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LIVRO I – PARTE GERAL: PROPEDÊUTICA GERAL

2.4 Incidência e aplicação da norma jurídica

De acordo com o referencial teórico que adotamos nesse trabalho, diferenciamos, com base nos ensinamentos de Paulo de Barros Carvalho, o plano do direito positivo – formado com exclusividade por normas jurídicas e materializado em linguagem prescritiva – do plano da realidade social, em que as relações intersubjetivas se concretizam no tempo e no espaço.

O plano do direito positivo é constituído unicamente e em uma linguagem própria, de modo que os fatos sociais somente nele ingressam se e quando relatados nessa linguagem apropriada. Para que determinada ocorrência do mundo social passe a ser jurídica, deverá ser relatada na linguagem apropriada pelo sujeito competente, ingressando, assim, no sistema do direito positivo, onde, com exclusividade, se instalam as consequências jurídicas.

Afastamo-nos assim da teoria jurídica tradicional, trabalhada por Pontes de Miranda, que se funda na tese da incidência automática e infalível da norma sobre os acontecimentos da realidade social. Segundo essa corrente, a incidência da norma se daria no momento exato da realização do evento no mundo fenomênico, tornando-o jurídico automaticamente. Independentemente de qualquer ação humana, e mesmo se o evento nunca se tornasse conhecido, a incidência ocorreria no exato momento do evento, infalivelmente. Em momento posterior, se e quando o ser humano reconhecesse a sua ocorrência, deveria aplicar o direito apenas para que a incidência fosse cumprida, ou seja, para que a consequência jurídica fosse cumprida pelo homem.

No modelo que adotamos, diferentemente da teoria tradicional, as consequências sociais e as consequências jurídicas jamais se confundem. Esse posicionamento transparece nas lições de Aurora Tomazini de Carvalho:

Antes da ocorrência, verificada nos termos da hipótese, ser relatada em linguagem competente e transformar-se em fato jurídico, nada existe para o mundo do direito, nenhum efeito de ordem jurídica é constatado. Somente com a produção de uma linguagem própria, que pressupõe um ato de vontade humano, instauram-se direitos e deveres correlatos desta natureza.32

Paulo de Barros Carvalho bem explica33 que, para que haja o fato jurídico e a relação entre sujeitos de direito, faz-se necessária, também, a existência de uma linguagem específica que relate o evento acontecido no mundo da experiência, além de uma linguagem que relate o vínculo jurídico que se instaura entre duas pessoas. A consequência de admitirmos esses pressupostos é muito relevante, pois, se ocorrerem alterações na circunstância social, descritas no antecedente de regra jurídica como ensejadoras de efeitos de direito, mas que por qualquer razão não vierem a encontrar a forma própria de linguagem, não serão consideradas fatos jurídicos e, por conseguinte, não propagarão direitos e deveres correlatos.

A incidência, de acordo com esse modelo, não é automática e nem infalível à ocorrência do evento da realidade social, como defende a teoria tradicional. Dependerá, sempre, da transcrição desse evento em uma linguagem competente, que lhe atribua juridicidade e efeitos de direito.

Ao abordar a teoria tradicional em contraposição à inovadora teoria proposta por Paulo de Barros Carvalho, Eurico Marcos Diniz de Santi pertinentemente

32 Curso de Teoria Geral do Direito. 2. ed. São Paulo: Noeses, 2010, p. 427.

adverte que dizer que, ocorrendo o fato, a norma automaticamente incide sobre ele sem qualquer contato humano é

[…] subsumir-se a uma concepção teórica que coloca o homem à margem do fenômeno normativo, tal qual mero espectador, que somente quando instado, declara o funcionamento autônomo do direito. Ora, o direito não funciona sozinho, mas mediante a ação de homens, juízes, autoridades administrativas e legislativas: é para isso que alerta essa inovadora proposta.34

Frisamos, por ser uma das premissas fundamentais da teoria utilizada no presente trabalho, que a norma jurídica não incide por força própria. Depende-se sempre e invariavelmente de ato do aplicador do direito para produzir uma nova linguagem. É o homem que cria a norma individual e concreta, buscando fundamento de validade em norma jurídica geral e abstrata.

Convém trazer à colação, no ponto, as anotações de Fabiana Del Padre Tomé, por esclarecerem que a aplicação do direito não dista da própria produção normativa:

A aplicação do Direito é simultaneamente produção do Direito. Trata- se de ato mediante o qual se extrai de regras superiores o fundamento de validade para a edição de outras regras, cada vez mais individualizadas. E é somente por meio dessa ação humana que se opera o fenômeno da incidência normativa em geral, assim como da incidência tributária, em particular. Sem que um sujeito realize a subsunção e promova a implicação, expedindo novos comandos normativos, não há que falar em incidência jurídica.35

Seguindo tal modelo, não há diferença entre incidência e aplicação, termos que se equiparam e até mesmo se confundem. Dessa forma, a incidência da norma somente ocorre quando o evento do mundo social é relatado em linguagem jurídica

34 Decadência e prescrição no direito tributário. 4 ed. São Paulo: Max Limonad, 2011, p. 58. 35 A prova no direito tributário. 3. ed. São Paulo: Noeses, 2011, p. 35.

competente, o que ocorre justamente com o ato de aplicação, realizado pelo ser humano credenciado pelo próprio sistema.

Concluindo, a incidência das normas e a aplicação do direito são a forma como o sistema do direito positivo abre as suas portas pra o ingresso das informações do mundo da realidade social. O agente competente percebe, fora do mundo jurídico, algo que deve ser por ele absorvido e verte esse evento em linguagem jurídica apropriada. Constitui, assim, o fato jurídico e imputa-lhe as consequências previstas pelo direito.