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Mapa 02: Distâncias entre as quadras das Escolas de Samba Feliz lembrança e Partido Alto de suas quadras.

3.2. A rua como espaço de poder

3.2.1. A festa e o cotidiano da cidade

No caso juizforano, em um momento que antecede os desfiles de escolas de samba, os principais espaços para a constituição das manifestações carnavalescas historicamente, se dão no centro em ruas como a Rua Halfeld ou a Rua Marechal Deodoro da Fonseca, abrigando as práticas do entrudo, as batalhas de confetes, corsos, ranchos e demais atividades. Dividindo os espaços comumente tomados pelo comércio, os dias de festa transformam o cotidiano do centro urbano tomado pelo trabalho e pelas trocas, onde além de terem a permissão do Estado são vistos como momento de descontração permitindo que se arrevesse a “negatividade da vida diária” pela “positividade das festas”. “De qualquer modo é preciso não esquecer essa importante associação entre a festa, como um domínio especial, e as alternativas de ação que ela pode abrir, seja para voltar satisfeito ao cotidiano, seja para transformá-lo” (MATTA, 1997: p. 52). Essa transformação do cotidiano é vista por Roberto Da Matta como uma “inversão carnavalesca”. Ao passo que as ruas e os centros das cidades assumem um papel fundamental no mundo do trabalho, representando uma lógica ligada “às condições de opressão e repressão a que é submetido o trabalhador urbano dos grandes centros brasileiros” (MATTA, 1997: p. 50).

Contudo, o controle existe e é expresso por vezes através de argumentos morais. Exemplo disso, o entrudo é proibido, mas não extinto. Mesmo após a primeira proibição das práticas do entrudo em 1872 na cidade elas continuam ocorrendo por quatro décadas. Desenvolvem-se num ambiente público e central, mesmo frente ao remanejamento e aumento crescente de oficiais da polícia. A lei aprovada na câmara de vereadores divulgada e assentida através dos meios de comunicação, representados em grande parte pelo O Pharol através da publicação de textos informativos e críticos a tais práticas, mas que não encontram adesão na massa entrudista juizforana. A brincadeira, dessa forma, se realizou nas brechas do poder por essas quatro décadas, sendo superado apenas por uma espécie de via consensual, fruto de uma mudança na mentalidade do conjunto populacional. Entendemos as obras de modernização e

melhoramento urbano do Plano Howyan como um forte componente a contribuir com a morte do entrudo.

As mesmas brechas aparecem no que se referem às críticas trazidas pelas Grandes Sociedade Carnavalescas que habitavam o limite entre o “bom gosto” e a “ofensa” para o composto social de finais de XIX e início de XX. A rua, neste caso, vale-se de seu caráter de ambiente próprio da esfera pública, o lugar adequado a ser ocupado para exposição, mostrando ao povo o que é de interesse de todos no espaço coletivo e público. Uma crítica circunscrita apenas aos espaços dos salões, por mais “abrangente” que seja o público, não surtiria os mesmos efeitos de uma amplamente divulgada e comentada entre grande parte da população da cidade. O espaço dos clubes é coletivo e compartilhado, mas não público, “se trata de um ambiente mais bem marcado, pois o próprio espaço físico é privado” (MATTA, 1997: p. 111).

Ainda assim, o autor nos chama a atenção, que os espaços da rua e da casa não são exatamente opostos como uma análise reduzida poderia levar a crer. Enquadra-se mais acertadamente, enquanto um “continuum” que em uma ou outra categoria oposta nesses “dois planos fundamentais” do carnaval, tendo o clube seus caráter público e a rua sua vertente hierárquica (MATTA, 1997: p. 112-113).

Conforme colocado por Mumford, a cidade sempre foi tratada pelos governantes como espaços a serem controlados. Se no passado o controle previa a manutenção da ordem de castas e hierarquias consolidadas numa sociedade de pouca mobilidade de classe, com a modernidade, o controle das ruas atende a um projeto econômico de aceleração dos fluxos de capitais e força de trabalho, sem abrir mão do controle militar das cidades (MUMFORD, 1991: p. 399). No Brasil, a parada militar representa o poder bélico do Estado frente à população e não à toa, ocupam com seus desfiles em dias nacionais as ruas do centro da cidade com foco na “bandeira e os símbolos nacionais”. “No centro que é retomado pela ordem e emoldurado de maneira cívica e moralista, perdendo sua moldura diária, dominada por transações econômicas individualizantes” (MATTA, 1997: p. 110).

Em oposição à ordem, a “incontinência” provocada nos dias de folguedos no conjunto societário, sempre foi motivo de preocupação pelas forças da ordem na cidade. Sinal disso, constatamos nas inúmeras declarações e solicitações de praças de outras localidades chamados a compor o corpo policial juizforano durante os três ou quatro dias de festa. A câmara dos vereadores legislava e os guardas se incubiam de fazer a legislação e a ordem pública serem cumpridas63.

A partir da primeira década do século XX Juiz de Fora começa a adentrar o projeto de modernidade que atinge as cidades do Brasil. O crescimento industrial e as novas tecnologias de transporte começam a tomar o centro e as ruas. Numa velocidade cada vez maior, a cidade experimenta o alargamento de suas principais ruas, com rios e córregos canalizados para comportar as mudanças nas dinâmicas da cidade. Como nem toda a estrutura é passível de reestruturação, as mudanças chegam em pontos específicos e estratégicos.

O ponto geral determinante de todo esse processo urbano em escala global, são as mudanças ocorridas na Paris transformada por Haussmann no século XIX que chegam ao Brasil através de figuras como Pereira Passos. Morador de Paris e aluno da École des Ponts et Chaussées, “foi testemunha ocular da reforma Haussmann” (VILLAÇA, 1999: p. 216) – a cidade vivenciou o “projeto de modernização” da então capital nacional, em obras de “melhoramento e embelezamento”. Além da influência haussmanniana, o aparato médico e políticas higienistas motivaram a derrubada de cortiços e casebres localizados no centro da cidade, classificando-os um foco de dispersão de doenças e epidemias. Ruas foram dilatadas, morros demolidos com jato d’água e parte da baía de Guanabara aterrada. Além disso, os símbolos do poder, como monumentos e praças tiveram um aumento significativo (SILVA, 2005: p. 39).

Em Juiz de Fora os projetos modernizadores se realizam especificamente sob a gestão de Francisco Bernardino, logo em seu primeiro ano, ao convidar “o engenheiro francês Gregório Howyan para assumir o cargo de diretor de obras municipais”. Chegou à cidade sob exaltação da imprensa local que não poupou elogios ao profissional, que “passa a sugerir melhorias na estrutura urbana da cidade, como no abastecimento d’água, na construção de estradas, na indicação de técnicos especializados em saneamento e na autoria de um projeto de saneamento e expansão da cidade de Juiz de Fora” (BARBOSA, 2016: p. 170).

A reforma urbana aparecia de forma impetuosa na senda da nova administração republicana, e, por conseguinte, na autonomia conferida ao município pelas constituições federal e estadual; a ambição centrava-se na transformação da cidade de Juiz de Fora seguindo o modelo dos grandes centros urbanos europeus (BARBOSA, 2016: 170-171).

De todas as cidades que guiavam a reforma urbana de Juiz de Fora é inegável que os processos iniciados na capital francesa são a principal influência de Howyan. “Sua referência eram as cidades europeias, sobretudo Paris de Haussmann” (BARBOSA, 2016: p. 172).

A ascensão de Luís Bonaparte com um golpe de Estado em 1851 e proclamando-se Imperador em 1852, foi uma saída burguesa na tentativa de resolver a crise, que violentamente

reprimia as manifestações de trabalhadores. O recurso coercitivo não era a única forma de lidar com a crise “ele sabia também que tinha de resolver o problema da absorção do capital excedente, e para isso anunciou um vasto programa de investimentos infraestruturais, tanto em casa quanto fora”. Destaca-se entre as obras deste período a “construção de estradas por toda Europa, chegando até o oriente”, “ajuda financeira a grandes obras”, “consolidação da rede ferroviária, a construção de portos e ancoradouros, a drenagem dos pântanos e outras coisa do gênero” (HARVEY, 2014: p. 33-34). Mas, sem dúvidas o fato mais emblemático foi o período no qual Haussmann assume a prefeitura do departamento do Sena.

O problema encontrado da alocação do excedente produtivo foi captado pelo Barão que modernizou a capital francesa, suplantando a velha cidade medieval que continha em suas ruas estreitas as condições favoráveis de armar barricadas para enfrentar as forças militares do governo central. Para além, convertia Paris no centro da modernidade, adaptando-a às novas dinâmicas de fluxo intenso de capitais, força de trabalho e determinando o solo urbano e a cidade como um todo, uma rentável mercadoria. Observemos a análise de Harvey acerca da reforma haussmanniana.

Haussmann entendeu perfeitamente que sua missão consistia em ajudar a resolver o problema de excedentes de capital e desemprego por meio da urbanização. A reconstrução de Paris absorveu imensas quantidade de mão de obra e capital para os padrões da época e, junto com a supressão autoritária das aspirações da força de trabalho parisiense, foi um instrumento fundamental para a estabilização social. Para a reconfiguração de Paris, Haussmann recorreu aos projetos utópicos (dos fourieristas e sansimonianos) que haviam debatido na década de 1840, mas com grande diferença: ele transformou a escala concebida para aquele processo urbano. Quando o arquiteto Hittorf mostrou a Haussmann seus projetos para um novo bulevar, Haussmann os devolveu de imediato, dizendo-lhe: “não é suficientemente amplo […] seu projeto tem 40 m de largura, e eu quero 120”. Haussmann concebia a cidade em muito maior escala, agregou os subúrbios e reformulou bairros inteiros (como Les Halles), em vez de apenas pedaços do tecido urbano. Ele mudou a cidade de uma só vez, e não aos poucos. Para fazê-lo, precisava de novas instituições financeiras e instrumentos de crédito criados em moldes sansimonianos (o Crédit Mobilier e Immobilière). Na verdade, o que ele fez foi ajudar a resolver a questão da disponibilidade do excedente de capital, instituindo, para tanto, um sistema keynesiano de melhorias urbanas infraestruturais financiadas pela dívida (HARVEY, 2014: p. 34-35).