espírito absoluto de cada povo, em cada momento histórico: o espírito da cultura e da civilização de cada Povo 28. Esse espírito é imanente e espreita a oportunidade para se

manifestar 29. Como não se pode manifestar no Povo há-de manifestar-se numa

personalidade que o incarnará e guiará as massas para um novo fim da história. Por isso, o imperador Napoleão Bonaparte 30 e Frederico Francisco II da Prússia são as duas

personalidades mais marcantes do término da história universal do Povo Europeu. Porém, a história prosseguirá, depois de Hegel, com outras crises, outros términos. Uma das lacunas de Hegel foi ter pensado (ou ter deixado que o interpretassem) que a história humana terminava ali, no império prussiano (realizando a síntese com o espírito da revolução francesa), contradizendo assim as suas próprias leis da dialéctica como sucessão de realizações, contradições e conciliação ou superação dos contrários.

A natureza do Estado Hegeliano é uma monarquia constitucional 31 e a sua

organização contempla a separação de poderes:

«Divide-se o Estado político nas seguintes diferenças substanciais: a) capacidade para definir e estabelecer o universal - poder

legislativo;

b) integração no geral dos domínios particulares e dos casos individuais – poder do governo;

c) a subjectividade como decisão suprema da vontade – poder do Príncipe. Neste se reúnem os poderes separados numa unidade

28 O espírito absoluto, diz HEGEL em Précis de l`Encyclopédie des Sciences Philosophiques, pp. 307, 308,

citado por François CHATELET, 1976, O Pensamento de Hegel, Lisboa, Editorial Editorial Presença, p. 182, Original, 1968, Hegel, Paris, Seuil, tradução de Lemos de Azevedo, «é a unidade da arte, da

cultura e da religião, no sentido de que a intuição, exterior quanto à forma, da arte, cuja produção subjectiva, que dispersa o conteúdo substancial em inúmeras figurações independentes, é compreendida na totalidade das formas (...)».

29 Note-se as palavras de Hegel: «Os princípios dos espíritos dos povos, numa necessária e gradual

sucessão, não são eles senão momentos do único espírito universal, que, através deles, na história, se eleva e determina numa totalidade autocompreensiva.». Cf Hegel, Lições de Filosofia

da História, trad. Italiana, p. 11, in Nicola ABBAGNANO, 1970, História da Filosofia – Volume IX,

Lisboa, Editorial Presença, p. 173.

30 É sobejamente conhecida a alusão de Hegel a Napoleão no dia 13 de Outubro de 1806, o dia seguinte a

Batalha de Iena, em que o exército francês derrotou o germânico: «Eu vi o Imperador, essa alma do mundo, atravessar a cavalo as ruas da cidade (...). É um sentimento prodigioso ver um tal indivíduo que, concentrado num ponto, sentado no seu cavalo, se estende sobre o mundo e o domina (...). Como eu, há muito tempo, todos, agora, fazem votos de sucesso pela armada francesa, sucesso que não lhe faltará tendo em conta a incrível diferença do seu chefe e dos seus soldados face ao exército inimigo.» Hegel, citado por Kostas PAPAIOANNOU, 1962, Hegel. Paris: Éditions Seghers, p.15. Tradução do texto nossa.

31 Note-se que também Jean-Jacques ROUSSEAU entendia que o melhor regime de governo para estados

compostos, isto é, federados, era a monarquia constitucional, enquanto que regime democrático só serviria para estados muito pequenos. Cf Jean-Jacques ROUSSEAU, 1973, Contrato Social, p. 79. De qualquer modo, a democracia pressupunha a República (Idem, p. 47).

individual que é a cúpula e o começo do todo que constitui a monarquia constitucional.» (Georg HEGEL, 1976, § 273: 246).

O Príncipe encarna a continuidade do Estado, representa o universal, o espírito da nação, da história daquele Povo. É a razão consciente e livre de todos os particulares da civilização e da cultura daquele Povo. Por isso, o Estado tem de ser uma monarquia constitucional.

Toda a organização e consciência políticas do Estado derivam da Constituição, que é um produto da história de cada Estado, «algo incriado, embora produzido no tempo» (Georg HEGEL, 1976, § 273: 250) e que «deve considerar- se como divino, imutável e acima da esfera do que é criado.» (Idem, Ibidem) mas variável de povo para povo «porque depende da natureza e cultura da consciência desse povo» (Idem, Ibidem).

Apesar de monarquia constitucional, o Príncipe e o Governo têm de conhecer e dar-se a conhecer à Sociedade Civil. Para conhecer os problemas desta existem duas Câmaras: a Parlamentar e a Corporativa, por cada Estado. Mas não existe nem eleição directa nem representação propriamente dita, com mandato imperativo. A representação processa-se em função das corporações, ordens, comunas e interesses organizados 32.

Os Parlamentos e as Câmaras Corporativas servem de mediação entre o Estado e a Sociedade Civil, levando também o conhecimento dos problemas do Povo aos funcionários. Não aprovam as leis. Propõem-nas ao Príncipe.

Os Funcionários exercem a autoridade do Estado e exprimem a missão deste. São, ao mesmo tempo, servidores e senhores do Estado. São as pessoas mais bem formadas (Georg HEGEL, 1976: 264-268). «Realizam o universal». Exercem o poder cada dia, preparando os actos de alcance universal. A sua competência e desinteresse realizam a unidade da sociedade na comunidade organizada. Com isto estava lançado o essencial das ideias de Max Weber acerca da burocracia, 100 anos depois33.

Sete notas fundamentais sobressaem do que expusemos sobre Hegel.

1) Hegel tentou conciliar a liberdade individual de Kant com a vontade geral de Rousseau (João SANTOS, 1998: 38-44). O resultado foi o Estado de Direito, garantido por um imperador (Kant havia-o garantido no Supremo Bem), representando os atributos do bem e da moral, ambos devendo ser reconhecidos éticamente pelos cidadãos. Só assim se garantiria a liberdade e a igualdade, preocupação maior de todos os politólogos coevos da Revolução Francesa (Rousseau, Kant, Hegel, Constant, Tocqueville e Stuart Mill. Quando não reconhecidos aqueles (o bem e a moral no direito), sobreviria a revolução e a violência.

32 Mas as mulheres não têm direito à participação porque «A família, como pessoa jurídica, será

representada perante os outros pelo homem, que é o seu chefe.». Cf Hegel, 1976, Princípios ..., § 171, p. 163.

2) Hegel sistematizou a teoria da burocracia. Não pela primeira vez. Rousseau já lhe havia inventariado todos os males no Contrato Social

34. Hegel inventariou-lhe as vantagens. Os Funcionários representam o

Estado. São «missionários», desinteressados, regulam universalmente e só conhecem os casos particulares pela norma universal.

3) Hegel teorizou a democracia corporativa e orgânica. Não há eleições

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