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LIVRO II – PARTE ESPECIAL – DECADÊNCIA TRIBUTÁRIA E SUA

1.4 Diferenciação entre decadência e prescrição

Mencionamos em tópico anterior a importância de o direito prever mecanismos de estabilização que garantam a segurança de sua estrutura e impeçam que incertezas nas relações jurídicas perdurem indefinidamente.

Pois bem, tanto a decadência, objeto de nosso estudo, como a prescrição fazem parte dos mecanismos de estabilização previstos pelo direito, pois cada uma ao

seu modo dele retiram a instabilidade que invariavelmente se instalaria, caso direitos subjetivos pudessem ser exercitados sem limitação temporal alguma.

Observando isso, Eurico Marcos Diniz de Santi bem pondera:

O tempo consome os fatos e o direito que deles advém. No tempo, a lei ganha sentido, nasce o direito. No tempo morrem os fatos, somem as provas. No tempo, e pelo tempo, o direito extingue o direito: ocorre a decadência e a prescrição. Cego tal qual Chronos, o direito, implacável, devora o direito que de sua seiva surge. Decadência e prescrição não são formas de fazer justiça. São formas concretas que o direito encontrou para conviver com esse deus tão poderoso: o tempo.70

Adiantamos que nesse trabalho não nos preocuparemos em aprofundar a distinção entre os institutos, preconizada pelos doutrinadores civilistas. A razão é que a decadência e a prescrição no direito tributário não possuem características idênticas às que se verificam no direito privado. Ao contrário, são dotadas de sentido e regramentos próprios, como lembrou Robson Maia Lins:

Ocorre que a decadência e a prescrição tais descritas pela doutrina civilista, de tão repetidas como verdade absolutas, ingressaram no “senso comum teórico” dos juristas, a ponto de imunizar análises futuras do direito civil, e até de outros do direito, inclusive contra as vicissitudes do direito positivo. É como se a doutrina civilista fosse fonte material de todos os “ramos” do direito.

Em direito tributário as normas de decadência e prescrição tomam contornos próprios, que distam, em alguns pontos, das normas de decadência e prescrição do direito civil.71

Parece importante, todavia, fazer menção, ainda que breve, ao fato de que na legislação civil e comercial brasileira até pouco tempo não encontrávamos sequer referência direta à decadência. Tal situação somente foi modificada com a edição do Código Civil de 2002 (Lei nº 10.406/2002), que a abordou expressamente nos artigos

70 Decadência e prescrição no direito tributário: aspectos teóricos, práticos e análise das decisões do

STJ. Revista Dialética de Direito Tributário, São Paulo, n. 62, nov. 2000, p. 39.

71 LINS, Robson Maia. Controle de constitucionalidade da norma tributária. São Paulo: Quartier

178, 179 e 207 a 211. Antes disso, portanto, coube à doutrina civilista delinear os contornos do instituto, bem como sua distinção para com a prescrição no âmbito privado do direito.

Até mesmo para grandes civilistas essa tarefa mostrou-se bastante complexa. Observando o problema, Caio Mário da Silva Pereira foi pontual:

Não há acordo entre os escritores, nem a controvérsia encontra desate com a aplicação de princípios certos. Talvez porque os haja em demasia ou pela variedade maior de critérios […] Num desvio de perspectiva, não falta quem procure a distinção no objeto da ação no tempo, dizendo que é prescrição quando fulmina o direito, e decadência quando atinge a ação, o que se desmente a simples lembrança de que não se pode pôr o fundamento de um instituto nos efeitos que produz. Isto sem omitir que não há acordo nos escritores quanto ao objeto, pois uns entendem que a prescrição atinge o direito e a decadência atinge a ação; outros, como nós, que sustentamos: tanto a prescrição quanto a decadência fazem perecer o direito.72

Ao analisar a doutrina do direito civil, Eurico Marcos Diniz de Santi percebeu que a diferença entre decadência e prescrição muitas vezes se estabelece mediante a eleição de critérios de ordem pragmática, como a suspensão e a interrupção dos prazos, a apreciação ex officio ou não do juízo e a possibilidade de renúncia pelas partes. Acabou por concluir que são critérios implementados pela doutrina, sem a necessária correspondência empírica com o texto legislado. Seria, portanto, “[…] opção metodológica do cientista do direito civil, a qual tem seus méritos e fins específicos e que, portanto, deve ser respeitada, mas que não se harmoniza com a consciência da dualidade direito/ciência” 73.

72 Instituições de Direito Civil. 18. ed. Forense, 1997, p. 441.

O novo Código Civil brasileiro, que entrou em vigor em 11 de janeiro de 2003, por sua vez, procurou tratar do assunto de forma mais objetiva, conceituando a prescrição no artigo 189 e dispondo também acerca da decadência.

Entretanto, as alterações trazidas pela Lei nº 10.406/2002, embora relevantes, não afetam substancialmente o emprego da decadência e da prescrição no campo tributário, objeto último de nossa análise. Isso porque, de acordo com o artigo 109 do Código Tributário Nacional, o direito tributário pode utilizar-se de institutos de direito privado, porém com os efeitos previstos no próprio direito tributário e não na lei civil. Vejamos: “Art. 109. Os princípios gerais de direito privado utilizam-se para pesquisa da definição, do conteúdo e do alcance de seus institutos, conceitos e formas, mas não para definição dos respectivos efeitos tributários”.

Considerando que em nosso estudo trabalhamos com a premissa de que o direito positivo é o conjunto de normas jurídicas válidas em dado país e em determinado momento histórico, temos que os institutos da decadência e da prescrição nada mais são, também, que normas jurídicas. São normas que se caracterizam por determinar a perda do direito subjetivo de que era titular algum sujeito em decorrência do transcurso de certo de tempo em que ficou inerte, sem exercitá-lo.

A rigor, no direito tributário, a decadência e a prescrição aparecem como normas que determinam a perda de direitos não apenas do Fisco, mas também do contribuinte, sendo que, em ambos os casos, em comum existe o transcurso de certo período de tempo em que se operou a sua inércia. Por essa razão, é possível realizar uma classificação dessas normas, subdividindo-as em normas de decadência e

prescrição do direito do Fisco e normas de decadência e prescrição do direito do contribuinte.

É seguindo essa linha de raciocínio que Aurora Tomazini de Carvalho74 nos esclarece que as normas de decadência do direito do Fisco dispõem sobre a perda competência para constituir o crédito tributário, enquanto as de prescrição, sobre a perda do direito de executar o crédito já constituído. As regras de decadência do direito do contribuinte estabelecem a perda do direito de repetir administrativamente o indébito tributário, enquanto as de prescrição estabelecem a perda da legitimidade de repetir judicialmente tal indébito.

Para os fins da diferenciação proposta nesse tópico, apenas nos interessa a decadência e prescrição do direito do Fisco. Todavia, conforme o corte metodológico adotado, o restante do trabalho, em essência, se ocupará com exclusividade do que denominamos “decadência do direito do Fisco”.

Em matéria tributária, então, de acordo com as regras de decadência do direito do Fisco, se este não constituir o crédito tributário dentro de certo período de tempo, perderá o direito de fazê-lo a posteriori. Já nos termos das normas de prescrição, se o Fisco não executar o crédito tributário em certo período de tempo, perderá o direito de executá-lo posteriormente.

Margarete Gonçalves Barsani, que profundamente estudou o tema, sustenta que decadência encontra-se ligada ao direito potestativo de a Fazenda Pública realizar o lançamento, enquanto que o direito de exigir a prestação tributária estaria à mercê da prescrição75.

74 Decadência e prescrição no direito tributário. 4. ed. São Paulo: Max Limonad, 2011, p. 326. 75 Decadência e Prescrição no Direito Tributário. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, p. 75.

Percebe-se que, quando se trata de diferençar os institutos da decadência e da prescrição (do direito do Fisco), fundamental é atentar para a ocorrência ou não do marco divisório básico, consubstanciado na figura da constituição do crédito tributário, que examinaremos detalhadamente em capítulo próprio.

Salientamos que apenas podemos cogitar de decadência no lapso temporal que precede a constituição do crédito tributário. A partir de sua constituição, não há mais que se falar em transcurso de prazo decadencial. Uma vez que a constituição do crédito tributário se tornar definitiva, daí, sim, poder-se-á cogitar do transcurso de prazo prescricional.

Trataremos oportunamente acerca de como se dá a constituição do crédito tributário. Por ora, basta-nos fixar a ideia de que tal constituição delimita um importante marco, antes, e somente antes, do qual, pode-se cogitar da decadência.

De outro lado, já nos advertiu Paulo de Barros Carvalho que, uma vez adequadamente notificado ao sujeito passivo acerca do lançamento, abre-se à Fazenda Pública o prazo de cinco anos para que ingresse em juízo com a ação de cobrança (ação de execução fiscal – que atualmente é regulada pela Lei nº 6.830/80, com a aplicação subsidiária do Código de Processo Civil). Fluindo esse período de tempo sem que o titular do direito subjetivo deduza sua pretensão pelo instrumento processual próprio, dar-se-á o fato jurídico da prescrição76.

Daí verifica-se que, por prescrição, entende-se a perda do direito, pela Fazenda Pública, de exigir o crédito tributário, já constituído – frise-se, por meio de uma ação executiva (ação de execução fiscal).

Feita a diferenciação, parece importante ressaltar novamente que, tendo em vista o objetivo da presente dissertação, bem como a brevidade que lhe é característica, delimitamos sua abrangência ao estudo exclusivo do instituto da decadência do direito do Fisco, sendo certo que a prescrição, embora por vezes mencionada ao longo desse texto, por sua complexidade também característica, é merecedora de análise pormenorizada em trabalho separado, do mesmo modo que a decadência do direito do contribuinte.