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LIVRO II – PARTE ESPECIAL – DECADÊNCIA TRIBUTÁRIA E SUA

2 DECADÊNCIA E O VEÍCULO INTRODUTOR APROPRIADO

2.3 Lei Complementar e Normas Gerais em Direito Tributário

Nosso sistema constitucional tributário atribui importantíssimo papel à lei complementar prevista no artigo 146 da Constituição Federal. Vejamos o texto constitucional:

Art. 146. Cabe à lei complementar:

I - dispor sobre conflitos de competência, em matéria tributária, entre a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios;

II - regular as limitações constitucionais ao poder de tributar;

III - estabelecer normas gerais em matéria de legislação tributária, especialmente sobre:

a) definição de tributos e de suas espécies, bem como, em relação aos impostos discriminados nesta Constituição, a dos respectivos fatos geradores, bases de cálculo e contribuintes;

b) obrigação, lançamento, crédito, prescrição e decadência tributários; c) adequado tratamento tributário ao ato cooperativo praticado pelas sociedades cooperativas.

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Se considerarmos, para fins de estabelecer a hierarquia, o critério da qualificação do processo legislativo, então a lei complementar será sempre hierarquicamente superior à lei ordinária, pois exige um quórum qualificado para aprovação.

Por sua vez, se considerarmos exclusivamente o aspecto formal decorrente do artigo 59, parágrafo único, da CF, com a edição da Lei Complementar nº 95/98 a lei complementar sempre será hierarquicamente superior às demais leis (ordinária, delegada, medida provisória, decreto legislativo e resolução), uma vez que todas devem observar as formalidades impostas por essa Lei Complementar.

d) definição de tratamento diferenciado e favorecido para as microempresas e para as empresas de pequeno porte, inclusive regimes especiais ou simplificados no caso do imposto previsto no art. 155, II, das contribuições previstas no art. 195, I e §§ 12 e 13, e da contribuição a que se refere o art. 239. (Incluído pela Emenda Constitucional nº 42, de 19.12.2003).

Nesse contexto, a doutrina se divide em duas correntes principais acerca da função da lei complementar. São as denominadas correntes tricotômica e dicotômica da lei complementar tributária.

A querela entre a corrente dicotômica e tricotômica acerca da função da norma geral de direito tributário é bastante antiga, como bem sintetiza Rafhael Fratari101, remonta pelo menos à década de 40, na qual se reclamava a codificação do Direito Tributário brasileiro. Esteve também presente nas discussões que antecederam a Ordem Constitucional de 1946, mas ganhou fôlego após a constituição de 1967, com a Emenda nº 01 de 1969, época em que foi expressamente adotada no texto constitucional a expressão normas gerais de direito tributário. Desde então, a discussão agita a doutrina nacional.

Para a corrente tricotômica102, a lei complementar seria voltada a uma tríplice finalidade: (i) estabelecer normas gerais de direito tributário; (ii) dispor acerca dos conflitos de competência; (iii) regular as limitações constitucionais ao poder de tributar.

Para essa corrente, portanto, as normas gerais de direito tributário formariam um gênero apartado das disposições sobre os conflitos de competência e sobre a regulação das limitações constitucionais ao poder de tributar e serviriam para

101 Decadência e prescrição no direito tributário. 4. ed. São Paulo: Max Limonad, 2011, p. 250. 102 Defendida por Ives Gandra da Silva Martins e Sacha Calmon Navarro Coelho.

outros fins que não apenas estes, como delinear o sistema tributário em relação aos seus princípios operacionais e outros temas.

O ponto central em que se funda essa posição é a necessidade prática de racionalização do Sistema Tributário, levada a cabo por normas gerais que teriam por escopo, além dos objetivos admitidos pela escola dualista, garantir a uniformidade jurídica dos procedimentos que dariam ensejo ao nascimento e extinção do crédito tributário. O fundamento seria a necessidade, tanto para o Estado como para o contribuinte, de uniformizar as linhas gerais da tributação, criando e garantindo aos particulares um sistema tributário mais seguro e estável.

Para a corrente dicotômica103, em contraposição, a única maneira de interpretar as normas gerais de direito tributário é afirmando que elas são justamente aquelas que dispõem sobre conflitos de competência entre as entidades tributantes e que regulam as limitações constitucionais ao poder de tributar.

A corrente dicotômica melhor prestigia o respeito aos princípios federativo e de autonomia dos municípios. Assim, a definição dos fatos geradores dos tributos, dos demais aspectos que lhe são ínsitos, bem como das normas que regulam os procedimentos para sua exigência seriam tarefa que caberia apenas ao ente político que recebeu a competência constitucional, e não ao legislador complementar.

Ainda segundo a corrente dualista, a legislação complementar somente poderia restringir a liberdade do legislador ordinário ao tratar dos temas previstos no inciso III do artigo 146 da CF na justa medida em que dispusesse sobre as limitações ao poder de tributar ou no caso de conflitos de competência. Assim, a corrente dualista

consegue bem definir qual seria o campo de atuação da norma geral de direito tributário.

Mesmo após a edição da Constituição de 1988 e com a atual redação do artigo 146, acima transcrito, continuam os grandes estudiosos do direito tributário a debater-se sobre essa divergência. É sem pretensão de oferecer uma solução à controvérsia que consignaremos a posição assumida neste trabalho.

Estamos mais uma vez com Paulo de Barros Carvalho, cujas lições, pela clareza, merecem transcrição:

Posso resumir, para dizer que o constituinte elegeu a legislação complementar como o veículo apto a pormenorizar, de forma cuidadosa, as várias outorgas de competência atribuídas às pessoas políticas, compatibilizando os interesses locais, regionais e federais, debaixo de disciplina unitária, verdadeiro corpo de regras de âmbito nacional, sempre que os elevados valores do Texto Supremo estiverem em jogo. A regra é a franca utilização das competências constitucionais pelas entidades políticas portadoras de autonomia. Quando, porém, qualquer daquelas diretrizes da Lei Maior estiver na iminência de ser violada pelo exercício regular da atividade legiferante das pessoas políticas, podendo configurar-se conflito jurídico no campo das produções normativas, ingressa a lei complementar colocando no ordenamento “normas gerais de direito tributário”, atuando na regulação das limitações constitucionais ao poder de tributar e regendo matérias que, a juízo do constituinte, parecem suscitar maior vigilância, estando por merecer, por isso cuidados especiais.104

Entendemos, assim, que é realmente necessária a existência de uma lei complementar veiculadora de norma geral, regulando as limitações constitucionais ao poder de tributar para garantir a segurança jurídica dos administrados, prescrevendo normas uniformes para serem seguidas pelos entes políticos tributantes. Evita-se, deste modo, uma multiplicidade de regulações próprias, nem sempre compatíveis entre si, o

104 Marketing de incentivo e seus aspectos tributários. Revista de Direito Tributário. São Paulo:

que certamente aumentaria a insegurança do contribuinte e diminuiria a racionalidade do sistema.

Em nossa opinião, as normas gerais de direito tributário previstas pelo inciso III do artigo 146 da Constituição Federal não têm o objetivo de amesquinhar a competência outorgada aos Estados, Distrito Federal e Municípios e tampouco discriminar esses entes políticos. Ao contrário, regulando as limitações ao poder de tributar, entendemos que tornam possível o adequado exercício de suas competências, pois todos os entes federativos são tratados de maneira uniforme e, em especial, uma norma geral obriga a que assim tratem os contribuintes, estejam onde estiverem nesse país de proporções continentais.

Cremos, também, que a segurança jurídica é diretamente privilegiada quando existe harmonia no tratamento dos administrados e no estabelecimento de regras impositivas para a exigência de tributos, uma vez que se restringem as peculiaridades que poderiam ser adotadas e multiplicadas pelos legisladores de cada um dos Estados ou de cada um dos milhares de municípios da Federação.

Nesse sentido, Paulo de Barros Carvalho pontua que:

[…] está-se diante de típico exemplo do papel de ajuste reservado à legislação complementar, para garantir a harmonia que o sistema requer. Seria um verdadeiro caos se cada ente político pudesse, a seu bel-prazer, fixar as normas que disciplinam, por exemplo, a suspensão da exigibilidade do crédito tributário e o surgimento e a extinção das obrigações tributárias.105

Acrescentamos, ainda, que o sistema impositivo dotado de norma geral acerca do procedimento de exigência do tributo é certamente mais eficaz e prático. Propicia uma execução mais eficiente e econômica das leis, de acordo com o princípio

105 Marketing de incentivo e seus aspectos tributários. Revista de Direito Tributário. São Paulo:

da praticidade, implícito no texto constitucional e que prescreve que o legislador deve tomar as medidas necessárias pra permitir a aplicação das leis em massa, desde que com isso não se desconsiderem direitos e garantias fundamentais do contribuinte.