• Nenhum resultado encontrado

LIVRO II – PARTE ESPECIAL – DECADÊNCIA TRIBUTÁRIA E SUA

1.1 O tempo e a decadência

Dentre todos os seres, somente o homem é capaz de raciocinar, dizem alguns. Outros invocariam como prerrogativa humana o ato de sorrir. Concordam todos, entretanto, que dentre um universo de fenômenos naturais, um é merecedor de destaque, por ser efetivamente perceptível apenas pelo ser humano: o tempo.

A humanidade sempre se preocupou com o tempo e com os efeitos dele em sua vida, desde os primórdios de sua existência.

Francisco Alves dos Santos Júnior50 menciona haver registros de que Tales de Mileto, filósofo pré-socrático, já se preocupava com o tempo, conseguindo identificar os solstícios e as estações do ano, bem como o período de duração deste em 365 dias.

Mais recentemente, na história da humanidade, a própria Bíblia faz clássica referência ao tempo51:

[…] há tempo de nascer e tempo de morrer; há tempo de plantar e tempo de colher; há tempo de matar e tempo de curar; há tempo de chorar e tempo de rir; há tempo de abraçar e tempo de não abraçar; há

50 SANTOS JÚNIOR, Francisco Alves dos. Decadência e prescrição no direito tributário do Brasil.

Rio de Janeiro: Renovar, 2001.

51 Eclesiastes 3, 1-8. In: BÍBLIA SAGRADA. Revista e Corrigida. Traduzida por João Ferreira de

tempo de buscar e tempo de perder; há tempo de amar e tempo de odiar; há tempo de guerra e tempo de paz.

Pois bem. Reportando-nos à extensa pesquisa efetuada por Rafhael Frattari, aprendemos que cada qual dos indivíduos tem percepção das durações temporais de acordo com a sua subjetividade e o interesse que possui no fluir do tempo. Isso é uma característica ínsita aos indivíduos.

Todavia, viver em sociedade exige que o individual ceda ao coletivo, nos mais diversos momentos, inclusive em relação às sensações individuais de tempo. Por essa razão, a percepção individual da passagem do tempo deve ceder a uma percepção mais generalizada, em especial nos casos em que ele é utilizado como parâmetro para atividades que interferem na vida do outro. É nesse momento que se torna essencial que os eventos do mundo natural sejam temporalizados pelo discurso jurídico.

Aprofundando-se nessa análise, o autor pontua:

[…] atualmente, o tempo rege a vida de todos, marcando as horas de trabalho e as de lazer, enfim, dando o ritmo da sociedade moderna. Por isso, a vida social requer que em várias situações as percepções individuais cedam espaço a delimitações objetivas em relação aos fenômenos que interessam à sociedade em geral, deixando de lado a importância das sensações pessoais do tempo. Releva-se a subjetividade da duração em prol da coordenação tempo social. Isso ocorre, especialmente, quando o tempo é usado como baliza para ações que possam interferir na subjetividade alheia. Daí a necessidade de que o discurso jurídico temporalize as condutas e fatos sociais.52

Sendo certo que o modo como funciona o tempo tem sido objeto de preocupação humana desde a antiguidade, como já frisado, temos que reconhecer a inegável importância do fluxo de lapso temporal não só em âmbito individual, como no trato social e coletivo. Desse modo partimos, do campo filosófico, para buscar

desenvolver um estudo sobre sua influência nas relações jurídicas, em especial no campo jurídico-tributário.

Fazemos um parêntesis para lembrar que utilizamos como premissa no presente trabalho que não existe um livre trânsito do mundo do ser para o mundo do dever-ser. Como já explanado em capítulo anterior, qualquer evento observado ou no mundo fenomênico somente adentra no mundo jurídico por meio de sua transcrição, por agente competente, em linguagem jurídica apropriada.

Não é diferente com os eventos relacionados ao tempo. O tempo colhido no mundo da realidade social precisa ser vertido em linguagem jurídica para que possa existir para o direito. Vejamos, a esse respeito, as palavras de Robson Maia Lins:

Mas a existência do tempo, sua construção enquanto realidade ordenada, ainda que este aparentemente ‘transcorra’ independentemente de nossas vontades, está condicionada à percepção humana e a uma tomada de consciência deste ‘passar’. Sem que o sujeito transforme sua percepção em linguagem o passar do tempo não integrará a realidade.53

O legislador, portanto, com o poder que lhe é conferido pelo próprio direito, cria o tempo no direito, bem como suas implicações. Como bem observa Renata Elaine Silva, “[…] o legislador nada mais é do que o deus do tempo no direito”54. O agente que o direito descreve como competente faz, por meio da descrição em linguagem apropriada, com que o tempo verificado no mundo fenomênico passe a fazer parte do direito e gerar efeitos jurídicos. A descrição, pelo agente competente,

53 As normas jurídicas e o tempo jurídico. In: Robles Morchón, Gregorio; Carvalho, Paulo de Barros

(Coords.). Teoria comunicacional do Direito: diálogo entre Brasil e Espanha. São Paulo: Noeses, 2011, p. 483.

54 Curso de decadência e de prescrição no direito tributário: regras do direito e segurança jurídica.

daquilo que já ocorreu acomoda-se na norma individual e concreta, enquanto que a norma geral e abstrata prevê fato de ocorrência futura.

Mas se o ser humano sempre se preocupou com o transcurso do tempo no mundo do ser, será que o mesmo podemos dizer do direito e do mundo do dever-ser? O homem competente – legislador – passou a criar normas que juridicizassem os efeitos do tempo desde os tempos do império do Direito Romano, quando já se cogitava da fixação de prazos concedidos aos interessados em impetrar ação contra terceiros. Daí teria surgindo o embrião do instituto da decadência, segundo afirma Margarete Gonçalves Barsani55, como forma da extinção do direito de cobrar o cumprimento de obrigações na seara cível.

Desde então muito evoluiu o direito. Perpetua-se, todavia, nos mais diversos ordenamentos jurídicos a invariável necessidade de referências temporais. Na maioria dos casos, o que se verifica é a determinação de prazos diversos, para impedir o excessivo prolongamento das relações sociais conflituosas. Mas não existe, contudo, norma sem referencial temporal algum.

Assim observando, Celso Antonio Bandeira de Mello adverte:

Tanto é verdade que não há como se conceber qualquer regulação normativa isenta de referência temporal, o que, aliás, serve para demonstrar sua absoluta neutralidade. Deveras: ou a lei fixa um tempo ao regular certa situação ou, inversamente, não fixa qualquer limite. Em ambos os casos há uma referência temporal. Numa é demarcada, noutra é ilimitada, mas ambas levam em conta o tempo, seja medido, seja continuado indefinidamente.56

Mas quando o direito sofre uma lesão e necessita de uma condenação ou constituição formal para existir, passa a necessitar de um marco temporal determinado.

55 Decadência e Prescrição no Direito Tributário. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, p. 03. 56 O conteúdo jurídico do princípio da igualdade. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 33.

Consciente disso e sempre enfatizando que o direito não pode ser perpétuo, Renata Elaine Silva explica que, se assim o fosse, ele não serviria para regular as relações sociais e harmonizar valores que a sociedade necessita ver em equilíbrio. Em suas palavras:

A mistura entre passado e futuro nos permite alcançar o equilíbrio nas relações, o equilíbrio entre estes dois momentos que torna o tempo sábio. A sabedoria do tempo somente aparecerá para o direito no conteúdo de uma norma. Buscar no mundo social o equilíbrio do tempo é o grande desfio da pessoa competente que constrói as normas de decadência e de prescrição. Sem o exato limite do tempo, as normas de decadência e de prescrição não impedirão a perpetuação de relações sociais conflituosas e deixarão de ser instrumento legítimo de garantia de pacificação, de equilíbrio e segurança das relações sociais.57

Os prazos decadenciais mostram-se justamente como esses limites temporais positivados pelo legislador objetivam pacificar as relações intersubjetivas, impedindo sua perpetuação e proporcionando uma convivência harmônica do direito com o tempo.