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CAPÍTULO I O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO E A EDUCAÇÃO

1.2 O direito à educação integral no Estado Democrático de Direito

1.2.1 A educação integral como direito de cidadania e dever do Estado

Em sintonia com o momento de abertura política, a denominada “Constituição Cidadã” instituiu, em seu Artigo 205, a educação como um direito de todos, incorporando ao sistema educacional brasileiro os sujeitos historicamente excluídos da oferta e manutenção do ensino em nosso país (VIEIRA, 2007). Da mesma forma, estabeleceu a obrigação precípua do Estado em relação ao direito à educação, exigindo do poder público medidas visando a sua efetivação.

O caput do Artigo 205 estabeleceu, ainda, que o direito à educação deve visar “ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho”, finalidades estas que, nas palavras de Ganzeli (2017, p. 581) constituem as “premissas que orientam a Educação Integral em nosso país”.

Nesta perspectiva, estamos compreendendo a concepção constitucional de educação integral como um direito de cidadania, o qual deve visar não apenas ao desenvolvimento das capacidades individuais do sujeito que aprende mas também ao desenvolvimento do bem comum, por meio da participação ativa do cidadão na sociedade onde está inserido.

No entanto, cabe questionar: em que consistem essas três finalidades e quais são seus elementos constitutivos? Uma vez que o texto constitucional é amplo o bastante e não responde a esses questionamentos, buscamos, na legislação infraconstitucional e na literatura disponível, os elementos para discuti-los.

De acordo com a LDBEN de 1996, a organização da educação escolar no Brasil compreende dois níveis de ensino: a educação básica e o ensino superior. A educação básica, por sua vez, organiza-se em três etapas, a educação infantil, o ensino fundamental e o ensino médio, além das modalidades de educação especial, educação de jovens e adultos e educação profissional.

Em consonância com a CF de 1988, a LDBEN de 1996 estabelece, em seu Artigo 2º:

a educação, dever da família e do Estado, inspirada nos princípios de liberdade e nos ideais de solidariedade humana, tem por finalidade o pleno

desenvolvimento do educando, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho” (BRASIL, 1996, grifos

nossos).

Diante da previsão legal, passamos a incursionar o texto da LDBEN de 1996 em busca de elementos que nos informem acerca desta concepção de educação integral.

O desenvolvimento da pessoa, uma primeira “premissa” da educação integral, encontra-se previsto em distintas passagens da LDBEN de 1996, relacionando-se às diferentes etapas da educação básica e também ao ensino superior, conforme excertos transcritos na sequência.

Art. 29. A educação infantil, primeira etapa da educação básica, tem como finalidade o desenvolvimento integral da criança de até 5 (cinco) anos, em seus aspectos físico, psicológico, intelectual e social, complementando a ação da família e da comunidade.

(...)

Art. 32. O ensino fundamental obrigatório, com duração de 9 (nove) anos, gratuito na escola pública, iniciando-se aos 6 (seis) anos de idade, terá por objetivo a formação básica do cidadão, mediante:

I - o desenvolvimento da capacidade de aprender, tendo como meios básicos o pleno domínio da leitura, da escrita e do cálculo;

II - a compreensão do ambiente natural e social, do sistema político, da tecnologia, das artes e dos valores em que se fundamenta a sociedade; III - o desenvolvimento da capacidade de aprendizagem, tendo em vista a aquisição de conhecimentos e habilidades e a formação de atitudes e valores;

(...)

Art. 35. O ensino médio, etapa final da educação básica, com duração mínima de três anos, terá como finalidades:

(...)

III - o aprimoramento do educando como pessoa humana, incluindo a formação ética e o desenvolvimento da autonomia intelectual e do pensamento crítico;

(...)

Art. 43. A educação superior tem por finalidade:

I - estimular a criação cultural e o desenvolvimento do espírito científico e do pensamento reflexivo (BRASIL, 1996).

Depreende-se do trecho destacado que, em linhas gerais, a concepção constitucional de educação integral pressupõe a existência de processos formativos relacionados ao desenvolvimento intelectual, físico e psicológico do educando, conforme explicita Ganzeli (2017).

Segundo Paro (2010), as ações educacionais visando ao pleno desenvolvimento do educando devem ir além da transmissão dos conhecimentos expressos no rol das disciplinas escolares. Nas palavras desse autor:

(...) se, à luz de uma concepção radicalmente democrática de mundo, admite-se que os homens nascem igualmente com o direito universal de acesso à herança cultural produzida historicamente, então a educação – meio de formá-lo como humano-histórico – não pode se restringir aos conhecimentos e informações, mas precisa, em igual medida, abarcar os valores, as técnicas, a ciência, a arte, o esporte, as crenças, o direito, a filosofia, enfim, tudo aquilo que compõe a cultura produzida historicamente e necessária para a formação do ser humano-histórico em seu sentido pleno (PARO, 2010, p. 771).

Conforme observamos, o desenvolvimento integral do educando supõe a formação do ser humano-histórico detentor de múltiplas e infinitas capacidades e, para tanto, “o educador precisa levar em conta as condições em que o educando se faz sujeito” (PARO, 2010, p. 772). Nesta perspectiva, não basta transmitir os

conteúdos de uma determinada disciplina, é necessário criar condições para que o aluno se desenvolva enquanto sujeito de sua aprendizagem, considerando seu processo de desenvolvimento intelectual, físico e psicológico.

Segundo Ganzeli (2017, p. 583), “o desenvolvimento intelectual [...] deve ser garantido pela educação escolar com a transmissão dos conhecimentos historicamente produzidos pela humanidade, bem como, pela possibilidade da produção de novos conhecimentos”. Para tanto, o autor defende a pesquisa e a interdisciplinaridade como meios para que este aspecto da formação seja desenvolvido pela escola.

Para esse mesmo autor, o desenvolvimento físico compreende a ideia de consciência corporal, oportunizada na escola por meio dos componentes curriculares de educação física e pela participação em atividades relacionadas à expressão artística, dentre outras possibilidades político-pedagógicas (GANZELI, 2017).

No que se refere à promoção do desenvolvimento psicológico, Ganzeli aponta como necessários os processos educativos relacionados à compreensão da realidade do aluno, realidade esta permeada pela diversidade de pessoas e de grupos sociais. Assim, “o respeito à diversidade e escolhas individuais e de grupos em relação às opções sexuais, religiosas, entre outras, garante a liberdade democrática de cada pessoa e de grupos sociais do exercício pleno da cidadania” (GANZELI, 2017, p. 583).

Já no tocante ao preparo para o exercício da cidadania, segunda “premissa” da educação integral, o texto da LDBEN de 1996 mencionou-a em duas passagens, além de ter sido mencionada no caput do Artigo 2º, anteriormente explicitado.

Art. 22. A educação básica tem por finalidades desenvolver o educando, assegurar-lhe a formação comum indispensável para o exercício da cidadania e fornecer-lhe meios para progredir no trabalho e em estudos posteriores.

(...)

Art. 35. O ensino médio, etapa final da educação básica, com duração mínima de três anos, terá como finalidades:

(...)

II - a preparação básica para o trabalho e a cidadania do educando, para continuar aprendendo, de modo a ser capaz de se adaptar com flexibilidade a novas condições de ocupação ou aperfeiçoamento posteriores (BRASIL, 1996).

Assim como no texto constitucional, a LDBEN de 1996 tratou essa temática de modo geral, sem especificação de seu conteúdo, deixando a cargo dos diferentes sistemas de ensino o planejamento de ações com vistas à sua concretização.

Por outro lado, a concepção de cidadania inscrita no texto da LDBEN de 1996, em consonância com o texto da CF de 1988,

extrapola o mero exercício dos direitos políticos. Combina formas individuais e coletivas de exercício de direitos civis, políticos, econômicos, sociais e culturais na esfera da vida privada e da vida em sociedade (...). Tal concepção se sintetiza na consciência de pertencimento à sociedade estatal (RANIERI, 2009, p. 401).

Sendo assim, o preparo para o exercício da cidadania “não é uma vantagem, uma habilitação ou uma conquista individual, mas medida de interesse público e condição de funcionamento da sociedade estatal” (RANIERI, 2009, 405) e, nesse sentido, compete ao sistema educacional empreender meios para a sua plena realização.

Mas, afinal, em que consiste o sentido da exigência do preparo da pessoa para o exercício da cidadania, pela via da educação integral?

Importante assinalar que, assim como adverte Demo (1995, p. 147), a educação não favorece, automaticamente, o exercício da cidadania, pelo contrário, “dentro do contexto do capitalismo perverso, sua tendência maior e típica é de reproduzir o espectro das desigualdades sociais. Pode imbecilizar mais do que ensinar”.

Em contraposição a essa ideia, Palma Filho (1998, p. 117) adverte que, num contexto de direitos e deveres, ao insistir na função transformadora que “a educação pode vir a desempenhar no desenvolvimento da cidadania plena, não está deixando de reconhecer que a educação escolar não é condição suficiente, mas é condição necessária para desabrochar a cidadania”.

Dessa maneira, para que a educação integral alcance os objetivos a que se propõe, são imprescindíveis condições concretas, ou seja, “no processo educativo é mister ocorrer a emergência do sujeito histórico, capaz de ler a realidade criticamente e de nela intervir de modo alternativo instrumentado pelo conhecimento.

Trata-se de aprender a aprender, saber pensar, para melhor intervir” (DEMO, 1995, p. 147).

Por fim, a terceira “premissa” da educação integral diz respeito à qualificação da pessoa para o trabalho, trabalho este compreendido em sua “dimensão ontológica” (SAVIANI, 2007; FRIGOTTO, 2012), ou seja, enquanto um processo que permeia todo o ser do homem e que, portanto, constitui a sua especificidade. Assim, para Saviani (2007),

o ato de agir sobre a natureza transformando-a em função das necessidades humanas é o que conhecemos com o nome de trabalho. Podemos, pois, dizer que a essência do homem é o trabalho. A essência humana não é, então, dada ao homem; não é uma dádiva divina ou natural; não é algo que precede a existência do homem. Ao contrário, a essência humana é produzida pelos próprios homens. O que o homem é, é-o pelo trabalho. A essência do homem é um feito humano. É um trabalho que se desenvolve, se aprofunda e se complexifica ao longo do tempo: é um processo histórico (SAVIANI, 2007, p. 154).

Nesta concepção, a educação integral deve visar não apenas a formação do educando com vistas à sua inserção no mercado de trabalho por meio de um emprego, pelo contrário, a perspectiva apontada no texto constitucional compreende a formação do aluno em todas as dimensões da vida humana.

É a partir desta elementar constatação que percebemos a centralidade do trabalho como práxis que possibilita criar e recriar, não apenas no plano econômico, mas no âmbito da arte e da cultura, linguagem e símbolos, o mundo humano como resposta às suas múltiplas e históricas necessidades (FRIGOTTO, 2012, p. 60).

Cabe ressaltar, ainda, que o direito à educação integral somente será efetivado “no espaço educacional que promover as três premissas de forma plena, ou seja, quando o mesmo for organizado para atender ao desenvolvimento da pessoa, ao preparo para o exercício da cidadania e à qualificação para o trabalho” (GANZELI, 2017, p. 586, grifo do autor).

Nesse sentido, a educação integral, enquanto direito social, supõe a ação intervencionista do poder público para a sua efetivação. Para tanto, as quatro dimensões do direito à educação (TOMAŠEVSKI, 2001) devem ser, plenamente, atendidas.

Assim, a educação integral deve ser disponível, com uma infraestrutura adequada e com recursos materiais e humanos suficientes para o atendimento de toda a população. Deve ser acessível, incluindo a todos os alunos, indistintamente, e viabilizando as condições para que permaneçam no sistema escolar. Deve ser admissível, ou seja, o conteúdo escolar deve ser pertinente, significativo, adequado à realidade e, sobretudo, de qualidade. Por fim, deve ser adaptável e responder às necessidades dos educandos presentes nos diferentes contextos nos quais a escola se inscreve.

Importante observar que as iniciativas de materialização da educação integral em nosso país, em sua maioria, distanciaram-se do atendimento às quatro dimensões desse direito, conforme discussão empreendida na próxima seção deste capítulo.