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Considerações iniciais acerca da constituição do crédito tributário e do

LIVRO II – PARTE ESPECIAL – DECADÊNCIA TRIBUTÁRIA E SUA

3 CONSTITUIÇÃO DO CRÉDITO TRIBUTÁRIO E DECADÊNCIA

3.1 Considerações iniciais acerca da constituição do crédito tributário e do

Partilhamos da corrente que entende que a obrigação tributária e o seu correspondente crédito nascem juntos, quando a autoridade administrativa ou o particular realizam um procedimento idôneo e enunciado em lei e os formalizam em linguagem jurídica adequada.

Nas palavras de Paulo de Barros Carvalho:

Cumpre assinalar que a formalização e consequente constituição do crédito tributário podem ser feitas tanto pela autoridade administrativa, por meio do lançamento, quanto pelo próprio contribuinte, em cumprimento a normas que prescrevem deveres instrumentais. Cabe à autoridade administrativa ou ao contribuinte, conforme o caso, aplicar a norma geral e abstrata, produzindo norma individual e concreta, nela especificando os elementos de fato e da

obrigação tributária, com o que fará surgir o correspondente crédito fiscal.112

Recebe, assim, a denominação de “lançamento” a constituição do crédito tributário realizada pela autoridade administrativa. Mas o vocábulo lançamento, tal qual se apresenta nos enunciados que dispõem sobre a constituição do crédito tributário, é, antes de tudo, uma palavra. E como qualquer outra palavra, carrega os vícios da vaguidade e da ambiguidade. Como suporte físico, está sujeita a diversas significações e, a depender da acepção adotada na interpretação das normas de direito tributário, pode ter significados bastante distintos.

Decorrência disso é que a doutrina não consegue conceituar o lançamento de modo uniforme. Ora o lançamento é tido como um procedimento, ou seja, é considerado como uma sequência de atos regrados tendentes à realização de um fim, ora é tido como um ato administrativo, ora como uma norma jurídica. Todavia, não se justifica a disputa doutrinária sobre a primazia de cada uma dessas possibilidades. Temos para nós que tais possibilidades convivem.

Também diante de tal constatação, Eurico Marcos Diniz de Santi opera com a premissa de que, sem aparelhar nossa ferramenta de trabalho, que é a linguagem, simplesmente não seria possível detectar as múltiplas nuanças que o direito constrói e de cuja manipulação nos tornamos reféns. Em suas palavras: “Especificamente para a Ciência do Direito, romper os limites da linguagem é alargar os horizontes para a compreensão do direito”113.

112 Direito Tributário – linguagem e método. 3. ed. São Paulo: Noeses, 2009, p. 505.

113 SANTI, Eurico Marcos Diniz de. Decadência e prescrição no direito tributário. 4 ed. São Paulo:

Tendo em mente essas reflexões, compartilhamos do entendimento esposado por Ludwig Wittgenstein114, para quem os limites da minha linguagem significam os limites do meu mundo. Nesse mesmo sentido, dos ensinamentos de Aurora Tomazini de Carvalho115 extraímos a conclusão de que a língua não é uma estrutura por meio da qual compreendemos o mundo. Na verdade, a língua é uma atividade mental estruturante do mundo, sendo que cada língua cria uma realidade.

A autora didaticamente assinala que

[…] o conceito de um vocábulo não depende da relação com a coisa, mas do vínculo que mantém com outros vocábulos. Nestas condições, definir não é fixar a essência de algo, mas sim eleger critérios que apontem determinada forma de uso da palavra, a fim de introduzi-la ou identificá-la num contexto comunicacional.116

Nesse contexto, certo é que um único vocábulo pode apresentar vários matizes significativos. É justamente o que ocorre com “lançamento”. Nele é possível identificar, além dos diversos aspectos semânticos, também o que a doutrina convencionou chamar de “ambiguidade processo/produto”, eis que o mesmo termo tem um significado relativo à atividade e outro relativo ao produto dessa atividade.

Trata-se o “lançamento” de terminologia equívoca que pode significar não apenas procedimento e ato, como ainda norma, tudo a depender da decisão interpretativa daquele que examinará o termo ao longo de suas diversas aparições no Código Tributário Nacional.

Encaixa-se aqui a lição de Paulo de Barros Carvalho de que a compreensão da figura do lançamento fica mais nítida quando se reflete acerca da convergência das

114 WITTGENSTEIN, Ludwig. Tratado lógico-filosófico. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian,

1995, p. 114.

115 Curso de Teoria Geral do Direito. 2. ed. São Paulo: Noeses, 2010. 116 Ibid.

palavras norma, procedimento e ato, tomadas como aspectos semânticos do mesmo objeto. Importa dizer:

[…] se nos detivermos na concepção de que o ato é, sempre, o resultado de um procedimento e que tanto ato quanto procedimento hão de estar, invariavelmente, previstos em normas do direito posto, tornar-se-á intuitivo concluir que norma, procedimento e ato são momentos significativos de uma e somente uma realidade.117

De acordo com a linha que seguimos, pode-se dizer que são válidas, semanticamente, todas as três vertentes de análise do vocábulo.

Em seus escritos, mais uma vez é Paulo de Barros Carvalho quem elucida:

Tanto será lançamento a norma do artigo 142 do CTN como a atividade dos agentes administrativos, desenvolvida na conformidade daquele preceito, como o documento que a atesta, por eles assinado, com a ciência do destinatário. A prevalência de qualquer das três acepções dependerá do interesse protocolar de quem se ocupe do assunto. Uma coisa, porém, deve ficar bem clara: não pode haver ato de lançamento sem que o procedimento tenha sido implementado. Da mesma forma, não haverá ato nem procedimento sem que uma regra do direito positivo estabeleça os termos das respectivas configurações.118

Vejamos, então, o que fala o Código Tributário Nacional acerca do lançamento em seu artigo 142:

Art. 142. Compete privativamente à autoridade administrativa constituir o crédito tributário pelo lançamento, assim entendido o procedimento administrativo tendente a verificar a ocorrência do fato gerador da obrigação correspondente, determinar a matéria tributável, calcular o montante do tributo devido, identificar o sujeito passivo e, sendo o caso, propor a aplicação da penalidade cabível.

Parágrafo único. A atividade administrativa de lançamento é vinculada e obrigatória, sob pena de responsabilidade funcional.

Dada a relevância das informações contidas no enunciado, ressaltamos que o Código Tributário Nacional trata o lançamento como:

117 Direito Tributário – linguagem e método. 3. ed. São Paulo: Noeses, 2009, p. 510. 118 Ibid., p. 511.

a) um procedimento/ato administrativo (ambiguidade processo/produto); b) tendente a verificar a ocorrência do fato gerador da obrigação;

c) determinar a matéria tributável (base de cálculo); d) calcular o montante do tributo devido; e

e) identificar o sujeito passivo.

Conjugando essas informações, é possível concluir que o lançamento objetiva determinar o an e o quantum debeatur, ou seja, verificar e exteriorizar com exatidão quem deve o tributo e o quanto deve. O ato final desse procedimento administrativo será, então, o ato administrativo também denominado “lançamento”.

Observa Fabiana Del Padre Tomé119 que, existindo definição legal expressa, poder-se-ia pensar que estaria desde logo resolvida a questão preliminar da fixação do conceito de lançamento. Não é, porém, deste modo, tendo em vista que o artigo 142 do Código Tributário Nacional apresenta diversas imprecisões, gerando dúvidas e controvérsias a respeito do assunto120.

Valemo-nos, portanto, dos ensinamentos de Paulo de Barros Carvalho121, que, de maneira cientificamente bem mais precisa, define o lançamento tributário como o ato jurídico administrativo que põe no ordenamento uma norma individual e concreta, funcionando como veiculo introdutor. Tem no antecedente o relato do evento tributário, estabelecendo-o como fato, e no consequente há a prescrição do vínculo que

119

A prova no direito tributário. 3. ed. São Paulo: Noeses, 2011, p. 316.

120 Apenas a título exemplificativo, podemos citar que o artigo 142 do CTN relaciona, como um dos

objetos do lançamento, a propositura da aplicação de penalidade cabível. Trata-se de exemplo de imprecisão, pois coloca no mesmo plano o ato de aplicação da regra-matriz de incidência tributária e das normas sancionatórias pela falta de pagamento do tributo e pelo descumprimento de deveres instrumentais (auto de infração).

nasce unindo dois sujeitos em torno de uma prestação pecuniária. Apresenta caráter declaratório do evento tributário e constitutivo da relação jurídica.

É certo, contudo, que em diversos pontos o enunciado do artigo 142 do CTN dispõe de forma harmônica com o restante do ordenamento, por exemplo quando prescreve ser o lançamento tributário ato de competência privativa de autoridade administrativa, bem como quando alude ao caráter constitutivo do crédito tributário.

O lançamento tributário, conforme consta do artigo 142 do CTN, é privativo da Autoridade Administrativa. O Código não define, todavia, qual autoridade administrativa possui tal poder legal, deixando para a lei de cada ente político a incumbência de fazer essa definição.

Então, apenas a título exemplificativo, na esfera Federal foi editada a Lei nº 10.593/2002, que, em seu artigo 6º, I, “a”, atribui aos ocupantes do cargo de Auditor Fiscal da Receita Federal do Brasil, em caráter privativo, a competência para efetuar o lançamento. Em data mais recente, o Decreto 7.574/2011, ao regulamentar o processo de determinação e exigência dos créditos tributários da União, também tratou da competência para efetuar o lançamento em sua Seção II, que assim dispõe:

Da Competência para Efetuar Lançamento

Art. 31. O lançamento de ofício do crédito tributário compete:

I - a Auditor-Fiscal da Receita Federal do Brasil, quando a exigência do crédito tributário for formalizada em auto de infração; ou

II - ao chefe da unidade da Secretaria da Receita Federal do Brasil encarregado da formalização da exigência ou ao Auditor-Fiscal da Receita Federal do Brasil por ele designado, mediante delegação de competência, quando a exigência do crédito tributário for formalizada em notificação de lançamento.

O parágrafo único do art. 142 do CTN ainda afirma que a atividade de lançamento é vinculada. Pois bem: Atividades vinculadas são aquelas praticadas pela

Administração sem qualquer margem de liberdade para decisão, uma vez que já está previamente previsto na lei o único comportamento possível diante da ocorrência da hipótese.

Como leciona Celso Antônio Bandeira de Mello, atos vinculados seriam aqueles em que, por existir prévia e objetiva tipificação legal do único possível comportamento da Administração em face de situação igualmente prevista em termos de objetividade absoluta, a Administração, ao expedi-los, não interfere com apreciação subjetiva alguma122.

Ocorrido o fato gerador, a Administração não tem, no caso, liberdade alguma com relação à prática do lançamento. Trata-se de situação de objetividade absoluta, insuscetível de qualquer dúvida ou apreciação subjetiva. Portanto, efetuar o lançamento não é apenas um poder, mas também um dever da Autoridade, e é natural que seja assim. Não se poderia admitir que o relevante poder de tributar conferido pela Constituição da República aos entes Políticos se orientasse pela discricionariedade, seguindo critérios de conveniência e oportunidade.

Além de vinculada, a atividade de lançamento também é obrigatória, segundo o parágrafo único do artigo 142 do CTN. Vale dizer que o exercício da competência administrativa para lançar tributos não é apenas uma faculdade, mas uma determinação em caráter obrigatório formulada pelo ordenamento jurídico. Aliás, como observa José Souto Maior Borges,

[…] com o afirmar-se que o lançamento é obrigatório não se está identificando uma qualidade jurídica essencialmente distinta da vinculação. Efetivamente, a obrigatoriedade é apenas uma forma qualificada de vinculação do ato. Estar obrigado ao exercício do

lançamento é, nesse sentido, uma forma de vinculação, relacionada não com o conteúdo do ato, mas com a sua prática.123

Se a legislação tributária não determinasse essa obrigatoriedade, ter-se-ia que a expedição do ato de lançamento poderia ser interpretada como mera faculdade ou mesmo como matéria de conveniência e oportunidade, o que geraria insegurança jurídica e possivelmente transgressões à isonomia com que devem ser tratados os contribuintes.

Por outro lado, é de todo relevante a ressalva feita por José Souto Maior Borges, no sentido de que eventual aplicação da responsabilidade funcional prevista em lei para o funcionário público omisso não implica, em absoluto, eventual dispensa legal da realização do lançamento. Ao contrário, sem prejuízo da pena funcional cabível, deverá ser lançado o tributo. Segundo o autor, essa seria uma inarredável consequência da indisponibilidade que está ligada à realização do lançamento.