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OS FILHOS DO SOL E OS FILHOS DA LUA

No documento OS GRANDES INICIADOS (páginas 41-46)

Da conquista da Índia pelos árias surgiu uma das mais brilhantes civilizações de que se tem conhecimento sobre a Terra. O Ganges e seus afluentes viram nascer grandes impérios e imensas capitais, como Aiodiá, Hastinapura e Indrapecita. As narrativas épicas do

Mahabharata, e as cosmogonias, populares dos Puranas que contêm as

mais velhas tradições históricas da Índia, falam com deslumbramento da opulência real, da grandeza heróica e do espírito cavalheiresco daquelas eras remotas. Nada mais altivo nem mais nobre do que um daqueles reis arianos da Índia, de pé em seu carro de guerra, comandando exércitos de elefantes, cavalos e soldados. Um sacerdote védico assim consagra seu rei diante da multidão: “Eu te trouxe para o meio de nós. Todo o povo te deseja. O céu é firme, a Terra é firme; essas montanhas são firmes; que o rei das famílias seja firme também!” Num código de leis posterior, o Manava-Dharma-Sastra, pode-se ler: “Os senhores do mundo que, desejosos de vencer, empregam todo seu vigor na batalha, sem jamais recuarem, sobem diretamente ao céu após a morte”. De fato, eles se dizem descendentes dos deuses, consideram-se seus rivais, dispostos a se tornarem deuses também. A obediência filial, a coragem militar com um sentimento de generosa proteção para com todos, eis o ideal do homem. Quanto à mulher, humilde serva dos brâmanes, a epopéia hindu sempre nos mostra sob os traços de esposa fiel. Nem a Grécia, nem os povos do Norte imaginaram em seus poemas esposas tão delicadas, tão nobres, tão exaltadas quanto a apaixonada Sita ou a terna Damaianti.

O que a epopéia hindu não nos revela é o profundo mistério da mistura das raças e a lenta fermentação das idéias religiosas, que

trouxeram profundas mudanças para a organização social da Índia védica. Os árias, conquistadores de raça pura, viam-se diante de raças muito misturadas e bastante inferiores, onde o tipo amarelo e vermelho se cruzavam sobre um fundo negro de múltiplas nuances. A civilização hindu assim nos aparece como uma formidável montanha, trazendo na base uma raça melanina, nos flancos, os sangue-mesclados, e no vértice, os puros arianos. A separação das castas, na época primitiva, não era muito rigorosa, e grandes misturas ocorreram entre esses povos. A pureza da raça conquistadora se alterou cada vez mais com o decorrer dos séculos. Mas, até hoje, nota-se a predominância do tipo ariano nas altas classes e do tipo melanino nas classes inferiores. Ora, da turva escória da sociedade hindu sempre se elevou, como os miasmas da jângal misturados ao odor das feras, um sopro ardente de paixões, uma mistura de langor e de ferocidade. O sangue negro, superabundante, deu ao hindu sua cor especial. Afinou e efeminou. a raça. O prodígio foi que, apesar dessa mestiçagem, as idéias dominantes na raça branca conseguiram se manter no vértice dessa civilização, através de tantas revoluções.

Aí está, pois, bem definida, a base étnica da Índia: de um lado, o gênio da raça branca com seu sentido moral e suas sublimes aspirações metafísicas; de outro, o gênio da raça negra com suas energias passionais e sua força dissolvente. E como se traduz na antiga história religiosa da Índia essa duplicidade espiritual? As mais antigas tradições falam de uma dinastia solar e outra lunar. Os reis da dinastia solar pretendiam descender do Sol; os outros se diziam filhos da Lua. Mas esta linguagem simbólica encobria duas concepções religiosas opostas, e significava que as duas categorias de soberanos se ligavam a dois cultos diferentes. O culto solar emprestava ao Deus do Universo o sexo masculino. E em torno dele se agrupava tudo o que havia de mais puro na tradição védica: a ciência do fogo sagrado e da oração, a noção esotérica do Deus supremo, o respeito à mulher, o culto dos antepassados, a realeza eletiva e patriarcal. O culto lunar atribuía à divindade o sexo feminino, sob cujo signo as religiões do ciclo ariano sempre adoraram a natureza, uma natureza cega, inconsciente, em suas

manifestações violentas e terríveis. Esse culto tendia para a idolatria e a magia negra, favorecia a poligamia e a tirania apoiadas nas paixões populares. A luta entre os filhos do Sol e os filhos da Lua, entre os Pandavas e os Curavas, forma o tema da grande epopéia hindu, o

Mahabharata, uma espécie de compêndio em perspectiva da história da

Índia: ariana, antes da constituição definitiva do bramanismo. Nessa luta abundam os combates encarniçados, as aventuras estranhas e intermináveis. No meio da gigantesca epopéia, os Curavas, reis lunares, saem vencedores. Os Pandavas, os nobres filhos do Sol, guardiões dos ritos puros, são destronados e banidos. Exilados, ocultam-se nas florestas, refugiam-se entre os anacoretas, vestidos de casca de árvore e sustentando bastões de eremita.

Triunfarão os baixos instintos? As potências das trevas, representadas na epopéia hindu pelos Rakchasas negros, vencerão os Devas luminosos? A tirania esmagará a elite sob seu carro de guerra ou o ciclone das más paixões destruirá o altar védico, extinguindo o fogo sagrado dos antepassados? Não, pois a Índia estava apenas no início de sua evolução religiosa. Ela iria desenvolver seu gênio metafísico e organizador na instituição do bramanismo. Os sacerdotes que serviam os reis e os chefes sob o nome de pirohitas (encarregados do sacrifício do fogo) já se haviam tornado seus conselheiros e ministros. Possuíam grandes riquezas e uma considerável influência. Mas não teriam podido dar à sua casta a autoridade suprema, a posição inatacável acima do próprio poder real, sem o apoio de outra classe de homens que personificava o espírito da Índia, no que ele tem de mais original e mais profundo. Trata-se dos anacoretas.

Desde tempos imemoriais, esses ascetas habitavam eremitérios no fundo das florestas, à margem dos rios ou em montanhas, perto dos lagos sagrados. Eram vistos sozinhos ou reunidos em confrarias, mas sempre unidos pelo mesmo espírito e reconhecidos como os reis espirituais, os verdadeiros senhores da Índia. Herdeiros dos antigos sábios, dos richis, somente eles possuíam a interpretação secreta dos Vedas. Neles vivia o gênio do ascetismo, da ciência oculta, dos poderes transcendentais. Para atingir esta ciência e este poder, eles enfrentam

tudo, a fome, o frio, o sol ardente e o horror da jângal. Indefesos em suas cabanas de madeira, vivem de oração e de meditação. Chamam ou afugentam as serpentes, amansam os leões e os tigres com a voz ou com o olhar. Feliz de quem obtiver sua bênção, pois terá os Devas como amigos! Infeliz daquele que os maltrata ou os mata, pois, dizem os poetas, sua maldição persegue o culpado até a terceira encarnação. Os reis tremem diante de suas ameaças e, coisa curiosa, esses ascetas amedrontam até os próprios deuses. No Ramaiana, Viçvamitra, um rei que se fez asceta, adquire tal poder por sua austeridade e suas meditações que os deuses tremem ante sua existência. Então, Indra lhe envia a mais encantadora das Apsaras, que vem banhar-se no lago, diante da cabana do santo. O anacoreta é seduzido pela ninfa celeste, e dessa união nasce um herói. Assim, por alguns milênios, está garantida a existência do Universo. Sob tais exageros poéticos, adivinha-se o poder real e superior dos anacoretas da raça branca, os quais, com um profundo vaticínio e uma vontade intensa, do fundo de suas florestas governam a alma tempestuosa da Índia.

E do seio da confraria desses anacoretas é que sairia a revolução sacerdotal que fez da Índia: a mais formidável das teocracias. A vitória do poder espiritual sobre o poder temporal, do anacoreta sobre o rei, que deu origem ao poder do bramanismo, foi obra de um reformador de primeira ordem. Reconciliando os dois gênios em luta, o da raça branca e o da raça negra, os cultos solares e os lunares, esse homem divino foi o verdadeiro criador da religião nacional da Índia. Além disso, através de sua doutrina, esse poderoso espírito lançou no mundo uma idéia nova, de imenso alcance: a do verbo divino ou da divindade encarnada ou manifestada no homem. Esse primeiro messias, o filho mais velho de Deus, foi Krishna.

Sua lenda é sumamente importante, pois resume e dramatiza toda a doutrina brâmane. Só que ela permanece como que dispersa e flutuante na tradição, pela simples razão de que falta força plástica ao gênio hindu. A narrativa confusa e mítica do Visnu-Purana encerra, porém, dados históricos sobre Krishna, com características individuais e engenhosas. Por outro lado, o Bhagavadgita, o maravilhoso episódio

inserido, no grande poema Mahabharata, que os brâmanes consideram um de seus livros mais sagrados, contém em toda a sua pureza a doutrina que lhe é atribuída.

Foi lendo esses dois livros que a figura do grande iniciador religioso da Índia me apareceu com toda a persuasão dos seres vivos. Narrarei, pois, a história de Krishna. inspirando-me nessas fontes, uma das quais representa a tradição popular e a outra, a tradição dos iniciados.

II

No documento OS GRANDES INICIADOS (páginas 41-46)