• Nenhum resultado encontrado

A DOUTRINA DOS INICIADOS

No documento OS GRANDES INICIADOS (páginas 71-76)

Krishna foi saudado pelos anacoretas como o esperado e predestinado sucessor de Vasichita. Celebrou-se o srada ou cerimônia fúnebre do santo ancião na floresta sagrada. E o filho de Devac recebeu o bastão de sete nós, emblema do poder, depois de consumado o sacrifício do fogo em presença dos três mais antigos anacoretas, daqueles que sabiam de cor os três Vedas.

Em seguida, Krishna se retirou para o monte Meru, a fim de lá meditar em sua doutrina e no caminho da salvação para os homens. Suas meditações e penitências duraram sete anos. Só então sentiu que sua natureza fora dominada por sua natureza divina, e que estava suficientemente identificado com o sol de Maadeva, para merecer o nome de filho de Deus. Somente então chamou para junto de si os anacoretas, jovens e velhos, a fim de revelar-lhes sua doutrina. Eles encontraram Krishna purificado e engrandecido. O herói transformara- se em santo. Não perdera a força dos leões, mas adquirira a doçura das pombas. Entre os que acorreram primeiro, encontrava-se Ardjuna, descendente dos reis solitários, um dos Pandavas destronados pelos Curavas ou reis lunares. O jovem Ardjuna estava cheio de entusiasmo, mas preparado para se desiludir e sucumbir na dúvida. Todavia, ligou-se apaixonadamente a Krishna.

Sentado à sombra dos cedros do monte Meru, diante do Himavat, Krishna começou a falar aos discípulos sobre as verdades inacessíveis aos homens, que vivem na escravidão dos sentidos. Ensinou-lhes a doutrina da alma imortal, de seus renascimentos e de sua união mística com Deus. O corpo, dizia ele, envolve a alma, que nele faz sua morada; é uma coisa finita. Mas a alma que nele habita é invisível, imponderável, incorruptível, eterna (1). O homem terrestre é triplo como a divindade que ele reflete: inteligência, alma e corpo. Se a alma se une à Inteligência, atinge Satwa, a sabedoria e a paz; se ela permanece indecisa, entre a inteligência e o corpo, é dominada por Raia,

a paixão, e gira de objeto em objeto num círculo fatal; se ela se abandona ao corpo, sucumbe em Tama, a insensatez, a ignorância e a morte temporal. Isso cada homem pode observar em si mesmo e ao redor de si (2).

Ardjuna perguntou:

– Qual é a condição da alma após a morte? Obedecerá ela sempre à mesma lei ou poderá escapar-lhe?

Respondeu Krishna:

– Jamais lhe escapará e sempre lhe obedecerá. Nisto reside o mistério dos renascimentos. Assim como as profundezas do céu se abrem à luz das estrelas, também as profundezas da vida se iluminam à luz desta verdade. “Quando o corpo se dissolve, logo que Satwa (a sabedoria) predomina, a alma voa para as regiões dos seres puros que possuem o conhecimento do Todo-Poderoso. Quando o corpo experimenta essa dissolução, enquanto Raia (a paixão) domina, a alma vem de novo habitar entre aqueles que estão ligados às coisas da terra. Do mesmo modo, se o corpo é destruído quando Tama (a ignorância) predomina, a alma obscurecida pela matéria é de novo atraída por alguma matriz de seres irracionais (3).

Observou Ardjuna:

– Isto é justo. Mas, ensina-nos agora o que acontece, no decurso dos séculos, àqueles que seguiram a sabedoria e que vão habitar, após a morte, nos mundos divinos!

Krishna respondeu:

– O homem que, em estado de devoção, é surpreendido pela morte e depois de ter gozado, durante vários séculos, as recompensas devidas às suas virtudes, nas regiões superiores, volta, enfim, de novo para habitar um corpo em uma família santa e respeitável. Mas essa espécie de regeneração nesta vida é bastante difícil de se obter. O homem assim renascido se encontra no mesmo grau de aplicação, de adiantamento e entendimento que possuía em seu primeiro corpo, e, então, recomeça a trabalhar para se aperfeiçoar na devoção (4).

– Assim, mesmo os bons são forçados a renascer e a recomeçar a vida do corpo! Mas, ensina-nos, oh! Senhor da vida! se para aquele que demanda a sabedoria, os renascimentos perpétuos um dia chegam ao fim.

Krishna, então, passou a explicar:

– Escutai um enorme e profundíssimo segredo, o mistério soberano, sublime e puro. Para chegar à perfeição, é preciso conquistar a ciência da unidade, que está acima da sabedoria; é preciso elevar-se ao ser divino que está acima da alma, acima da própria inteligência. Ora, este ser divino, este amigo sublime, está em cada um de nós. Pois Deus reside no interior de todo homem, mas poucos sabem encontrá-lo. Eis o caminho da salvação: uma vez que tiveres percebido o ser perfeito que está acima do mundo e em ti mesmo, determina-te a abandonar o inimigo que toma a força do desejo. Dominai vossas paixões. Os prazeres que os sentidos obtêm são matrizes de penas futuras. Não somente fazei o bem, mas sede bons. Que o motivo esteja na ação e não nos frutos. Renunciai ao fruto de vossas obras, mas que cada uma de vossas ações seja como uma oferenda ao Ser supremo. Aquele que fizer o sacrifício de seus desejos e de suas obras ao Ser do qual procedem todas as coisas, e por quem foi formado o Universo, obtém por meio desse sacrifício a perfeição. Unido espiritualmente, atinge aquela sabedoria espiritual que está acima do culto das oferendas e sente uma felicidade divina. Pois aquele que encontra em si mesmo a sua felicidade, sua alegria e também sua luz, é uno com Deus. Ora, sabei vós, a alma que encontrou Deus está livre do renascimento e da morte, da velhice e da dor, e bebe a água da imortalidade (5).

Assim Krishna explicava sua doutrina aos discípulos. E, mediante a contemplação interior, ele os elevava, pouco a pouco, às verdades sublimes que tinham sido reveladas a ele próprio, sob o relâmpago de sua visão. Quando falava de Maadeva, sua voz tornava-se mais grave e suas feições se iluminavam.

Um dia, Ardjuna, cheio de curiosidade e de audácia, falou:

– Deixa-nos ver Maadeva em sua forma divina. Nossos olhos não podem contemplá-lo?

Então, Krishna se levantou e começou a falar do ser que respira em todos os seres, de cem mil formas, de olhos inumeráveis, de faces voltadas para todos os lados, e que os ultrapassa a todos, mesmo em toda a altura do infinito; do ser que, em seu corpo imóvel e sem limites, encerra o Universo que se move com todas as suas divisões. E Krishna continuou:

– Se nos céus brilhasse ao mesmo tempo o esplendor de mil sóis, ele apenas se assemelharia ao esplendor do Todo-Poderoso único.

Enquanto ele assim falava de Maadeva, foi tão forte o raio de luz que jorrou de seus olhos que os discípulos não puderam suportar o brilho e se prosternaram a seus pés. Os cabelos de Ardjuna se eriçaram, e, curvando-se, ele disse, com as mãos unidas:

– Mestre, tuas palavras nos espantam, e não podemos suportar a visão do grande Ser que evocas diante de nós. A visão nos fulmina (6).

Krishna retrucou:

– Escutai o que ele vos diz por minha boca: “Eu e vós, nós tivemos vários nascimentos. Os meus não são conhecidos senão por mim, mas vós não conheceis nem mesmo os vossos. Ainda que eu não esteja, por minha natureza, sujeito a nascer ou morrer e que seja o senhor de todas as criaturas, todavia, como comando minha natureza, torno-me visível por meu próprio poder. E todas as vezes que a virtude declina no mundo e que o vício e a injustiça dominam, então me torno visível, e assim me mostro, de idade em idade, para a salvação do justo, para a destruição do mau e para o restabelecimento da virtude. Aquele que conhece verdadeiramente minha natureza e minha obra divina, ao deixar o corpo não volta para um novo nascimento. Ele vem a mim” (7).

E, enquanto pronunciava essas palavras, Krishna olhava seus discípulos com doçura e benevolência. Ardjuna então exclamou:

– Senhor! tu és nosso mestre, o filho de Maadeva! Vejo-o em tua bondade, em teu encanto inefável mais ainda do que em teu terrível esplendor. Não é nas vertigens do infinito que os Devas te procuram e te desejam, é sob a forma humana que eles te amam e te adoram. Nem a penitência, nem as esmolas, nem os Vedas, nem o sacrifício valem um

só de teus olhares. És a verdade. Conduz-nos à luta, ao combate, à morte! Seja para onde for, nós te seguiremos!

Sorridentes e exaltados, os discípulos se comprimiam em torno de Krishna. dizendo:

– Como não o tínhamos visto antes? É Maadeva quem fala em ti! Ele respondeu:

– Vossos olhos não estavam abertos. Eu vos revelei o grande segredo. E vós só deveis transmitir àqueles que podem compreendê-lo. Sois meus eleitos e vedes o fim; mas a multidão vê apenas um trecho do caminho. E, agora, vamos pregar ao povo o caminho da salvação.

(1). O enunciado desta doutrina, que se tomou mais tarde a doutrina de Platão, encontra-se no livro 19 do Bhagavadgita, sob a forma de um diálogo entre Krishna e Ardjuna.

(2). Livros XIII a XVIII do Bhagavadgita. (3). Bhagavadgita, livro XIV.

(4). Ibidem, livro V. (5). Bhagavadgita, passim.

(6). Ver a transfiguração de Krishna no livro XI do Bhagavadgita. Pode-se compará-la à transfiguração de Jesus, XVII, São Mateus. Ver no livro VIII desta obra.

(7). Bhagavadgita, livro IV. Tradução de Emile Burnouf. Cf. Schlegel e Wilkins.

VII

No documento OS GRANDES INICIADOS (páginas 71-76)