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LIVRO I – PARTE GERAL: PROPEDÊUTICA GERAL

3 A DECADÊNCIA NOS PLANOS NORMATIVO, PROCEDIMENTAL E

A decadência, bem como quase a totalidade das entidades jurídicas, pode ser estudada nas instâncias normativa, procedimental e factual.

Em homenagem ao rigor, Paulo de Barros Carvalho sintetiza que o ato seria sempre o resultado de um procedimento e que tanto o ato como o procedimento hão de estar, invariavelmente, previstos em normas do direito posto. No mesmo contexto, ressalta a ambiguidade do vocábulo procedimento, esclarecendo que dele se utiliza, nesse momento particular, como “atividade físico-material e intelectual para a produção de um ato jurídico-administrativo” e não como um conjunto ordenado de atos administrativos e termos que evoluem para a consecução de um ato específico, que seria a sua finalidade44.

Pois bem. Ao abordarmos a análise da decadência em sua instância normativa, estamos falando dela enquanto regra integrante do sistema de direito positivo. Trata-se da norma decadencial, consistente de um antecedente e de um consequente, sendo que no primeiro se descreve um evento de potencial ocorrência e no segundo se determina a desconstituição do direito subjetivo de que o sujeito ativo esteve investido.

Na condição de norma, desfruta da comum estrutura de todas as unidades do ordenamento, consistente de um antecedente ou hipótese e de um consequente ou tese. A hipótese descreve as notas predicativas de um evento de possível ocorrência: ‘dado o decurso de certo trato de tempo, sem que o titular do direito o exercite’; e a

tese prescreve a desconstituição do direito subjetivo de que o sujeito ativo esteve investido: “deve ser a extinção do direito”45.

Assim, melhor explicando, sob o enfoque normativo geral e abstrato, a hipótese da norma decadencial descreve o fato do não exercício do direito de constituir o crédito tributário dentro de certo período de tempo. O consequente, por sua vez, prescreve a perda deste direito por seu titular, no caso o Fisco.

Explicitaremos, por meio de um exemplo, todos os critérios da hipótese e do consequente da norma decadencial.

A hipótese apresenta os seguintes critérios:

(i) critério material: responsável por apontar a ação, que no caso da norma de decadência é justamente o não exercício do direito de constituir o crédito tributário;

(ii) critério espacial: responsável pelo apontamento do local da realização do fato da inércia;

(iii) critério temporal: responsável por apontar o momento da ocorrência da inércia, que, no caso da decadência, é marcado pelo dies ad quem do prazo decadencial.

O consequente, por sua vez, identifica a relação jurídica e apresenta os seguintes critérios:

(i) critério pessoal: responsável por apontar os sujeitos da relação; (ii) critério que informa o objeto da relação.

O exemplo que utilizaremos será de decadência do direito do Fisco para lançar o Imposto sobre a Propriedade de Veículos Automotores no Estado de São

Paulo. Pressupomos, por óbvio, a existência de uma outra norma que devidamente atribua competência ao agente fiscal para realizar tal lançamento. A norma de decadência respectiva disporá: Hipótese - Se for a inércia do fisco (critério material), cinco anos após o 1º dia do exercício financeiro seguinte à ocorrência do evento (critério temporal), no Estado de São Paulo (critério espacial), deve ser – Consequente – o dever jurídico do agente administrativo não mais lançar e o direito subjetivo do contribuinte de não mais sofrer o lançamento do IPVA.

Em última análise, a norma de decadência do direito do Fisco determina a não competência da autoridade administrativa para constituir o crédito tributário.

Pois bem. Já no campo do “procedimento”, a palavra decadência é usada para denotar aquele sentido de procedimento completo, em que se pode observar além do transcurso de lapso temporal, combinado com a inércia do titular do direito, também a tradução em linguagem competente. Em outras palavras, está abrangido pelo procedimento desde o termo a quo do prazo decadencial até as últimas providências normativas para a satisfação do direito subjetivo pelo ato jurídico que finalmente constitui o fato decadencial.

Resumindo magistralmente essas ideias, Paulo de Barros Carvalho enuncia:

[…] como providência epistemológica de bom alcance, podemos tomar ‘procedimento de decadência’ como processo ou atividade de preparação, que tem início no termo disposto em lei para a contagem do prazo e término no acto de produção do fato jurídico, com a expedição do documento competente; ‘acto da decadência’ como o resultado final do procedimento, o fato jurídico decadencial, composto por enunciados de teor prescritivo, consubstanciados num documento que passa a integrar o sistema do direito positivo; e a ‘norma da decadência’ como a previsão legal abstrata tanto do acto como do procedimento, postulada com a seguinte formulação: dado o decurso de certo trato de tempo, sem que o titular do direito o exercite, com

início no marco especificado em lei e término com a expedição do documento competente; então deve ser a extinção do direito.46

Parece relevante frisar, nesse momento, que não deve causar admiração o fato de que muitas vezes a palavra decadência é utilizada para se referir a acontecimentos da vida fenomênica e em outras para se referir a normas jurídicas. Trata-se de acontecimento corriqueiro e comuníssimo no direito, uma vez que esse é justamente o movimento do raciocínio jurídico-científico.

Isso em razão do fenômeno da positivação jurídica se estabelecer justamente tendo por base essa dualidade norma/fato, de modo que se considera absolutamente comum que normas sejam construídas na mente do intérprete a partir de textos do direito positivo que juridicizam ocorrências da realidade em que vivemos, o que acaba por provocar a edição de normas hierarquicamente inferiores, até chegar ao evento-conduta que se pretende efetivamente regular com o direito.

Visto isso, é certo que o vocábulo decadência também pode ser estudado como um acontecimento do mundo fenomênico, vertido em linguagem jurídica competente. É o que acima chamamos de “fato decadencial”.

Por esse ângulo, a decadência nada mais é do que um acontecimento que se dá em tempo e local determinados. Consiste justamente no acontecimento de a autoridade competente, por parte da entidade tributante, deixar transcorrer o lapso temporal previsto em lei sem efetuar o ato de lançamento tributário, que era de sua atribuição. Ora, tal evento, uma vez transcrito em linguagem jurídica competente, passa a ser considerado como “fato decadencial” e terá como consequência lógica o efeito extintivo correspondente.

Nesse sentido, as regras de decadência, como bem salienta Eurico Marcos Diniz de Santi, só produzem efeitos depois de aplicadas, pois o fluxo do tempo não opera sozinho a eficácia de extinguir direitos. É preciso ato humano de aplicação do direito que objetive fatos extintivos e seus efeitos nas respectivas normas individuais e concretas de decadência47.

Assim, exemplificativamente, suponhamos que um determinado Auditor Fiscal da Receita Federal tenha deixado que se passasse prazo superior a cinco anos sem realizar o ato de lançamento de um tributo federal sujeito a lançamento de ofício, que era de sua competência. Uma vez que esse acontecimento específico seja vertido em linguagem jurídica apropriada, poder-se-á falar em fato decadencial, com a consequência que lhe é própria, que, nesse caso, frise-se, não é a extinção do vínculo obrigacional tributário (que sequer chegou a existir), mas, sim, o desaparecimento do direito da Fazenda, consistente em exercer sua competência administrativa para constituir o crédito tributário.

Mais uma vez, é Paulo de Barros Carvalho quem nos esclarece que

[…] reconhecido o fato da decadência, sua eficácia jurídica será a de fulminar a possibilidade de a autoridade administrativa competente realizar o ato jurídico-administrativo do lançamento. Sabemos que, sem efetuá-lo, não se configura o fato jurídico tributário em sentido estrito e, por via de consequência, também não se instaura a obrigação tributária. É fácil concluir que, nesse caso, a decadência não extingue a relação jurídica tributária, mas tão somente a competência para que os agentes do Poder Tributante celebrem o ato de lançamento.48

A decadência extinguirá o vínculo tributário somente nos casos em que tiver sido alegada pelo interessado e reconhecida pelo Poder Judiciário ou outro órgão

47 SANTI, Eurico Marcos Diniz de. Decadência e prescrição no direito tributário. 4 ed. São Paulo:

Max Limonad, 2011, p. 25.

credenciado pelo sistema para tanto. E isso só poderia ocorrer, obviamente, depois de ter nascido a obrigação tributária.

Imaginemos, exemplificativamente, que um contribuinte já tenha sido notificado acerca de lançamento em face dele efetuado. Irresignado, apresenta impugnação em face de tal lançamento ainda na esfera administrativa, tendo como fundamento a suposta decadência. Caso a autoridade administrativa acolha as razões da impugnação, fará constar do ato decisório menção à ocorrência da decadência, que será admitida. Nessa hipótese, sim, podemos falar no efeito terminativo da relação do laço obrigacional, com a extinção da obrigação tributária.

Mais uma vez é Paulo de Barros Carvalho quem nos explica com singular clareza:

Logicamente, tudo se passa assim: sobrevindo o fato decadencial, desaparece o direito subjetivo público de que era titular o sujeito ativo e, por conseqüência, o dever jurídico correlato, o que significa dar por extinto o crédito, o débito correspondente e, obviamente, a própria relação como um todo.49

Dos três enfoques que se podem dar à decadência, em nosso estudo concentrar-nos-emos na análise “normativa” da decadência do crédito tributário.

LIVRO II – PARTE ESPECIAL – DECADÊNCIA TRIBUTÁRIA E