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LIVRO I – PARTE GERAL: PROPEDÊUTICA GERAL

2.6 Evento, fato e fato jurídico

A incidência da norma e a aplicação do direito, tomadas como sinônimos, contudo, exigem a adoção mais uma premissa, qual seja, a diferenciação entre evento, fato e fato jurídico. Trata-se de um corte metodológico de teoria geral do direito que vem permitindo avanços céleres e profundos na análise do direito e que tem sido de extrema fertilidade em sua adoção no campo do direito tributário, além de explicar algumas das definições já adotadas quando da classificação da norma.

Essa também é a perspectiva de Tércio Sampaio Ferraz Jr., citado por Paulo de Barros Carvalho38:

É preciso distinguir entre fato e evento. A travessia do Rubicão por Cesar é um evento. Mas ‘Cesar atravessou o Rubicão’ é um fato. Quando, pois, dizemos que ‘é um fato que Cesar atravessou o Rubicão’ conferimos realidade ao evento. ‘Fato’ não é pois algo concreto, sensível, mas um elemento linguístico capaz de organizar uma situação existencial como realidade.

Sinteticamente, chamamos de “evento” o acontecimento do mundo da realidade social, despido de qualquer formação linguística. É uma situação pertencente ao mundo fenomênico.

O “fato”, por sua vez, é o relato do evento, ou seja, é a expressão linguística de que houve uma ocorrência no tempo e no espaço do mundo fenomênico. É a articulação linguística da situação ocorrida na realidade social.

Já por “fato jurídico” entende-se o relato do evento em linguagem jurídica competente, articulado em consonância com a teoria das provas. É o fato vertido na

linguagem competente do direito positivo e, por isso, capaz de desencadear efeitos de ordem jurídica.

Partindo das mesmas premissas, bem observa Fabiana Del Padre Tomé que o acontecimento natural, pertencente ao mundo da experiência, não integra o sistema jurídico ou sequer o social. Em suas palavras:

[…] as coisas só existem para o homem quando constituídas pela linguagem. Assim, qualquer que seja o sistema que se examine, nele ingressam apenas os enunciados compostos pela forma linguística própria daquele sistema. Relatado o acontecimento em linguagem social, teremos o fato social; este, vertido em linguagem jurídica, dará nascimento ao fato jurídico. Os fatos da chamada realidade social, enquanto não constituídos mediante linguagem jurídica própria, qualificam-se como eventos em relação ao mundo do direito.39

Verifica-se, portanto, que é o dado linguístico que diferencia o evento do fato, enquanto é a competência da linguagem que diferencia o fato do fato jurídico. Não é qualquer linguagem, portanto, que é habilitada a produzir efeitos jurídicos ao relatar os acontecimentos do mundo fenomênico. O próprio sistema jurídico é que indica os instrumentos credenciados para verter os eventos em linguagem jurídica competente.

Como explica com propriedade Maria Rita Ferragut: “[…] a diferença substancial existente entre fato e fato jurídico é que o primeiro é descrito apenas por meio da linguagem natural, social, ao passo que o segundo é relatado em linguagem competente para o direito”40.

Trata-se de distinção de extrema utilidade, pois, no constructivismo lógico- semântico, o fato jurídico passa a ser um relato linguístico de uma ocorrência social

39 A prova no direito tributário. 3. ed. São Paulo: Noeses, 2011, p. 36.

prevista pelo e conforme o direito e apenas encontra sua gênese na aplicação, logicamente simultânea à incidência, realizada pelo agente competente.

Ao se diferençar evento de fato, sendo aquele impossível de apreensão em todas suas infinitas e irrepetíveis nuances e este obtido mediante corte metodológico ao ser relatado em linguagem pelo sujeito competente, devemos reconhecer que a compreensão de qualquer acontecimento requer articulação e organização linguística.

Segundo a concepção do giro-linguístico, a realidade, tal qual se apesenta aos seres humanos, nada mais é do que um sistema de signos articulados num contexto existencial. Como registra Aurora Tomazini de Carvalho,

[…] é a linguagem que confere realidade aos objetos da experiência, de modo que as coisas, os acontecimentos, as pessoas e suas manifestações só existem para o homem quando constituídas linguisticamente. Nestes termos, podemos dizer que o evento se constitui como realidade somente por meio dos fatos.41

Oportuno consignar que pouco importa se o acontecimento do mundo fenomênico se verificou efetivamente ou não. Por isso, como bem adverte Paulo de Barros Carvalho,

[…] havendo construção de linguagem própria, como o direito preceitua, dar-se-á por juridicamente ocorrido. Por outro lado, não sendo possível relatá-lo, seja por não ter-se realizado concretamente, seja por inexistirem provas que a ordem positiva admite como válidas, nada aconteceu.42

Após bem compreendidos esses conceitos, podemos observar que, uma vez vertido o evento em fato jurídico, a incidência tributária também pode ser vista como automática e infalível, pois simultânea à aplicação do direito: incidência e aplicação implicam-se mutuamente.

41 Curso de Teoria Geral do Direito. 2. ed. São Paulo: Noeses, 2010, p. 524. 42 Curso de Direito Tributário. 18. ed. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 374.

Nesse sentido, vale a pena transcrever, aqui, as palavras de Aurora Tomazini de Carvalho, ao explicar que a famosa afirmação sobre ser a incidência automática e infalível é aceita tanto na teoria tradicional como na teoria pauliana, só divergindo com relação aos momentos:

Na teoria tradicional, a incidência, enquanto produção de efeitos jurídicos, é automática e infalível com relação ao evento. Verificada a ocorrência descrita na hipótese normativa, instauram-se os efeitos jurídicos a ela correspondentes de forma automática e infalível. Na teoria de Paulo de Barros de Carvalho, a incidência é automática e infalível com relação ao fato jurídico. Relatado o acontecimento em linguagem competente, instauram-se os efeitos jurídicos a ele correspondentes de forma automática e infalível.43

Muitos dos conceitos abordados nesse capítulo serão utilizados ao longo do presente trabalho, quando estivermos tratando das várias regras jurídicas acerca de decadência tributária presentes no ordenamento jurídico brasileiro.

3 A DECADÊNCIA NOS PLANOS NORMATIVO, PROCEDIMENTAL E