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CAPÍTULO I O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO E A EDUCAÇÃO

1.1 Estado, cidadania e educação

1.1.2 O princípio da cidadania no Estado Democrático de Direito

A cidadania constitui-se em um dos fundamentos do Estado Democrático de Direito conforme prevê o inciso II do Artigo 1º da CF de 1988. Embora previsto legalmente, o conceito em destaque carece de definição, tendo em vista sua abrangência e os distintos significados que lhe advêm, conforme adverte Oliveira (1995, p. 37):

O termo "cidadania" envolve, pelo menos, dois significados que o tornam um conceito particularmente complexo. De um lado, e este é seu significado histórico, aparece identificado com a ideia de "nação", com os direitos dos nacionais; de outro, com a ideia de direitos que qualquer pessoa tem ao viver em determinada sociedade.

Etimologicamente, o vocábulo refere-se, tanto em sua matriz latina (civitas) quanto na grega (polis), à participação do indivíduo na organização da cidade. Assim, na Antiguidade, eram considerados cidadãos apenas os detentores de direitos políticos que participavam do funcionamento das denominadas Cidades- Estado.

Com a decadência e o desaparecimento da civilização greco-romana, o conceito de cidadania adquiriu novos contornos e, no mundo ocidental, passa a se relacionar à perspectiva dos direitos humanos. Assim, em Arendt (1989), a cidadania é definida pela expressão “direito a ter direitos”, constituindo-se em direito humano fundamental do qual derivam todos os demais direitos.

Segundo Palma Filho (1998), o conceito de cidadania proposto por Arendt (1989) possui uma abrangência universal, extrapolando a pertença a um determinado Estado. Assim, embora se constitua em um direito fundamental do ser humano, a cidadania é um atributo que precisa ser conquistado por meio de um fazer coletivo, não se restringindo a uma qualidade individual ou a um privilégio.

A cidadania caracteriza-se, pois, como um constructo do convívio humano, convívio este que se dá nas interações sociais ocorridas em um determinado espaço público (LAFER, 1997). Assim, é possível afirmar que a cidadania, e consequentemente o processo de construção dos direitos humanos, adquire características próprias a depender do espaço e do tempo no qual se inscreve.

No mundo ocidental, costuma-se desdobrar o conceito de cidadania em três elementos distintos: os direitos civis, os políticos e os sociais. Thomas H. Marshall (1967), em seu clássico estudo intitulado “Cidadania, classe social e

status”, ao analisar o processo de conquista dos direitos humanos na sociedade

inglesa, assim os define:

O elemento civil é composto dos direitos necessários à liberdade individual – liberdade de ir e vir, liberdade de imprensa, pensamento e fé, o direito à propriedade e de concluir contratos válidos e o direito à justiça. (...) Por

elemento político se deve entender o direito de participar no exercício do

poder político, como um membro de um organismo investido de autoridade política ou como um eleitor dos membros de tal organismo. (...) O elemento

social se refere a tudo o que vai desde o direito a um mínimo de bem-estar

econômico e segurança ao direito de participar, por completo, na herança social e levar a vida de um ser civilizado de acordo com os padrões que prevalecem na sociedade (MARSHALL, 1967, p. 63, grifos nossos).

Apesar do caráter didático e linear que permeia esta classificação, o processo de construção e consolidação dos direitos humanos na sociedade inglesa ocorreu de forma lenta e gradual, podendo-se atribuir a cada um dos elementos constituintes do conceito em discussão um período de formação diferente. Assim, no século XVIII, consolidaram-se os direitos civis, no século XIX, os direitos políticos e, por fim, no século XX, os direitos sociais (MARSHALL, 1967).

Da concepção de cidadania desenvolvida por Marshall (1967), também denominada de cidadania social, depreende-se que os direitos sociais representam não apenas um dos elementos do conteúdo da cidadania, mas o princípio garantidor de acesso e de desenvolvimento dos demais elementos, bem como o instrumento capaz de assegurar um status mínimo de igualdade entre os indivíduos.

Ancorado nos estudos de Marshall (1967), Carvalho (2012) analisou o processo de conquista dos direitos humanos no Estado brasileiro e verificou que o caminho percorrido no Brasil foi inverso ao da Inglaterra. Nas palavras do autor:

Aqui, primeiro vieram os direitos sociais, implantados em período de supressão dos direitos políticos e de redução dos direitos civis por um ditador que se tornou popular. Depois vieram os direitos políticos, de maneira também bizarra. A maior expansão do direito do voto deu-se em outro período ditatorial, em que os órgãos de representação política foram transformados em peça decorativa do regime. Finalmente, ainda hoje muitos direitos civis, a base da sequência de Marshall, continuam inacessíveis à maioria da população (CARVALHO, 2012, p. 219).

Os dois percursos relativos à expansão e consolidação dos direitos humanos em questão, quer seja na sociedade inglesa, quer seja no Brasil, corroboram a concepção historicista defendida por Bobbio (2004), segundo a qual, os direitos do homem são históricos, nascidos em determinadas circunstâncias e não todos de uma vez e nem de uma vez por todas, e para tanto, faz-se necessário encontrar meios para que os direitos do homem sejam construídos e reconstruídos, cotidianamente, no âmbito de toda e qualquer sociedade. A via da educação constitui-se, pois, em um importante mecanismo para a viabilização deste desafio.

Marshall (1967) reconhece a educação como um direito social relacionado ao exercício da cidadania. Nas palavras do autor:

A educação das crianças está diretamente relacionada com a cidadania, e, quando o Estado garante que todas as crianças serão educadas, este tem em mente sem sombra de dúvida, as exigências e a natureza da cidadania. Está tentando estimular o desenvolvimento de cidadãos em formação. O direito à educação é um direito social de cidadania genuíno porque o objetivo da educação durante a infância é moldar o adulto em perspectiva. Basicamente, deveria ser considerado não como o direito da criança frequentar a escola, mas como o direito do cidadão adulto ter sido educado. (...) A educação é um pré-requisito necessário da liberdade civil (MARSHALL, 1967, p. 73).

Desta maneira, para além de se constituir em um direito social, o direito à educação configura-se como condição necessária para o exercício dos demais direitos e, por conseguinte, da cidadania. Nesta perspectiva, passamos a analisar, sequencialmente, a fundamentalidade desse direito, previsto em documentos internacionais de proteção dos direitos do homem e reconhecido pelo Estado brasileiro.