• Nenhum resultado encontrado

Um Estado de autonomia instituinte e de soberania limitada e contratualizada

JOHN LOCKE (1632 – 1704)

3. Características gerais do Estado Liberal Clássico

3.1. Um Estado de autonomia instituinte e de soberania limitada e contratualizada

O percurso teórico e histórico que, em síntese, acabámos de fazer, inicia-se, segundo Jean TOUCHARD (1970: 67- 72), em 1603, data da primeira edição de Politica Methodice Digesta 107, de Joannes Althussius (1557 – 1638), preconizando

uma teoria do Estado de Poder Limitado, ainda que articulada numa sociedade de natureza organicista, baseado no federalismo subsidiário de estados regionais e de

106 O conceito de Estado Ultra-Mínimo que Nozick propõe estabelece-o em oposição ao conceito de

Estado Mínimo, proposto por Friedman e por Hayek. Neste, o Estado tem deveres para com todos os indivíduos mas, para Nozick, o Estado Ultra-mínimo «fournit des services de protection et de respect des droits seulement à ceux qui achètent ses polices de protection et de defense.» (NOZICK, 1988: 45).

107 Na realidade, a data que é comumente referida é a de 1614, ano da terceira edição da obra, depois de

Althussius ter experimentado a sua teoria através do desempenho das funções de síndico no município de Emden.

comunas, iniciando assim os contributos para a construção teórica do Estado de Soberania Limitada, na forma de Estado Liberal.

Com este conceito de «Estado de Soberania Limitada», queremos significar, antes de mais, uma antítese do «Estado de Soberania Absoluta», autoritário, concentrado, quase sempre invocando a origem divina do poder e, por isso, não contratualizado, não descentralizado e, raramente, desconcentrado. Neste «Estado de Soberania Absoluta», o Monarca absoluto impôs aos homens, fosse com o consentimento destes, como teorizado por Thomas Hobbes 108, fosse por imposição

imperial ou monárquica, a partir da usurpação/ substituição do poder papal pelo do imperador / monarca, como teorizado por Jean Bodin 109 , uma soberania absoluta,

caracterizada por uma relação de domínio total do Estado em relação à Sociedade Civil

110 .

Com o conceito de «Estado de Soberania Limitada» queremos significar também, e sobretudo, «Estado de Soberania Partilhada», dividida, mediante acordo social entre os representantes dos «interesses e poderes envolvidos» 111, acordo

108 Cf. Capítulo II, secção «2.1.2. Thomas Hobbes e o «Deus Mortal»». É importante reter, apesar de tudo,

a distinção entre o absolutismo de Thomas Hobbes (1651) e o absolutismo de Jean Bodin (1614) . Para Thomas Hobbes, o poder do príncipe assenta no consentimento do Povo que o delegou no Monarca, para o exercer livremente, de acordo com o direito natural e com a vontade de Deus. Assim, é possível ver na teoria de Hobbes, o embrião do poder burocrático do Estado, inerente à democracia representativa centralizada, de mandato livre (cf. Michel TERESTCHENKO, 1996, Les grands

courants de la Philosophie Politique, p. 42) .

109 Cf Capítulo 2, Secção «2.1.1, Jean Bodin e a República Soberana». Para Jean Bodin, o poder do

Monarca é de origem divina e indivisível. Por isso, o Monarca é infalível e inimputável perante os homens. Bodin será, portanto, o verdadeiro fundamentador do Estado Absoluto (cf Nogueira de BRITO (2000: 8-9).

110 Um bom retrato desta combinação entre poder temporal e espiritual no absolutismo real pode

encontrar-se logo no início da obra de Robert Michels (2001: 25). Ao ensaiar a distinção entre absolutismo e democracia, escreve Michels ironizando: «A monarquia absolutista baseia-se na vontade de um único indivíduo. Sic Voleo, Sic jubeo. Tel est mon bon plaisir. Um manda, os outros obedecem. A vontade desse um tem o direito de se sobrepor à vontade da nação. Vestígio disso é, ainda hoje, o direito de veto do soberano nas monarquias constitucionais. O fundamento jurídico desse estado de coisas vai buscar os seus motivos à metafísica transcendental. A fundamentação lógica de todas as monarquias assenta no facto de se reclamarem de Deus. Deus é trazido para a Terra e passa a servir de apoio legal do poder monárquico: é o chamado direito divino. Deste modo, do ponto de vista do direito constitucional, o sistema monárquico é eterno e imutável, intocável por parte do direito ou da vontade dos homens, como se assentasse sobre um elemento de natureza supraterrena. A destituição legal ou jurídica da monarquia é, portanto, uma impossibilidade, um conto infantil, inventado por politiqueiros. Legalmente a monarquia só pode ser substituída por Deus. E a vontade de Deus é insondável.». Apesar de violentas estas frases de Michels, o certo é que a história confirma a tese de que a monarquia não pode ser apeada juridicamente, tendo-o sido sempre por via revolucionária.

111 Tenha-se em atenção o significado contextual desta expressão que nunca foi concorde ou comum entre

liberalismo e democracia. Para o liberalismo político, os «interesses e poderes envolvidos» serão sempre de poucos ou de muitos mas nunca de todos, embora sempre de mais gente à medida que se entrava na segunda metade do século XIX, mesmo no liberalismo avançado e quase democrático de John STUART MILL, para quem o voto deve ser restringido às pessoas minimamente esclarecidas e proprietárias porque a propriedade é a base da cidadania. A democracia, desde o último quartel do

plasmado num «contrato social» vertido na «Constituição Constituinte» de cada Estado, na expressão original de Emanuel Sieyès (1748 – 1836), em 1791 112, repetida

por Hannah ARENDT (1971: 163) e por Nogueira de BRITO (2000: 10-11).

século XIX ao século XX, partindo da concepção de Rousseau sobre a igualdade, adoptada pelo socialismo democrático, verá na extensão da igualdade perante a lei e da igualdade de direitos a

«conditio sine qua non» para a cidadania e, através dela, para a democracia política real e social (Cf

Norberto BOBBIO, 1989: 11- 20). Assim, nem mesmo na Revolução Francesa, o Povo tinha todo direito a voto.

112 Emanuel José SIEYÈS (1748 – 1836) foi, em França, o principal teórico constitucional do período

revolucionário pré-bonapartiano (1789 – 1798). Fundador do Clube dos Jacobinos, foi sucessivamente, membro da Constituinte, da Convenção, do Conselho dos Quinhentos, do Directório e Cônsul. É considerado por Marcel Prélot e Georges Lescuyer (2001 - II, op. cit., 75-80, o iniciador e o terminador da Revolução Francesa, o criador da ideia de «poder constituinte» e «poder constituído» (1788) e ainda o verdadeiro iniciador do liberalismo em França, com a sua teoria da soberania nacional, que reside na «nação» e da soberania popular, que não reside no povo mas nos seus representantes («o povo só deve querer e agir por intermédio de representantes»). A soberania popular apenas se manifesta de vez em quando nos actos da eleição que, para Seyès é delegação de poder.

Os autores citados consideram-no mesmo o grande iniciador da Revolução Francesa com o texto «O

que é o Terceiro Estado? (Maio de 1789), em que defende que todo o poder é representativo, em

oposição a Rousseau. A resposta que ele próprio dá para o que é o Terceiro Estado não poderia ser mais elucidativa para o futuro da democracia no Ocidente: «O que é o Terceiro Estado? – Tudo. O que é que ele foi até agora na ordem política? – Nada. O que é que ele quer? – Tornar-se alguma coisa.» ( Sieyès, citado por Marcel Prélot e Georges Lescuyer (2001 - II, op. cit., p. 78).

Importa reter que a oposição a Rousseau é total: para este são os indivíduos que detêm a soberania. Para Sieyès, é a nação, como conjunto de indivíduos constituídos em comunidade política. Sem ela, não existe indivíduo, o que parece ser um retorno à teoria organicista de Aristóteles, que prevalece também no absolutismo. Mas Sieyès concede que o indivíduo é titular de direitos independentemente da comunidade política. Aqui reside o seu liberalismo.

Para Sieyès, a construção da Constituição é um processo histórico de acção- reflexão –intervenção, integrando o passado, o presente e o futuro. Como sugere Nogueira de BRITO, os americanos, ao contrário dos continentais, não tiveram que negociar e pactuar com as instituições do passado para construírem a sua Constituição. Mas os Europeus, sim. Por isso «Era, pois, natural que, na sequência da Revolução Francesa se tivesse cedido à tentação de colocar o povo no lugar do rei, vendo no primeiro, tal como acontecia com o segundo, a fonte de um poder absoluto.». (Cf. Miguel Nogueira de BRITO (2000: 6-7). E nós acrescentaríamos, perfilhando Norberto BOBBIO, 1989: 13, que o liberalismo, enquanto teoria política, nasceu tão muito mais cedo (1690, com John Locke) em Grã-Bretanha, que no Continente porque ali o absolutismo foi apenas transitório e com muitas revoluções pelo meio (1629 – 1688), e também porque o mesmo liberalismo se vinha construindo desde 1215, ano em que João-Sem-Terra acordou, mediante a Magna Carta, com os nobres, a permanência no poder como seu representante em troca da outorga de direitos políticos, sociais e de propriedade àqueles, ou como o autor citado escreve, de «facultades y poderes que serám lhamados en los siglos posteriores «derechos del hombre»» e que «son reconocidos com el nombre de «libertad» (libertates, franchises, freedom), o sea, de esferas individuales de acción y posesión de bienes protegidas ante el poder del rey.».

Por outro lado, como acentua Antoni Jutglar, o progresso económico ocorrido em Grã-Bretanha no século XVI, a par da secularização do poder político, também operada ao longo deste século, criou as condições para um diálogo de poderes consolidados a par da libertação da Sociedade Civil face ao poder eclesiástico. E o autor acrescenta que, na realidade, as guerras civis, de 1629 a 1688, nada mais são do que uma crise de luta e amadurecimento dos diferentes poderes que vão constituir, a partir de 1688, o liberalismo parlamentar inglês, contra o governo absolutista dos . Daí que, segundo o mesmo autor, a Grã-Bretanha levasse, em 1700, cem anos de avanço de progresso económico e tecnológico

A partilha da soberania e daquilo que nela é essencial em termos de relações entre o Estado e a Sociedade Civil – a definição das funções de domínio, de legislação, de regulação e de coerção – acabou por constituir-se como resultado de um lento processo de negociação entre poderes e contrapoderes, constituídos pelo Monarca, de um lado, e pelas diferentes «sociedades civis», por outro.

Como refere Samuel EISENSTADT 113, os representantes destas diferentes

«sociedades civis» (autonomias territoriais, ligas de nobres, ligas de agricultores, ligas de comerciantes e ligas de corporações), geradas ao longo do processo de constituição dos Estados modernos, fosse na luta contra o Papado, fosse na luta contra a tendência absolutista dos monarcas, fosse também na luta entre tendências religiosas, ou fosse ainda em decorrência dos movimentos burgueses iniciados no século XII, conseguiram, se não impor-se, pelo menos negociar com os novos monarcas, e fazer valer direitos e prerrogativas que tinham conquistado no longo processo de constituição daqueles Estados.

O movimento da emergência do liberalismo 114, no contexto dos séculos XVI

e XVII, apresenta-se assim como afirmação e reivindicação de direitos de liberdade negativa 115, de autonomia política e organizacional, e de liberdade e de tolerância

religiosas por parte dos grupos sociais mais poderosos, face ao Monarca.

sobre o continente europeu, justificando assim também a sua produção teórica rumo ao liberalismo. A ideia parece-nos ignorar a realidade da Alemanha, bastante semelhante à Inglesa, ainda que com diferente produção teórica (Cf. Antoni Jutglar ( 1973: 402).

113 Samuel Noah EISENSTADT (2000: 17) escreve: «Na Europa, o desenvolvimento de estados e

colectividades modernas e a transformação da noção de soberania estiveram intimamente ligados às mudanças na estrutura de poder na sociedade, nomeadamente ao aparecimento de vários centros de poder, sobretudo político e económico, e de alguns núcleos de um novo género de sociedade civil e de um novo tipo de cenário ou de esfera pública.». (Idem. Ibidem)

114 Segundo Thierry Chopin (2002: 9-11), o liberalismo apresenta as seguintes características maiores: 1) o

indivíduo é a base de toda a vida e organização sociais, porque portador, originariamente, de direitos inalienáveis tais como o do direito à vida, à segurança, à propriedade privada, à liberdade de iniciativa, de expressão e de reunião; 2) os seres humanos são iguais nas faculdades do corpo e do espírito e, por isso, estão em competição ou, mesmo, luta, uns com os outros, na prossecução dos seus interesses; 3) o ser humano é individualista e egoísta e obedece, essencialmente, às suas paixões naturais de dominação e de reputação, ideia cara ao moralismo jansenista do século XVII e a Pascal (1623 – 1662); 4) a sociedade não é uma comunidade mas sim uma associação de indivíduos que elaboram pactos e acordos entre si para perseguirem os seus interesses e o seu bem-estar; 5) a vontade individual e a liberdade de contratar, intervir e agir, nos planos cívico, económico e político tornam-se as principais fontes de legitimidade da ordem social; 6) esta ordem social resulta pois das interacções e transacções entre os indivíduos livres e instituições por eles organizadas, reproduzindo as tendências de poder e de dominação social que se forem estabelecendo; 7) em consequência, não pode haver lugar para uma

comunidade de cidadãos, à maneira Rousseauneana, que imponha uma ordem social, a partir de cima

(a não ser o direito à vida, à liberdade e à propriedade), que impeça a interacção e o estabelecimento de relações de poder e de dominação livres, entre as pessoas, grupos, comunidades e organizações; 8) e assim, o poder político só pode existir se consentido e contratualizado pelo «povo», isto é, entenda-se, essencialmente, pelas elites aristocráticas e burguesas.

115 Norberto BOBBIO (1989: 21) esclarece este conceito de liberdade negativa como tratando-se de um

domínio económico-socio-político e espacio-temporal nos quais não há lei que imponha deveres nem lei que restrinja direitos, ou seja, um domínio sem restrições a não ser as derivadas do direito natural (o direito à vida, à propriedade, à segurança e à liberdade de circulação), conforme construído pela escola

Não admira por isso que em sociedades com menos autonomia comunal e corporativa e menos evoluídas do ponto de vista agrícola, comercial e industrial, os movimentos absolutistas tivessem tido menos dificuldades em impor-se do que na Alemanha, na Grã-Bretanha, na Holanda e na Dinamarca, países onde o debate religioso, as autonomias regional e comunal e ainda o peso das diferentes corporações se constituíram não só em obstáculos ao progresso do absolutismo como em factores de construção e representação intelectual de uma ordem político-social baseada na interacção social, no conflito e no equilíbrio de forças económico-sócio-políticas, culturais e religiosas.

Neste contexto, tal representação, transformada em ideário liberal, a partir de meados do século XVII, assume a existência de «sociedades civis» com uma ordem económico-sócio-política de liberdade e de poder autónomo face ao novo monarca unificador do país contra aquelas poliarquias medievais. E a assunção desta existência, contra a tendência, se não absolutista, pelo menos centralizadora, do monarca, é feita para garantir, com base na ideologia do jusnaturalismo, o reconhecimento e a manutenção de tal ordem.

Estes dois desideratos conduziram então à exigência da construção (por contratualização) de um sistema legislativo no qual os representantes dos membros das diferentes «sociedades civis» participassem na elaboração e aprovação das leis, nascendo assim os parlamentos, de que o caso inglês é o mais representativo.

A emergência histórica do liberalismo 116 é assim, na tese de John

STRAYER (1986), o resultado da luta secular entre uma ordem social saída da evolução das autonomias e corporações medievais, mas incorporando elementos da autonomia e da liberdade que lhes eram características, contra as tendências unificadoras e constitutivas dos Estados-Nações, operadas pelos monarcas absolutistas.

A defesa da liberdade dos contra-poderes das «Sociedades Civis» opera-se, como dissemos antes, em termos político-ideológicos, ao longo dos Séculos XVI e XVII, em torno da construção da ideologia do jusnaturalismo ou escola do direito natural 117, segundo a qual todos os homens têm, por natureza, alguns direitos

do jusnaturalismo. Segundo Bobbio, a liberdade negativa é, por isso, «(...) la esfera de la acción en la que el individuo no está constreñido por quien detenga el poder coactivo a hacer lo que no quiere y a la vez no es obstaculizado para hacer lo que quiere.».

116 Marcel PRÉLOT e Georges LESCUYER (2001) agrupam a evolução do liberalismo nos seguintes

movimentos intelectuais: o Pré-liberalismo (Fénélon, Saint-Simon, Locke, Montesquieu e Rousseau); o Liberalismo Clássico (Adam Smith, Stael, Constant, Guizot); o Liberalismo Democrático (Chateaubriand, Tocqueville, Lamartine) ; o Liberalismo de influência Católica, o Liberalismo Anarquista e o Liberalismo Radical. Mas, Terestchenko (1996) agrupa os liberalismos em: Económico (Adam Smith e Friederick Von Hayeck), Político (Edmund Burke, Benjamim Constant, Alexis de Tocqueville e John STUART MILL), Liberalismo Utilitarista ( Jeremy Bentham), Liberalismo Contra- Revolucionário (Joseph de Maistre e Louis de Bonald) e Liberalismo Anarquista (Max Stirner, Pierre Proudhon e Michel Bakounine. Cf. Marcel PRÉLOT e Georges LESCUYER (2001) e Michel TERESTCHENKO, 1996.

117 Os nomes mais conhecidos desta escola são os do holandês Hugo Grócio (1583 – 1645), que defendeu

o direito do mais forte, tanto nas relações socais internas aos países como dos países entre si, e o do genebrino, que procurou subtrair o direito natural da alçada da religião. Cf. Jean Touchard (1970, Vol. 3: 105-108). E o do próprio John Locke (1632 – 1704), que procurou demonstrar, contra Robert Filmer

fundamentais, anteriores à constituição da sociedade, tais como o direito à vida, à propriedade, à liberdade, à segurança e à felicidade. O que conduzirá à defesa da inviolabilidade de tais direitos, perante a acção legislativa do Estado Soberano, ou seja, à defesa de esferas de acção civil que a soberania estatal deveria respeitar.

Com esta defesa, os criadores da filosofia política liberal operavam, no dizer de Norberto BOBBIO, uma «revolução Copernicana» 118, pela qual o Estado seria

concebido a partir dos indivíduos e suas organizações e associações e não mais a partir do poder soberano de quem o representa, abandonando assim as perspectivas organicistas 119 do Estado e da Sociedade, pelas quais quer um quer a outra são

anteriores aos indivíduos e se lhes sobrepõem.

Nestes termos, o organicismo seria compatível com o absolutismo e com sociedades consensuais e deterministas 120, enquanto que o liberalismo se tornaria

(1630), principal teórico, com Hobbes, do absolutismo inglês da primeira metade do século XVII, que o «estado natural do homem» é um estado de liberdade e de igualdade, e que é nele que devemos procurar o fundamento para a construção do verdadeiro poder político (Cf. John LOCKE, 1999: 35-36). Jean Touchard (idem, Ibidem) cita ainda Barbeyrac (1674 – 1744) e Burlamaqui (1694 – 1748).

118 Cf. Norberto Bobbio (1989: 16). É de notar que o conceito de de «revolução copernicana» ou

«coperniciana» é originário da teoria do conhecimento e da epistemologia. Foi usado pela primeira vez por Georges Pascal para exprimir a inovação epistemológica da descoberta do sujeito epistémico por Emanuel Kant (1781) mas outros autores retrocederam no tempo e entenderam que o primeiro criador de tal sujeito, enquanto construtor autónomo do conhecimento, foi René Descartes (1642), o verdadeiro criador da filosofia e moral modernas, através da descoberta da «res cogitans» ou «cogito», autonomizada em relação ao mundo material e em relação a Deus. Podemos assim ver em Descartes um contributo para a autonomia do indivíduo enquanto portador de direitos. Cf. Georges PASCAL (1966), Pour Connaître la Pensée de Kant, Paris, Bordas e

119 As perspectivas organicistas decorrem da filosofia política aristotélica segundo a qual o homem e o

cidadão só existem porque existe, antes deles, uma sociedade organizada, na qual eles se integram, e da qual não podem sair, baseada num conjunto de pressupostos que lhe são externos e transcendentes. Nesta filosofia política, sobre a qual S. Boaventura (1221-1274) e S. Tomás de Aquino (1225-274) construiram a filosofia tomista do conhecimento, da sociedade e da política, o todo não só é anterior às partes que o constituem como prevalece sobre elas. No século XX, as teorias sociológicas funcionalistas, de onde sobressaem Émile Durkheim e Talcott Parsons, e os autoritarismos e totalitarismos político-sociais adoptam, grosso modo, esta perspectiva.

120 Cf. Michel TRESTCHENKO (1994: 9 – 21). O autor põe em confronto duas teorias sobre a relação

entre o indivíduo e a sociedade (p.9): a teoria segundo a qual a sociedade é «une communauté, un tout, un corps organique» e a teoria segundo a qual a sociedade é uma associação de indivíduos «unis par leurs intérêts réciproques en vue de l`avantage mutuel». A sociedade poderá assim ser entendida como «universitas ou unité organique» ou como «societas». E, segundo o autor, «Cette oposition réfracte celle qu`il y a entre la vision antique de la cité, «la belle harmonie» grecque (Hegel) et la vision libérale individualiste des sociétés modernes.». E continua (pp.9-10): «Elle vise enfin deux conceptions différentes de la souveraineté: l`autorité que la société toute entière érigée en corps politique, l`État exerce de façon absolue sur l`individu, et la souveraineté limitée, relative, bornée par l`indépendance de la sphère privée, c`est-à-dire de la vie individuelle.».

Terestchenko fundamenta ainda as teorias organicistas ou consensuais ou deterministas em Rousseau, Kant, Hegel e Durkheim, entre outros (p. 12): eles «(...) témoignent d`un commun refus de considérer le lien social du seul point de vue de la réalisation des intérêts et des égoismes. Ils opposent à la théorie individualiste une conception organiciste de la société. La société n`est pas simplement ce «système des besoins» que condamne Hegel, fondé sur «la dognatique

compatível com sociedades abertas e conflituais, instituindo a negociação e o contratualismo como processo de construção das ordens política, económica, sócio- cultural e religiosa e de resolução dos conflitos.

Isto significaria que o liberalismo seria também o herdeiro natural dos ideais humanistas, racionalistas, experimentalistas, astronómicos e cosmológicos do Renascimento, colocando o homem, enquanto indivíduo, no centro da administração e criação político-sócio-cultural, fazendo, por isso, inverter a hierarquia do universo que,

Outline

Documentos relacionados