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A educação em tempo integral como direito à educação integral: uma análise

CAPÍTULO I O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO E A EDUCAÇÃO

1.2 O direito à educação integral no Estado Democrático de Direito

1.2.3 A educação em tempo integral como direito à educação integral: uma análise

As diferentes experiências denominadas de educação integral desenvolvidas no Estado brasileiro, descritas anteriormente, previram a educação em tempo integral, ou seja, a extensão do tempo de permanência da criança na escola, como um mecanismo para a consecução do direito à educação integral do aluno.

Da mesma maneira, as legislações infraconstitucionais que regulamentam a educação em nosso país adotaram a perspectiva da jornada ampliada como condição para a consecução desse direito. Sendo assim, interessa-nos neste item, examinar como as normas educacionais trataram a questão, buscando compreender se a educação em tempo integral favorece a efetivação do direito à educação, previsto constitucionalmente.

Inicialmente, cumpre-nos esclarecer que a ampliação do tempo de permanência da criança na escola pode ser justificada de diferentes maneiras: a) como estratégia para melhoria dos resultados de aprendizagem; b) como adequação da escola às condições de vida da população, particularmente da mulher trabalhadora; c) como mecanismo para diminuição dos efeitos da desigualdade social que incide sobre a educacional; d) como elemento para justificar a função social da escola na sociedade contemporânea que requer, cada vez mais, uma formação integral dos seus cidadãos (CAVALIERE, 2007).

Para além das justificativas apresentadas, a temática de extensão do tempo escolar tem acompanhado a história da educação brasileira, podendo ser caracterizada, conforme Cavaliere (2006), em três níveis diferentes e complementares, o nível macroestrutural, o intermediário e o microestrutural.

O primeiro nível, denominado macroestrutural, refere-se à organização dos ciclos escolares, às suas etapas e obrigatoriedade. Nas sociedades contemporâneas, esse tempo vem apresentando progressivo aumento com o ingresso da criança cada vez mais precoce além da ampliação do tempo de permanência dos indivíduos no sistema escolar. No caso brasileiro, com a publicação da Lei n. 11.274/2006, o ensino fundamental foi ampliado de oito para nove anos de duração, com matrícula obrigatória das crianças aos seis anos de idade.

Já o nível intermediário, regulado em nível macro, mas administrado pelas unidades escolares em atendimento às suas peculiaridades, refere-se à duração e à organização da jornada escolar, Assim, a partir da LDBEN de 1996, os dias letivos passaram de 180 (cento e oitenta) para 200 (duzentos), além da indicação de ampliação da jornada diária, com vistas à implantação do tempo integral.

Por fim, o nível microestrutural é o da sala de aula e está relacionado à organização do tempo de trabalho do professor com seus alunos.

Importante salientar que, no modelo escolar ocidental, a organização do tempo é fundamental para a consecução das atividades que ali se desenvolvem. Assim, o tempo organiza o planejamento semanal, bem como o calendário mensal e anual, além das rotinas vivenciadas pelos alunos ao longo dos períodos que passam na escola. Tudo na escola é delimitado pelo tempo e, nesse sentido, “o bom cumprimento das prescrições relativas ao tempo constitui, em si mesmo, grande parte do sucesso escolar do aluno” (CAVALIERE, 2006, p. 93).

A lógica de organização do tempo escolar que prevalece em nossas escolas pode ser classificada como monocrônica, ou seja, onde cada atividade tem um tempo predeterminado e bem definido para ser realizada. De outro modo, a lógica policrônica, a qual admite a possibilidade de se realizar várias coisas ao mesmo tempo, é banida e até mesmo rechaçada, por ser considerada ineficaz para o controle da autodisciplina e, portanto, para o alcance dos objetivos pré- estabelecidos (CAVALIERE, 2006).

Há que se apontar que a lógica policrônica tem sido questionada, desde o final do século XIX, pelas pedagogias denominadas de inovadoras que apresentam outras formas de organização do tempo escolar, onde os alunos são incentivados a se organizarem de acordo com seus ritmos e interesses biológicos, psicológicos e culturais, favorecendo, assim, a formação integral do indivíduo (CAVALIERE, 2006).

Feitas estas considerações acerca da relevância da organização do tempo escolar para a garantia do direito à educação integral, passamos a investigar as normativas educacionais em relação a esse assunto, buscando no ordenamento legal, elementos que favoreçam a compreensão da educação em tempo integral como um mecanismo, ou não, de efetivação daquele direito.

Depois da promulgação da CF de 1988, a primeira legislação brasileira a tratar a temática foi a Lei n. 8.069/1990, que dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Em seu Artigo 53, o ECA referiu-se ao direito à educação integral de maneira implícita, assim como o fez o legislador constitucional: “a criança e o adolescente têm direito à educação, visando ao pleno desenvolvimento de sua pessoa, preparo para o exercício da cidadania e qualificação para o trabalho” (BRASIL, 1990). Não encontramos no texto do Estatuto referência à organização do tempo escolar, porém, a Lei é clara em reafirmar o direito da criança e do adolescente à educação integral.

Em 1996, com a aprovação da LDBEN n. 9.394, a educação integral foi referenciada em diferentes passagens, conforme já explicitado anteriormente. Em relação à ampliação do tempo escolar na educação básica, encontramos na legislação preceitos relativos à extensão da jornada tanto na educação infantil quanto no ensino fundamental.

Art. 31. A educação infantil será organizada de acordo com as seguintes regras comuns:

(...)

III - atendimento à criança de, no mínimo, 4 (quatro) horas diárias para o turno parcial e de 7 (sete) horas para a jornada integral;

(...)

Art. 34. A jornada escolar no ensino fundamental incluirá pelo menos quatro horas de trabalho efetivo em sala de aula, sendo progressivamente ampliado o período de permanência na escola.

(...)

§ 2º O ensino fundamental será ministrado progressivamente em tempo integral, a critério dos sistemas de ensino.

Art. 87. (...) (...)

§ 5º Serão conjugados todos os esforços objetivando a progressão das redes escolares públicas urbanas de ensino fundamental para o regime de escolas de tempo integral (BRASIL, 1996).

Conforme observamos, o atendimento à criança em tempo integral foi previsto nas duas etapas iniciais da educação básica, no entanto, a normatização deu-se de forma diversa em cada uma delas. Assim, na educação infantil, a LDBEN

de 1996 estabeleceu uma jornada de sete horas diárias para o atendimento integral das crianças de até cinco anos de idade. Em relação ao ensino fundamental, a Lei considerou, em seus Artigos 34 e 87, que a ampliação da jornada escolar deveria ser realizada “progressivamente”, “a critério dos sistemas de ensino”, nas “redes escolares urbanas”, destinando-se, pois, ao atendimento de grupos específicos da sociedade.

A Lei n. 10.172/2001 que aprovou o Plano Nacional de Educação (PNE) para o decênio 2001-2010, ao definir os objetivos e prioridades do documento, estabeleceu, no ensino fundamental, a prioridade de tempo integral para o atendimento das crianças das camadas sociais mais necessitadas, incorporando uma concepção assistencialista de educação integral, a qual pode ser assim definida:

A visão predominante, de cunho assistencialista, vê a escola de tempo integral como uma escola para os desprivilegiados, que deve suprir deficiências gerais da formação dos alunos; uma escola que substitui a família e onde o mais relevante não é o conhecimento e sim a ocupação do tempo e a socialização primária (CAVALIERE, 2007, p. 1028).

Esta mesma concepção de educação integral como mecanismo para a superação das desigualdades sociais foi aventada no texto relativo às diretrizes do ensino fundamental, conforme trecho extraído da legislação:

(...) A ampliação da jornada escolar para turno integral tem dado bons resultados. O atendimento em tempo integral, oportunizando orientação no cumprimento dos deveres escolares, prática de esportes, desenvolvimento de atividades artísticas e alimentação adequada, no mínimo em duas refeições, é um avanço significativo para diminuir as desigualdades sociais e ampliar democraticamente as oportunidades de aprendizagem (BRASIL, 2001).

No entanto, se por um lado o PNE (2001-2010) enfatiza o caráter assistencialista da ampliação do tempo de permanência da criança na escola, por outro, a Lei avança em relação à LDBEN de 1996, ao prever a necessidade de adequação das redes físicas e dos recursos materiais e humanos para o atendimento integral dos alunos, como se vê:

à medida que forem sendo implantadas as escolas de tempo integral, mudanças significativas deverão ocorrer quanto à expansão da rede física, atendimento diferenciado da alimentação escolar e disponibilidade de professores, considerando a especificidade de horários (BRASIL, 2001).

Conforme explicitado, nenhuma das legislações apresentadas até aqui, definem, claramente, o que se entende por jornada de tempo integral. Esta omissão, embora não desejável para a garantia do direito à educação em tempo integral, ensejou ao menos um efeito positivo, conforme salienta Menezes (2012, p. 140):

(...) a lei, ao não definir, estimulou a discussão entre os profissionais da educação sobre as contribuições, desafios e impactos do tempo integral no processo de formação dos alunos, além de fortalecer o debate sobre a relação entre educação integral e tempo integral, construindo assim, entre outros, subsídios a serem incorporados nas normatizações que se sucederam.

Neste sentido, pode-se considerar que o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (FUNDEB)9, regulamentado pela Lei n. 11.494/2007, constituiu-se em um

marco no que diz respeito à garantia do direito à educação em tempo integral. Ao tratar da distribuição dos recursos dos fundos instituídos no âmbito de cada estado da federação e também no do Distrito Federal, a Lei do FUNDEB explicitou que o atendimento em tempo integral, nas diferentes etapas da educação básica, constitui- se em fator de ponderação10 para a distribuição dos recursos financeiros.

Sendo assim, e em atendimento ao disposto no parágrafo 3º do Artigo 10 da Lei do FUNDEB, o Decreto n. 6.253/2007 regulamentou a educação básica em tempo integral nos seguintes termos:

9 O FUNDEB é um fundo contábil, instituído pela Emenda Constitucional n. 53/2006, constituído com a contribuição de todos os entes da federação (União, estados, Distrito Federal e municípios). A aprovação do FUNDEB representou um avanço na política educacional brasileira uma vez que o fundo prevê o financiamento da educação básica em todos os níveis e modalidades de ensino, diferentemente do fundo anterior que previa apenas o atendimento dos alunos do ensino fundamental.

10 Essas ponderações são determinadas pela Comissão Intergovernamental de Financiamento para a Educação Básica de Qualidade instituída, no âmbito do Ministério da Educação, pela Lei n. 11.494/2007.

considera-se educação básica em tempo integral a jornada escolar com duração igual ou superior a sete horas diárias, durante todo o período letivo, compreendendo o tempo total que um mesmo aluno permanece na escola ou em atividades escolares (BRASIL, 2007).

A mesma legislação determina que, anualmente, sejam especificadas as ponderações aplicáveis entre as diferentes etapas, modalidades e tipos de estabelecimento de ensino da educação básica (Artigo 13, inciso I), as quais, sendo multiplicadas pelo valor anual mínimo por aluno definido nacionalmente (Artigo 4º, § 1º e Artigo 15, inciso IV), resultam nos valores mínimos anuais do FUNDEB por aluno matriculado em cada uma dessas categorias.

Os mecanismos de cálculo do valor anual mínimo por aluno, adotados pela Lei do FUNDEB, estimularam os diferentes sistemas de ensino a ampliarem as matrículas dos alunos em tempo integral, ainda que nem sempre tenham sido atendidas as recomendações relativas à infraestrutura física e aos recursos materiais e humanos para o atendimento aos alunos.

Em 2014, por meio da Lei n. 13.005, deu-se a aprovação do Plano Nacional de Educação para o decênio 2014-2024. A análise da Lei revelou que o legislador conferiu maior relevância à questão da educação em tempo integral, embora o caráter compensatório da ampliação da jornada escolar ainda se faça presente, especialmente ao priorizar o atendimento de parcelas específicas da população. De outro modo, a temática da educação em tempo integral constitui-se em uma meta específica, não aparecendo diluída entre os itens relativos aos níveis e modalidades de ensino, como ocorreu na Lei do PNE (2001-2011).

O PNE (2014-2024) previu como meta n. 6 a oferta de “educação em tempo integral em, no mínimo, 50% (cinquenta por cento) das escolas públicas, de forma a atender, pelo menos, 25% (vinte e cinco por cento) dos (as) alunos (as) da educação básica” (BRASIL, 2014). Para a consecução desta, a Lei propôs nove estratégias a serem implementadas pelos diferentes sistemas de ensino e que trataram de questões relativas à escola de tempo integral.

Assim, a perspectiva da educação em tempo integral foi considerada por intermédio de “atividades de acompanhamento pedagógico e multidisciplinares, inclusive culturais e esportivas” (BRASIL, 2014), efetivando, assim, uma jornada igual ou superior a sete horas diárias. Considerou, ainda, a otimização do tempo de permanência dos alunos na escola mediante “expansão da jornada para o efetivo

trabalho escolar, combinado com atividades recreativas, esportivas e culturais” (BRASIL, 2014).

Em relação à adequação da estrutura física dos prédios escolares destinados ao atendimento dos alunos, a Lei apontou para a necessidade de construção e reestruturação das escolas já existentes nas redes de ensino, “prioritariamente em comunidades pobres ou com crianças em situação de vulnerabilidade social” (BRASIL, 2014). A Lei previu também a necessidade de elaboração de material didático e a formação dos recursos humanos para atuarem nessas escolas.

A possibilidade de atendimento dos alunos em tempo integral em espaços que vão além dos muros da escola, como “centros comunitários, bibliotecas, praças, parques, museus, teatros, cinemas e planetários” (BRASIL, 2014) foi tratada na estratégia 6.4. Para tanto, foi previsto o atendimento dos alunos das escolas públicas por entidades privadas de serviço social.

A Lei contemplou, ainda, a oferta de educação em tempo integral aos alunos do campo, indígenas e quilombola, e também às “pessoas com deficiência, transtornos globais do desenvolvimento e altas habilidades ou superdotação na faixa etária de quatro a dezessete anos” (BRASIL, 2014), assegurando o atendimento educacional especializado nas salas de recursos.

Em síntese, as premissas para a organização da educação em tempo integral contidas na legislação analisada, são as seguintes: jornada de, no mínimo, sete horas diárias, atividades complementares realizadas no contraturno, necessidade de reorganização da estrutura física e de recursos humanos, viabilização de recursos financeiros para a efetivação desta perspectiva de educação. No entanto cabe salientar que o atendimento, por si só, dessas dimensões não garante o direito à educação integral.

Essa solução organizacional do tempo integral, que na verdade não constrói uma escola de tempo integral e nem cria as condições para o desenvolvimento da chamada “educação integral”, mas apenas oferece um regime escolar diferenciado para os alunos “mais necessitados”, gera uma excessiva dispersão de objetivos, ao mesmo tempo em que não mexe com o “coração” da instituição e pode levar a um trabalho com identidade educacional inespecífica, ao sabor de idiossincrasias locais e pessoais, ainda que em alguns casos ele possa aliviar tensões e situações emergenciais relacionadas aos direitos humanos específicos da infância e da adolescência (CAVALIERE, 2014, p. 1212).

Como foi possível observar na análise dos documentos em questão, por um lado, a organização da educação em tempo integral prevista nas legislações analisadas, por si só, não garante o direito à educação integral estabelecido na Constituição Federal de 1988. Por outro lado, a ampliação do tempo de permanência da criança na escola pode ser um importante mecanismo para que os sistemas de educação planejem e organizem as suas políticas educacionais de educação integral, articulando a disponibilidade da rede física à possibilidade de acesso e a permanência dos alunos na escola, garantindo-lhes um ensino de qualidade e adequado às exigências que a sociedade contemporânea requer dos seus cidadãos.