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Capítulo 2 História e Geografia do carnaval em Juiz de Fora

2.1. Festa de além mar A chegada do Entrudo no Brasil

realizando muito bem esta função.

2.1. Festa de além mar. A chegada do Entrudo no Brasil

A celebração do carnem levare a datar do século XII, quando se tem registro, parece estar numa relação de unidade forte com os espaços da cidade. A liberação do consumo de carne como preparação para a abstinência do ciclo da quaresma contagiava os países sob o domínio da igreja católica ganhando especificidades de acordo com a região, quase sempre predominando brincadeiras de pouca sintonia com os valores cristãos. Exemplos disso, o dicionário católico chama de “período de depravações” (NEWADVENT, 2017: s/p), são visto em países como a Inglaterra nas comemorações do Shrovetide, nas culturas germânicas com o Fastnacht e entre os franceses chamado de Mardi Gras (BAKHTIN, 2010: p. 7). Na península ibérica a palavra latina entroito, à qual faz referência à “entrada” do período de privação, ganha as variáveis antroido na Galícia e antroju em Astúrias. Em Portugal e após a colonização das terras transatlânticas, os dias pré quaresma são chamados de entrudo (SEBE. 1986: p. 30-31).

Correntemente comemorada na terça, ou podendo ainda ser na segunda ou mesmo domingos e sábados antes da quaresma, a popular festa européia de tradição cristã se caracterizava pelos prazeres mundanos20, sobretudo da comida, mas também do sexo, da jogatina, das brigas e até mesmo pela prática de violência, que seriam cometidos por fiéis católicos confiantes na absolvição divina de seus pecados após a consagração aos quarenta dias de abstenção. A brincadeira se caracterizava pelo lançamento de objetos, uns nos outros em ruas e praças de cidades (CUNHA, 2001: ??).

Chegado o domingo de entrudo tomavão todos parte nesse divertimento; sobre os transeuntes atiravão-se os limões de cera; se procurava o infeliz fugir em outra direcção era alcançado por nova descarga de limões; se buscava o centro da rua, ou tratava de occultar-se no vão de uma porta, via esguichar-lhe por cima da cabeça a agua de uma seringa de folha de fiandres empunhada por individuos escondidos por detraz das rotulas ou dos balcões das casas de negocio; se volvia o olhar para os sobrados para ver quem arremessava-lhe os limões recebia sobre a cabeça uma bacia d'agua (ALVARENGA, 1875: p. 19-20).

Viajantes21, em expedições ao Brasil, produziram relatos detalhados dos dias do entrudo, destacando a “singularidade dos festejos” nos trópicos que se diferenciavam das experiências europeias, mesmo em Portugal (ARAÚJO, 2011: p. 45).

Em Portugal até o século XIX, as brincadeiras, praticadas desde a nobreza portuguesa aos servos envolviam diferentes classes sociais, podendo-se classificar a brincadeira entre o “popular” e o “familiar”. Enquanto a nobreza brincava majoritariamente no espaço privativo da casa entre os membros da família, o resto da população ocupava os espaços públicos do reino, causando mais que diversão, certo alvoroço. Apesar desta divisão, muitas vezes, a nobreza e a burguesia saíam do conforto do lar e participavam da brincadeira nas ruas. No Brasil destaca- se o caso do imperador brasileiro Pedro II, entusiasta do entrudo, chegou a levar a família para observar a festa, tanto no Rio de Janeiro quanto em Petrópolis (MOREIRA, 2008: p. 28). A participação de senhoras e escravas nas molhadelas e enfarinhamentos é retratada no depoimento de H. Koster, viajante em visita ao Brasil dos anos 1809.

[...] potes e panelas saíram da cozinha e foram introduzidos para enegrecer e besuntarnos os rostos a todos.[...] Os rapazes que tinham relações com a família puderam interessá-las na brincadeira, e as senhoras e as escravas participavam valentemente da luta. Ocorreu um episódio que provocou gargalhadas e que é uma característica. Um homem que encontramos aqui dizia que não o molhassem porque estava adoentado. Não percebia, entretanto, que não observava para os outros o que pedia para ele mesmo. Um do grupo, vendo isso, atacou-o com um colherão de prata cheio de água. [...] voou para a estrebaria, montou seu cavalo e galopou furiosamente mas, por infortúnio seu, esqueceu que o caminho por onde operaria a retirada, passava por baixo das janelas da casa e, ao defronta-las, duas tinas de água alagaram-no, a ele e à montaria [...] (KOSTER apud MOREIRA, 2008: p. 27).

Ferreira, ao contrário, destaca que o encontro de classes distintas nas ruas da cidade não representava a quebra das diferenças de classes sociais. Na verdade, estas continuavam a ser expressão da segregação e hierarquia marcantes da época.

Realizado em dois espaços distintos, o Entrudo reproduzia, na diferenciação apresentada em suas brincadeiras, a segregação existente na sociedade da época. O espaço público e o espaço privado marcavam esta separação. Contatos entre estes espaços eram possíveis mas sempre marcados pela hierarquia. Ou seja, membros da elite podiam lançar projéteis e líquidos sobre escravos. Mas a estes restava rirem-se das brincadeiras sem nunca revidar (FERREIRA, 2000: s/p).

Entre os materiais lançados encontravam-se todo o tipo de líquido ou pó que pudesse impregnar o corpo dos participantes da festa, inclusive as cusparadas vindas de sacadas, disparadas especialmente, por moças que acompanhavam a brincadeira de seus lares, impedidas

ou temerosas de sair. Urina, águas suja, lama, ovos e qualquer produto à disposição no momento que fosse capaz de ser lançado contra outras pessoas.

Predominam no entrudo as brincadeiras de jogar água e molhar as pessoas. No século XIX foram incorporadas à prática os limões de cheiro ou laranjas de cheiro considerados forma mais refinada de jogar. Contudo, o refinamento terminava quando se esgotava a provisão de limões e o festejo transformava-se em verdadeiros combates de água (ARAÚJO, 2011: p. 45).

Outros objetivos eram aproveitados pelas pessoas durante os dias do entrudo, tais como ataques ou vingança às pessoas que pouco fruíam de simpatia, desavenças pessoais ou mesmo de empregados perante seus patrões. Situações bastante criticadas, pois ao mesmo tempo que poderiam ser repentinamente surpreendido por bolas de cera intumescida de água ou outro líquido qualquer, capaz de causar certo infortúnio aos transeuntes que nada queriam com o jogo. Importante sublinhar que estas atividades eram geradoras de renda e movimentavam uma economia local, significando uma “renda provisória” às famílias que, além de produzirem para si, aceitavam pedidos ou ainda vendiam nas ruas nos dias do entrudo, complementando a renda familiar com a produção e venda das bolas de cera. As mulheres da família eram as principais responsáveis por confeccionar e vender o produto (ARAÚJO, 2011: p. 46).

Compreendido como herança de toda uma tradição medieval, o entrudo era classificado como um festejo “grotesco”, “sujo”, prática anacrônica que em nada refletia os novos padrões de sociabilidade das décadas finais do século XIX. O entrudo foi perseguido e inúmeras tentativas de extinguir a brincadeira foram empreendidas pelas forças de segurança e governo. Fato que realça o poder de se adaptar da festa e se transformar ao longo da história. Chama atenção para as inovações que o entrudo sofreu por séculos na tentativa de torná-lo mais “civilizado” (FERNANDES, 2001: p. 18). Muitas dessas inovações lideradas pelos próprios mercadores que viam na festa oportunidade de venda de mercadorias. “Assim, as bisnagas de metal que, a princípio, aspergiam simplesmente água, limpa ou fétida, passaram a esguichar groselha, vinho e outras bebidas, e para os limões-de-cheiro22 se expande a regra de abastecê- los apenas com perfumes”. Outras inovações foram forçadas através de decretos dos governos sob a justificativa da promoção do caos e desordem pelas ruas da cidade. Exemplos disso, são encontrados em Portugal “os ilustrados tentaram, no século XVIII, substituir o entrudo pelo carnaval veneziano, e na Espanha foram proibidas as corridas de touros”. O autor ainda, chama

a atenção, que se não fossem estas sucessivas transformações, através da relação proibição- adequação, provavelmente, não teríamos o carnaval tal como é realizado hoje.

2.1.1. Combate ao entrudo no Brasil

Considera-se o ano de 1600, na cidade do Rio de Janeiro, como o primeiro registro do entrudo no Brasil e desde então a brincadeira passou por diversas proibições, nem sempre respeitadas. Ainda em 1604, devido à agressividade da brincadeira, o governo da cidade proíbe pela primeira vez o Entrudo (PINHEIRO, 1995: p. 87). Apenas em finais do século XIX, após a implementação de projetos urbanos e as consequentes práticas “higienistas” no centro do Rio de Janeiro, o poder público se dedicou a expurgar o entrudo dos centros urbanos, inclusive sob a pena de prisão para qualquer tipo de resistência.

Ainda que não houvesse um modelo de festa definido pela elite para ser oferecido como carnaval, inicia-se um processo para desqualificar e abolir o entrudo do espaço urbano. A festa da “molhadela e do mela-mela” passa a ser proibida pelo poder público através da ação policial que, a cada ano, através de códigos de conduta que eram publicados nos semanários, ameaçava com pena de prisão aqueles que desobedecessem e praticassem o execrado entrudo (VISCARDI; SOTTANI; SILVA, 2013: p. 4).

Na Europa e ao redor do mundo, remodelamentos como a Reforma Haussmann em Paris e grandes reformas urbanas em cidades europeias como Londres e Viena, qualificaram o discurso deste lado do oceano, que ficou mais expressivo e convincente, ao passo que recebeu o apoio de setores profissionais especializados, contra a prática do entrudo,.

Além dos urbanistas da época, o entrudo no Rio de Janeiro enfrentou outros inimigos com sustentação científica. Em “1831 a Sociedade de Medicina do Rio de Janeiro convocou seus médicos da capital, no sentido de contribuírem para a confecção de mapa que correlacionasse enfermidades e mortes com a prática do entrudo” (FERNANDES, 2003: s/p). Uma série de estudos, dentro dos quais não sabemos o teor de rigorosidade adotado nas pesquisas, foi produzida o que levou à aproximadamente cinquenta anos depois, à divulgação de circular, através da Inspetoria de Higiene, que associava a prática do entrudo à febre amarela. Verdade ou não, sabemos que a prática do entrudo já não agradava uma elite progressista que se inspirava no padrão parisiense de cidade e apoiavam os projetos “civilizatórios” nas cidades brasileiras.

[...] a elite da Belle Époque, tendo como modelo a França, e mais precisamente Paris, buscava expurgar da cidade os costumes grosseiros e vulgares associados às heranças negra, portuguesa e indígena. A festa carnavalesca certamente se incluía neste contexto e precisava, também, sofisticar-se através da eliminação do velho Entrudo e da importação de novas formas de se brincar o Carnaval (FERREIRA, 2000: s/p).

No Rio de Janeiro, enfim, proíbe-se a prática do entrudo no ano de 1840, apesar da brincadeira ainda persistir nos bairros periféricos, onde o policiamento era menor e as práticas “bárbaras” poderiam ser executadas sem empecilhos da lei. Ferreira, (2000: s/p) destaca, que o entrudo só irá se dar por vencido, definitivamente, no início do século XX, com a substituição das bolas de cera recheadas com água e da guerra de farinhas pelas batalhas de confetes e serpentinas. O carnaval de inspiração veneziana, também praticado em Paris e Nice, vistos como civilizados pelas classes abastadas brasileiras. Nessa marcha para a superação do entrudo, se tornaram os bastiões, não só argumentativos em função da transformação das práticas de festividades carnavalescas, mas importante meio de trabalhar na “reconstrução” da sociedade, segundo o pensamento intelectual da época. Se resumia a uma espécie de crítica romântica inspiradas na ideia de uma cidade sem conflitos, sem a degradação que – o próprio processo de urbanização vinha causando nas cidades com o aumento da pobreza e insegurança.