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A VIRGEM DEVAC

No documento OS GRANDES INICIADOS (páginas 50-55)

Quando Devac, envolta numa vestimenta de casca de árvore que escondia sua beleza, penetrou nas vastas solidões dos bosques gigantes, ela cambaleava, exaurida pela fome e pela fadiga. Mas assim que se protegeu nas sombras das árvores frondosas, comeu de seus frutos e respirou a frescura de uma fonte de água, se reanimou como uma flor que apenas estivesse esmorecida. Ela logo penetrou sob abóbadas enormes, formadas por troncos maciços, cujos galhos se replantavam mais adiante no solo, multiplicando ao infinito suas arcadas. Durante longo tempo ela caminhou ao abrigo do sol, como se estivesse num pagode sombrio e sem saída. O zumbido das abelhas, o grito dos pavões amorosos, o canto dos coquilas e de mil pássaros a impeliam sempre mais adiante. E sempre mais imensas se tornavam as árvores, a floresta sempre mais profunda e mais emaranhada. Troncos se comprimiam atrás de troncos, folhagens se curvavam sobre folhagens em cúpulas ou pilares grandiosos. Ora Devac deslizava em corredores de vegetação onde o sol lançava avalanches de luz e onde jaziam os troncos derrubados pela tempestade, ora se detinha sob caramanchões formados por mangueiras e assocás, de onde pendiam guirlandas de plantas trepadeiras e chuvas de flores. Gamos e panteras saltavam nas forragens; às vezes, também, os búfalos faziam os ramos estalarem, ou então bandos de macacos pulavam nas folhagens aos gritos. Devac caminhou assim todo o dia. Ao cair da tarde, além de um bosque de bambus, ela percebeu a cabeça imóvel de um elefante. Ele olhou a virgem com um ar inteligente e protetor, e ergueu a trompa como que para saudá-la. Então, a floresta iluminou-se, e Devac viu uma paisagem que transmitia uma paz profunda, um encanto celeste e paradisíaco.

Diante dela se estendia um lago semeado de lótus e de ninfáceas azuis: sua superfície azulada se abria na grande floresta frondosa como se fosse um outro céu. Castas cegonhas sonhavam imóveis às suas margens, e duas gazelas bebiam em suas ondas. Na outra extremidade, o

eremitério dos anacoretas sorria, ao abrigo das palmeiras. Uma luz rósea e tranqüila banhava o lago, os bosques e a morada dos santos richis. No horizonte, o cume branco do monte Meru dominava o oceano das florestas. O murmúrio de um rio invisível animava as plantas, e o troar de uma catarata longínqua vagueava na brisa como uma carícia ou uma melodia.

À margem do lago, Devac viu uma barca. Junto dela, de pé, um homem de idade madura, um anacoreta, parecia esperar. Silenciosamente, ele fez sinal à virgem para entrar e tomou os remos. Enquanto o bote avançava roçando as ninfáceas, Devac vê um cisne fêmea nadando. Num vôo ousado, um cisne macho corta os ares e se põe a descrever grandes círculos ao redor da fêmea; depois desce sobre a água, junto da companheira, tremulando sua plumagem de neve. Diante desta cena, Devac estremeceu profundamente sem saber por quê. Mas a barca logo tocou a margem oposta e a virgem de olhos de lótus se viu diante do rei dos anacoretas: Vasichita.

Sentado numa pele de gazela e vestido em uma pele de antílope negro, ele tinha um ar venerável, como se fosse um deus e não um homem. Desde os sessenta anos só se alimentava de frutos silvestres. Sua cabeleira e sua barba eram brancas como os cumes do Himavat, sua pele transparente, seu olhar voltado para o interior, pela meditação. Ao ver Devac, ele se levantou e a saudou com estas palavras: “Devac, irmã do ilustre Cansa, sejas bem-vinda entre nós. Guiada por Mahadeva, o senhor supremo, deixaste o mundo das misérias pelo mundo das delícias. Aqui estás, junto dos santos richis, senhores de seus sentidos, felizes com seu destino e desejosos de trilhar o caminho do céu. Há muito tempo nós te esperávamos, como a noite espera a aurora. Como somos os olhos dos Devas fixados sobre o mundo, vivemos no mais recôndito das florestas. Os homens não nos vêem, mas nós os vemos e acompanhamos suas ações. A idade sombria do desejo, do sangue e do crime causou estragos na terra. Então, nós te elegemos para a obra de libertação, e foram os Devas quem te escolheram por nós. Pois é no seio de uma mulher que o raio do esplendor divino deverá receber a forma humana”.

Naquela hora, os richis sempre saíam do eremitério para a oração da tarde. E nesse dia o velho Vasichita lhes ordenou que se inclinassem até o chão diante de Devac. Enquanto eles se curvavam, Vasichita falou: “Esta será a mãe de todos nós. Pois dela nascerá o espírito que deve nos regenerar”. Depois, voltando-se para ela: “Vai, minha filha, os richis te conduzirão ao próximo lago, em cujas margens moram as irmãs penitentes. Entre elas viverás e os mistérios se cumprirão”.

Devac passou a viver no eremitério cercado de plantas trepadeiras entre mulheres piedosas que alimentavam gazelas domesticadas, dedicando-se às abluções e orações. Devac tomava parte em seus sacrifícios e uma mulher mais velha lhe transmitia instruções secretas. As penitentes haviam recebido ordem de vesti-la como uma rainha, com tecidos delicados e perfumados, e de deixá-la vagar sozinha em plena floresta. E a floresta, cheia de perfumes, de vozes e de mistérios, atraía a jovem. Às vezes ela encontrava cortejos de velhos anacoretas que voltavam do rio. Ao vê-la, eles se ajoelhavam e depois retomavam seu caminho. Um dia, perto de uma fonte coberta de lótus róseos, ela reparou em um jovem anacoreta mergulhado na oração. À sua aproximação, ele se levantou, lançou-lhe um olhar triste e profundo e se afastou em silêncio. Desde então, as figuras graves dos velhos, a imagem dos dois cisnes no lago e o olhar do jovem anacoreta apareciam freqüentemente à virgem em seus sonhos. Junto da fonte havia uma árvore de idade imemorial, com amplos galhos, chamada “a árvore da vida” pelos santos richis, a cuja sombra Devac se comprazia em sentar. Muitas vezes ali adormecia, tendo visões estranhas. Vozes cantavam por trás das folhagens: “Glória a ti, Devac! Ele virá coroado de luz, o puro fluido emanado da grande alma, e as estrelas empalidecerão diante de seu esplendor! Ele virá, e a vida desafiará a morte, e ele rejuvenescerá o sangue de todos os seres! – Ele virá mais doce que o mel e a ambrosia, mais puro que o cordeiro sem mácula e os lábios de uma virgem! E todos os corações serão arrebatados de amor! - Glória, glória, glória a ti, Devac!” (1). Seriam os anacoretas? Seriam os Devas cantando assim? Às vezes ela tinha a impressão de que uma influência distante ou uma presença misteriosa, como se fora uma mão invisível

estendida sobre ela, forçava-a a dormir. Caía então num sono profundo, suave, inexplicável, do qual despertava confusa e perturbada. Virava-se procurando alguém por perto, mas não via ninguém. De vez em quando acontecia de encontrar rosas semeadas sobre seu leito de folhas ou uma coroa de lótus entre as mãos.

Certo dia, Devac mergulhou num êxtase mais profundo, e ouviu uma música celestial, como se fosse uma infinidade de harpas acompanhando vozes divinas. De repente, o céu se abriu em abismos de luz. Milhares de seres resplandecentes a olhavam e, ao clarão de um raio fulgurante, o sol dos sóis, Mahadeva, apareceu-lhe sob forma humana. Então, tendo sido envolta em sombra pelo Espírito dos mundos, ela perdeu a consciência e, num esquecimento do mundo, numa felicidade sem limites, ela concebeu a criança divina (2).

Depois que sete luas descreveram seus círculos mágicos em torno da floresta sagrada, o chefe dos anacoretas mandou chamar Devac, dizendo-lhe:

– “A vontade dos Devas se cumpriu. Concebeste na pureza do coração e no amor divino. Nós te saudamos, virgem e mãe! Nascerá de ti um filho que será o salvador do mundo. Mas teu irmão Cansa te procura para te matar com o tenro fruto que trazes no ventre. É necessário escapar-lhe. Nossos irmãos guiar-te-ão até os pastores que moram ao pé do Monte Meru, sob cedros perfumados, no ar puro do Himavat. Lá darás à luz teu filho divino e o chamarás Krishna, o sagrado. Mas ele deve ignorar sua própria origem e a tua: nada lhe revelarás, jamais. Agora, vai sem temor, pois nós velaremos por ti”.

E Devac se dirigiu para junto dos pastores do monte Meru.

(1). Atharva-Véda.

(2). É indispensável uma observação sobre o sentido simbólico da lenda e sobre a real origem daqueles que, na história, foram chamados filhos de

(3) - Segundo a doutrina secreta da Índia, que foi também a dos iniciados do Egito e da Grécia, a alma humana é filha do céu, visto que, antes de nascer na terra, ela já teve uma série de existências corporais e espirituais. O pai e a mãe geram apenas o corpo da criança. A alma vem do além. Esta lei universal se impõe a todos. Nem os maiores profetas, mesmo aqueles pelos quais o Verbo divino falou, poderiam dela escapar. E, com efeito, no momento em que se admite a preexistência da alma, toma-se secundária a questão de saber-se quem foi o pai. O que importa é acreditar que o profeta vem de um mundo divino. E isto, os verdadeiros filhos de Deus o provam por sua vida e sua morte. Entretanto, os iniciados antigos achavam que não deviam revelar estas coisas ao povo. Alguns daqueles que apareceram no mundo como emissários divinos foram filhos de iniciados, e suas mães freqüentavam os templos, a fim de conceber os eleitos.

IV

No documento OS GRANDES INICIADOS (páginas 50-55)