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O REI DE MADURA

No documento OS GRANDES INICIADOS (páginas 46-50)

Nos primórdios da era do Cali-Iuga, por volta do ano 3.000 antes de nossa era (segundo a cronologia dos brâmanes), a sede do ouro e do poder invadiu o mundo. Durante vários séculos, dizem os antigos sábios, Agni, o fogo celeste que forma o corpo glorioso dos Devas e purifica a alma dos homens, havia espalhado sobre a Terra seus eflúvios etéreos. Porém, o sopro ardente de Cali, a deusa do Desejo e da Morte, que evola dos abismos da Terra como um hálito abrasador, insuflava, então, todos os corações. A justiça havia reinado com os nobres filhos de Pandu, os reis solares que obedecem à voz dos sábios. Vencedores, eles perdoavam aos vencidos e os tratavam como iguais. Mas desde que os filhos do Sol foram exterminados ou banidos de seus tronos e que seus raros descendentes se escondiam entre os anacoretas, a injustiça, a ambição e o ódio passaram a predominar. Volúveis e falsos como o astro noturno, que assumiram como símbolo, os reis lunares guerreavam-se sem piedade. Um deles, entretanto, conseguira dominar todos os outros, por meio do terror de estranhos feitiços.

No norte da Índia às margens de um grande rio, resplandecia uma cidade poderosa. Possuía ela doze pagodes, dez palácios, cem portas flanqueadas de torres. Estandartes multicores tremulavam sobre os altos muros, como serpentes aladas. Era a altiva Madura, invencível. corno a fortaleza de Indra. Lá reinava Cansa, de coração tortuoso e alma insaciável. Ele só admitia escravos ao seu redor, e só acreditava possuir o que ele próprio houvesse derrubado. E o que já possuía não lhe parecia nada diante do que restava para conquistar. Todos os reis que reconheciam os cultos lunares lhe prestavam homenagem. Mas Cansa sonhava em submeter toda a Índia, de Lanca até o Himavat. Para realizar seus desígnios, ele se aliou a Calaieni, senhor dos montes Víndia, o poderoso rei dos Iavanas, os homens de face amarela. Sectário da deusa Cali, Calaieni se dedicara às artes tenebrosas da magia negra. Chamavam-no de amigo dos Rakchasas, os demônios notívagos, e rei

das serpentes, porque delas se servia para aterrorizar o povo e seus inimigos. No fundo de uma floresta espessa ficava o templo da deusa Cali, escavado numa montanha; imensa caverna negra, cuja profundidade se ignorava e cuja entrada era guardada por estátuas colossais com cabeças de animais, talhadas na rocha. Para lá se dirigiam aqueles que desejavam render homenagem a Calaieni, para dele obter algum poder secreto. Ele aparecia à entrada do templo, em meio a uma multidão de serpentes monstruosas que se enrodilhavam em seu corpo e que se erguiam ao comando de seu cetro. Forçava seus tributários a se prostrarem diante dos animais, cujas cabeças emaranhadas pendiam da sua. Ao mesmo tempo, murmurava uma fórmula misteriosa. Aqueles que cumprissem esse rito e adorassem as serpentes obtinham, segundo diziam, imensos favores e tudo o que eles desejassem. Mas caíam irrevogavelmente sob o poder de Calaieni. Perto ou longe, seriam seus escravos. Acreditavam que se tentassem desobedecê-lo ou escapar ao seu domínio, veriam erguer-se diante de si o terrível mago cercado de seus répteis, cujas cabeças sibilantes os envolveriam, paralisando-os com seus olhos fascinadores. Cansa pediu a Calaieni uma aliança. O rei dos Iavanas prometeu-lhe o império da Terra, sob a condição de que desposasse sua filha.

Arrogante como um antílope e flexível como uma serpente era a filha do rei mago, a bela Nisumba, de pingentes de ouro e seios de ébano. Sua face se assemelhava a uma nuvem sombria matizada de reflexos azulados da lua; os olhos, a dois relâmpagos; e a boca ávida, à polpa de uma fruta vermelha com sementes brancas. Dir-se-ia que ela era a própria Cali, a deusa do Desejo. Logo ela reinou como senhora no coração de Cansa e, insuflando todas as suas paixões, fez crescer nele um ardente braseiro. Cansa tinha um palácio cheio de mulheres de todas as cores, mas só ouvia a Nisumba.

– Que eu tenha de ti um filho, disse-lhe ele, e o farei meu herdeiro. Serei então o senhor da Terra e não temerei mais ninguém.

No entanto, Nisumba não concebia, e seu coração se irritava. Invejava as outras mulheres de Cansa, cujos amores haviam sido fecundados. Ela induzia o pai a multiplicar os sacrifícios a Cali, mas seu

seio continuava estéril como a areia de um solo tórrido. Então, o rei de Madura ordenou que, diante de toda a cidade, se realizasse o grande sacrifício do fogo e que se invocassem todos os Devas. As mulheres de Cansa e toda a população compareceram em grande pompa. Prosternados diante do fogo, os sacerdotes, com seus cânticos, invocavam o grande Varuna, Indra, os Asvins e os Marutes.

A rainha Nisumba se aproximou e lançou no fogo um punhado de perfumes, num gesto de desafio, pronunciando uma fórmula mágica numa língua desconhecida. A fumaça se condensou, as chamas rodopiaram, e os sacerdotes, espantados, exclamaram:

– Oh! rainha, não foram os Devas, mas os Rakchasas que passaram sobre o fogo. Teu seio permanecerá estéril.

Cansa se aproximou do fogo por sua vez e perguntou ao sacerdote:

– Então dize-me de qual das minhas mulheres nascerá o senhor do mundo?

Neste momento, Devac, a irmã do rei, acercou-se do fogo. Era uma virgem de coração simples e puro que passara a infância a fiar e a tecer, e que vivia como em um sonho. Seu corpo estava na terra, mas sua alma parecia sempre no céu. Devac ajoelhou-se humildemente, implorando aos Devas que concedessem um filho ao seu irmão e à bela Nisumba. O sacerdote olhou, alternadamente, o fogo e a virgem. De repente, exclamou cheio de espanto:

– Oh! rei de Madura, nenhum de teus filhos será o senhor do mundo! Ele nascerá do seio da tua irmã que aqui está.

Foi grande a consternação de Cansa e a cólera de Nisumba ao ouvirem estas palavras. Quando a rainha ficou a sós com o rei, disse- lhe:

– Devac deve morrer incontinenti.

– Como poderei, respondeu Cansa, matar minha irmã? Se os Devas a protegem, sua vingança recairá sobre mim.

– Então, declarou Nisumba, cheia de furor, que ela reine em meu lugar e que tua irmã ponha no mundo aquele que te fará perecer vergonhosamente. Eu, porém, não quero mais reinar ao lado de um

covarde que tem medo dos Devas. Volto para a casa de meu pai, Calaieni.

Os olhos de Nisumba lançaram chispas, os pingentes se agitavam sobre seu colo negro e reluzente. Ela rolou por terra e seu belo corpo se retorcia como uma serpente enfurecida. Cansa, ameaçado de perdê-la e tomado de uma terrível volúpia, teve medo e, corroído por um novo desejo, declarou:

– Pois bem! Devac morrerá! Mas não me deixes!

Um clarão de triunfo brilhou nos olhos de Nisumba, uma onda de sangue ruborizou sua face negra. Depois, roçando-o com seus seios de ébano, de onde exalavam perfumes capitosos, e tocando-os com os lábios ardentes, murmurou em voz baixa:

– Nós ofereceremos um sacrifício a Cali, a deusa do Desejo e da Morte, e ela nos dará um filho que será o senhor do mundo!

Todavia, naquela mesma noite, o Pirohita, chefe do sacrifício, viu em sonho o rei Cansa tirando a espada contra sua irmã. Dirigiu-se logo para os aposentos da virgem Devac, anunciou-lhe que um perigo de morte a ameaçava e ordenou-lhe que, sem demora, se refugiasse entre os anacoretas. Devac, instruída pelo sacerdote do fogo, disfarçou-se em penitente e saiu do palácio de Cansa, deixando a cidade de Madura sem que ninguém percebesse. Pela manhã, bem cedo, os soldados a procuraram para matá-la, mas encontraram o quarto vazio. O rei interrogou os guardas da cidade, obtendo a resposta de que as portas permaneceram fechadas durante toda a noite. Entretanto, disseram eles que, enquanto dormiam, tinham visto os muros sombrios da fortaleza se partirem sob um raio de luz e uma mulher sair da cidade, seguindo-o.

Cansa compreendeu que um poder invencível protegia Devac. Desde então o pavor penetrou em sua alma e ele passou a odiar mortalmente a irmã.

III

No documento OS GRANDES INICIADOS (páginas 46-50)