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A RELIGIÃO VÉDICA

No documento OS GRANDES INICIADOS (páginas 33-41)

Por seu gênio organizador, o grande iniciador dos árias criara no centro da Ásia, no Irã, um povo, uma sociedade, um turbilhão de vida que deveria resplandecer em todos os sentidos.

As colônias dos árias primitivos se difundiram na Ásia, na Europa, levando consigo seus costumes, seus cultos e seus deuses. Mas, de todas elas, o ramo dos árias da Índia é o que mais se aproxima dos árias primitivos.

Os livros sagrados dos hindus, os Vedas, têm para nós um triplo valor. Primeiramente, nos conduzem ao centro da antiga e pura religião ariana, da qual os hinos védicos são brilhantes irradiações. Em seguida, nos fornecem a chave da Índia. E, finalmente, nos revelam urna primeira cristalização das idéias-mães da doutrina esotérica e de todas as religiões arianas (1).

Limitar-nos-emos a uma breve exposição da exterioridade e do sentido da religião védica.

Nada mais simples nem maior do que essa religião, onde um profundo naturalismo se mistura com um espiritualismo transcendente. Antes de romper o dia, um homem, um chefe de família já está de pé diante de um altar de terra no qual arde o fogo aceso com dois pedaços de madeira. Em sua função, o chefe é ao mesmo tempo pai, sacerdote e rei do sacrifício. Enquanto vem a aurora, diz um poeta védico, “como uma mulher que sai do banho e que teceu a mais bela das telas”, o chefe pronuncia uma oração, uma invocação a Usha (a Aurora), a Savitri (o Sol), aos Asuras (espíritos da vida). A mãe e os filhos vertem no Agni, o fogo, o líquido fermentado do asclépia, o soma. E a chama que se ergue leva aos deuses invisíveis a oração purificada que sai dos lábios do patriarca e do coração da família.

O estado de espírito do poeta védico está também afastado do sensualismo helênico (falo dos cultos populares da Grécia, não da doutrina dos iniciados gregos), que representa os deuses cósmicos com

belos corpos humanos, e do monoteísmo judaico que adora o Eterno sem forma, onipresente. Para o poeta védico a natureza é como um véu transparente, atrás do qual se movem forças imponderáveis e divinas. São essas forças que ele invoca, adora e personifica sem, entretanto, se deixar iludir por suas metáforas. Para ele, Savitri é menos o Sol do que Vivasvat, a potência criadora de vida que o anima e que gira o sistema solar. Indra, o guerreiro divino que com seu carro dourado percorre o céu, lança o raio e rompe as nuvens, personifica o poder desse mesmo Sol, na vida atmosférica, na “grande transparência dos ares”. Quando invocam Varuna (o Urano dos Gregos), o deus do céu imenso e luminoso que envolve todas as coisas, os poetas védicos se elevam muito mais ainda. “Se Indra representa a vida ativa e militante do céu, Varuna representa sua majestade imutável. Nada se iguala em magnificência, nas descrições que dele fazem os Hinos. O Sol é seu olho, o céu sua vestimenta, o furacão seu sopro. Foi ele que fixou o céu e a Terra em bases inabaláveis e que os mantém separados. Ele tudo fez e tudo conserva. Nada poderia causar dano às obras de Varuna. Ninguém o compreende; mas ele sim, ele sabe tudo e vê tudo que é e será. Dos pináculos do céu onde reside, num palácio de mil portas, ele distingue o traçado dos pássaros no ar e o dos navios sobre as ondas. É de lá, do alto de seu trono de ouro em bases de bronze, que ele contempla e julga as ações dos homens. Ele é o mantenedor da ordem no Universo e na sociedade; pune o culpado e é misericordioso com quem se arrepende. É também para ele que se ergue o grito angustiado do remorso. Perante ele é que o pecador vem descarregar o peso de sua falta. Às vezes, a religião védica é ritualista, às vezes altamente especulativa. Com Varuna, ela desce às profundezas da consciência e realiza a noção da santidade”. (2) Acrescentamos que ela se eleva à pura noção de um Deus único, que penetra e domina o grande Todo.

No entanto, as imagens grandiosas que os hinos derramam em largas ondas, como generosos rios, nos oferecem apenas o invólucro dos Vedas. Com a noção de Agni, o fogo divino, tocamos o âmago da doutrina, seu fundo esotérico e transcendental. Com efeito, Agni é o agente cósmico, o princípio universal por excelência. “Ele não é

somente o fogo terrestre do relâmpago e do Sol. Sua verdadeira pátria é o céu invisível, místico, morada da eterna luz e dos primeiros princípios de todas as coisas. Suas nascentes são infinitas, seja quando jorra da madeira onde dorme, como o embrião na matriz, seja quando, “Filho das Ondas”, se arremessa, com o estrépito do trovão, das torrentes celestes, onde os Acvins (os cavaleiros celestes) engendraram-no com raias de ouro. Ele é o primogênito dos deuses, soberano tanto no céu como na Terra, e oficiou na morada de Vivasvat (o céu ou o Sol) muito antes de Matarisva (o relâmpago) tê-lo trazido aos mortais, e de Atarvã e os Angiras, antigos sacrificadores, terem-no instituído aqui embaixo como protetor, hóspede e amigo dos homens. Senhor e gerador do sacrifício, Agni tornou-se o portador de todas as especulações místicas cujo objeto é o sacrifício. Ele engendra os deuses, organiza o mundo, produz e conserva a vida universal; em uma palavra, ele é potência

cosmogônica.

“Soma é o pingente de Agni. Na realidade é a beberagem de uma planta fermentada, vertida em libação aos deuses durante o sacrifício. Mas, como Agni, ele tem urna existência mística. Sua residência suprema é nas profundezas do terceiro céu, onde Surya, a filha do sol, filtrou-o; onde o encontrou Pushan, o deus nutridor. Foi de lá que o Falcão, um símbolo do relâmpago, ou o próprio Agni, raptaram-no do Arqueiro celeste, Gandarva, seu guardião, e trouxeram-no para os homens. Os deuses beberam-no e se tornaram imortais; os homens, por sua vez, também se tornarão imortais quando dele beberem na morada de Yama, mansão dos felizes. Enquanto esperam, ele lhes dá, aqui embaixo, o vigor e a plenitude dos dias; ele é a ambrosia e a água de juventude. Ele nutre, penetra nas plantas, vivifica o sêmen dos animais, inspira o poeta e confere elã à oração. Alma do céu e da terra, de Indra

e de Visnu, ele forma com Agni um par inseparável; o par que acendeu o sol e as estrelas (3).”.

A noção de Agni e de Soma contém os dois princípios essenciais do Universo, segundo a doutrina esotérica e toda a filosofia viva. Agni é o Eterno-Masculino, o Intelecto criador, o Espírito puro; Soma é o

todos os mundos visíveis e invisíveis aos olhos da carne; enfim, é a Natureza ou a matéria sutil em suas infinitas transformações (4). Ora, a união perfeita desses dois seres constitui o Ser supremo, a essência de Deus.

Dessas duas idéias capitais decorre uma terceira, não menos fecunda. Os Vedas fazem do ato cosmogônico um sacrifício perpétuo. Para produzir tudo o que existe, o Ser supremo imola a si mesmo, divide-se para sair de sua unidade. Esse sacrifício é, pois, considerado o ponto vital de todas as funções da natureza. Esta idéia, surpreendente ao primeiro contato, bastante profunda quando sobre ela se reflete, contém, em germe, toda a doutrina teosófica da evolução de Deus no mundo, a síntese esotérica do politeísmo e do monoteísmo. Ela conceberá a doutrina dionisíaca da queda e da redenção das almas, que se desenvolverá com Hermes e Orfeu. Daí surgirá a doutrina do Verbo divino proclamada por Krishna e concluída por Jesus Cristo.

O sacrifício do fogo, com suas cerimônias e suas orações, centro imutável do culto védico, torna-se, assim, a imagem desse grande ato cosmogônico. Os Vedas atribuem uma importância capital à oração, à fórmula de invocação que acompanha o sacrifício. Por isso fazem da oração uma deusa - Bramanaspati. A fé no poder evocador da palavra humana acompanhada do poderoso movimento da alma, ou de uma intensa projeção da vontade, é a fonte de todos os cultos, e a razão da doutrina egípcia e caldéia da magia. Para o padre védico e bramânico, os Asuras, senhores invisíveis, e os Pitris ou almas dos ancestrais, supostamente, sentam-se na relva durante o sacrifício, atraídos pelo fogo, pelos cânticos e a oração. A ciência relacionada a essa vertente do culto é a da hierarquia dos espíritos de todas as categorias.

Quanto à imortalidade da alma, os Vedas afirmam tão aberta quanto claramente possível: “A alma é uma parte imortal do homem. A ela, oh! Agni, é preciso aquecer com teus raios, inflamar com tuas chamas. Oh! Jatadevas, no corpo glorioso formado por ti, transporta-a para o mundo dos piedosos!” Os poetas védicos não somente revelam o destino da alma, como também se preocupam com sua origem: “De onde provêm as almas? É certo que elas vêm de lá até nós e para lá

retornam, que vêm novamente e tornam a ir”. Eis já, em duas palavras, a doutrina da reencarnação, que representará o papel mais importante no bramanismo e no budismo, entre os egípcios e os órficos, na filosofia de Pitágoras e de Platão, o mistério dos mistérios, o arcano dos arcanos.

Como, depois disto, deixar de reconhecer nos Vedas as grandes linhas de um sistema religioso orgânico, de uma concepção filosófica do Universo? Não há neles somente a intuição profunda das verdades intelectuais anteriores e superiores à observação, há também mais unidade e largueza de visão na compreensão da natureza, na coordenação de seus fenômenos. Como um belo cristal de rocha, a consciência do poeta védico reflete o Sol da eterna verdade, e nesse prisma brilhante já se movimentam todos os raios da teosofia universal. Os princípios da doutrina permanente aí são até mais visíveis do que nos outros livros sagrados da Índia e nas outras religiões semíticas ou arianas, devido à singular franqueza dos poetas védicos e da transparência dessa religião primitiva, tão elevada e tão pura. Naquela época não existia distinção entre os mistérios e o culto popular. Todavia, lendo-se atentamente os Vedas percebe-se já, por trás do pai de família ou do poeta oficiante dos hinos, um outro personagem mais importante: o richi, o sábio, o iniciado, de quem aqueles receberam a verdade. Vê-se também que esta verdade se transmitiu por uma tradição ininterrupta, que remonta às origens da raça ariana.

Eis, pois, o povo ariano arrojado em sua carreira conquistadora e civilizadora, ao longo do Indo e do Ganges. Domina-a Deva Nahusha, o gênio invisível de Rama, a inteligência das coisas divinas. Circula em suas veias o fogo sagrado, Agni. Uma aurora rósea envolve essa idade de juventude, de força, de virilidade. A família foi constituída e a mulher passou a ser respeitada. Sacerdotisa do lar, às vezes ela compõe os hinos, e ela mesma os canta. “Que o marido desta mulher viva cem anos”, diz um poeta. Ama-se a vida, mas também se acredita no seu Além. O rei mora em um castelo sobre a colina que domina a aldeia. Na guerra, montado em um carro brilhante, revestido de armas reluzentes, e coroado com uma tiara, ele resplandece como o deus Indra.

Mais tarde, quando os brâmanes tiverem estabelecido sua autoridade, irá se erguer, perto do esplêndido palácio do Maharaja ou do grande rei, o pagode de pedra. Daí sairão as artes, a poesia e o drama dos deuses, representado por gestos e cantado pelas dançarinas sagradas. Naquele tempo já existiam as castas, mas sem grande rigor e sem uma barreira absoluta. O guerreiro é sacerdote, o sacerdote é guerreiro, e muito freqüentemente servidor oficial do chefe ou do rei.

Eis, entretanto, um personagem de aspecto pobre mas de futuro rico. Cabelos e barba incultos, seminu, coberto de andrajos vermelhos. Esse muni, esse solitário, reside perto dos lagos sagrados, nas solidões selvagens, onde se entrega à meditação e à vida ascética. De tempos em tempos, ele vem admoestar o chefe ou o rei. Muitas vezes é repelido e desobedecido. Mas é respeitado e temido. Já exerce um poder tremendo. Entre esse rei, em seu carro dourado, cercado de guerreiros, esse

muni quase nu, que não tem outras armas além de seu pensamento, sua

palavra e seu olhar, haverá uma luta. E o grande vencedor não será o rei; será o solitário, o mendigo descarnado, porque ele possui a erudição e a vontade.

A história dessa luta é a própria história do bramanismo, como será mais tarde a do budismo, e nela se resume quase toda a história da Índia.

(1). Os brâmanes consideram os Vedas seu livro sagrado por excelência. Aí encontram a ciência das ciências. A própria palavra Véda significa saber. Os sábios da Europa foram justamente atraídos para esses textos por uma espécie de fascinação. Primeiramente, viram neles apenas uma poesia patriarcal; depois, descobriram não somente a origem dos grandes mitos indo-europeus e de nossos deuses clássicos, mas ainda um culto sabiamente organizado, um profundo sistema religioso e metafísico (Ver Bergaigne, La Réligion des Védas, assim como o belo e luminoso trabalho de M. Augusto e Barth, Les réligions de I'Inde). O futuro lhes reserva, talvez, uma última surpresa, que será a de encontrar nos Vedas a definição das forças ocultas da natureza, que a ciência moderna está prestes a descobrir.

(2). A. Barth. Lés réligions de L’Inde. (3). A. Barth. Lés réligions de L’Inde.

(4). O que prova indubitavelmente que Soma representava o princípio feminino absoluto é que; os brâmanes o identificaram mais tarde com a Lua. Ora, a Lua simboliza o princípio feminino em todas as religiões antigas, como o Sol simboliza o princípio masculino.

LIVRO II

KRISHNA

A Índia e a iniciação brâmane

Aquele que cria incessantemente os mundos é tríplice. É Brama, o Pai; é Maya, a Mãe; é Visnu, o Filho. Essência, Substância e Vida. Cada um traz em si os dois outros e todos os três são um no Inefável.

Doctrine brahamanique. UPANISHADS.

Trazes em ti mesmo um amigo sublime que não conheces. Pois Deus reside no interior de todo homem, mas poucos sabem encontrá-lo. O homem que oferece seus desejos e suas obras, em sacrifício, ao Ser de onde procedem os princípios de todas as coisas e por quem o Universo foi formado, obtém a perfeição. Porque aquele que encontra em si mesmo sua felicidade e sua alegria, e também sua luz, é uno com Deus. Ora, sabe tu: a alma que encontrou Deus está livre do renascimento e da morte, da velhice e da dor, e bebe a água da imortalidade.

KRISHNA

A Índia e a Iniciação Brâmane I

No documento OS GRANDES INICIADOS (páginas 33-41)