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Mapa 02: Distâncias entre as quadras das Escolas de Samba Feliz lembrança e Partido Alto de suas quadras.

3.2. A rua como espaço de poder

3.2.3. Inversão carnavalesca

É este novo estilo de vida urbana, voltada à produção e ao consumo, que irrompe as barreiras e fronteiras globais, iniciando um processo de interação dos lugares num movimento

econômico cada vez mais dinâmico. A finalidade é acelerar, cada vez mais, o circuito do capital. A “velocidade”, nas palavras de Porto-Gonçalves, é uma “verdadeira obsessão do capitalismo moderno-colonial” (PORTO-GONÇALVES, 2000: p. 227).

Inseridas nesse contexto as manifestações culturais são colocadas em conflito diante do funcionalismo da rua, do centro e da própria cidade. Isso se realiza por uma disputa entre diferentes temporalidades em torno de seu direito de uso. Por um lado, apresenta-se os tempos do trabalho e das máquinas; da produtividade regulada pelo relógio e pelo takt time; do “totalitarismo da racionalidade”. Do outro lado, têm-se em oposição o “tempo dos lentos”; da natureza e da vida; da cultura e do lazer (SANTOS, 2014: p. 324-325).

[...] a velocidade é, por si mesma, um conflito. O interesse das grandes empresas é economizar tempo, aumentando a velocidade da circulação. O interesse das comunidades locais e até mesmo das menores empresas (por exemplo, os comércios locais frequentemente é o oposto. As regulamentações de uso da via pública respondem a esse conflito, seja harmonizando interesses, seja privilegiando este ou aquele (SANTOS, 2014: p. 336).

Numa perspectiva cultural, notamos semelhanças entre as “comunidades locais” apresentados por Milton Santos e a sociedade organizada em torno da festa carnavalesca. Seguindo com foco na cidade de Juiz de Fora, se traduzem pela direção, comunidade e as redes de apoiadores da vida em torno das escolas de samba, assim como os organizadores de blocos carnavalescos. São populações que veem suas práticas, tradições e modos de vida ameaçados pela iminência de outras temporalidades e espacialidades impostas.

Segundo Roberto Da Matta, a festa carnavalesca é em potencial uma força capaz de subverter as ordens hierárquicas da cidade. Na cidade de Juiz de Fora as atividades políticas, industriais e comerciais que dominaram historicamente o seu centro, acompanhadas pelo aumento contínuo das velocidades, desde as carruagens aos modernos automóveis. Em Juiz de Fora, até o ano de 2015, podemos afirmar que o trânsito de veículos “em alta velocidade, dispostos a liquidar as pessoas” era substituído pelas escolas de samba durante o carnaval, como ocorre em diversas outras cidades. A partir deste ano, apenas a força dos blocos possuem essa capacidade. “O centro comercial da cidade fica fechado ao trânsito, de modo que as pessoas, ligadas ou não às corporações típicas do carnaval – como os blocos e escolas de samba –, possam ocupá-lo sem problemas” (MATTA, 1997: p. 114).

As festas, então, são momentos extraordinários marcados pela alegria e por valores considerados altamente positivos. A rotina da vida diária é que é vista como negativa. Daí o cotidiano ser designado pela expressão dia a dia ou, mais significativamente, vida ou dura realidade da vida. Em outras palavras, sofre-se na vida, na rotina

impiedosa e automática do cotidiano, em que o mundo é reprimido pelas hierarquias do poder e do “sabe com que está falando?” [...], e, obviamente, do “cada coisa em seu lugar” (MATTA, 1997: p. 52).

Após a decisão de antecipação do carnaval, temos um quadro novo. Uma vez que não é realizado nos dias do feriado nacional, o cortejo de blocos realizados em dias de semana, divide o espaço do comércio cotidiano. Festa e trabalho, simultaneamente no mesmo lugar. Ou ainda, a “dura realidade da vida” é confrontada pelo “momento de alta criatividade”, “vivido intensamente, por meio de risos, brincadeiras e contatos corporais” (MATTA, 1997: p. 115).

Por fim, podemos aceitar que compreender o caráter das ruas e avenidas da cidade, significa levar em consideração seu caráter conflituoso em torno dos múltiplos sujeitos que agem em seus espaços. A centralidade que adquire nos processos de circulação aos quais está inserida a cidade na rede de trocas globais, somada à simultaneidade das ações orientadas por grupos sociais e sujeitos coletivos, resulta em uma reunião de interesses diversos e mesmo antagônicos no seio da cidade originando uma condição conflituosa. Para melhor apreender, destacamos os principais sujeitos desse conflito que atuam ordinariamente nas cidades brasileiras.

1) O Estado é o primeiro e principal sujeito no controle das ruas através da gestão e criação das infraestruturas de transportes e circulação. No interior das cidades o planejamento urbano e as ações orientadas em torno das atividades urbanas cumprem um papel fundamental no controle desses espaços. Para além, o Estado é responsável por controlar militarmente o espaço das ruas através de ações estratégicas ou mesmo de ação direta, como é a ação das polícias militares e civis no controle do tráfego ou dos próprios citadinos.

Todavia, essa atuação do Estado não é neutra, mas resultado de uma correlação de forças que atuam dentro do próprio corpo gestor do Estado – como os compositores do poder executivo, o poder judiciário, o legislativo, os partidos políticos –, assim como as forças que atuam fora do aparelho estatal – como os movimentos sociais, ONGs, associações de moradores, coletivos locais, entre outros agrupamentos organizados ou não. Somado a essa correlação de forças, tem-se ainda os imbricamentos de ordem das escalas de atuação no lugar, uma vez que a atuação de forças externas nas dinâmicas locais se intensificam e complexificam. 2) Esse controle estatal não é monopolizado, se abrindo às concessões e privatizações em favor de agentes privados. Estes sujeitos atuam na produção do espaço das cidades de forma bastante direcionada e exercem fortes influências diante dos órgão públicos, que muitas vezes repassam suas administrações através de editais públicos. Exemplos marcantes disso, é a

administração de vias públicas por empresas privadas que vendem seu uso à população ou repassam à massa populacional os custos de manutenção64.

De outra maneira, existem as formas mais discretas do controle das ruas por entidades privadas através do controle das infraestruturas públicas. O maior exemplo desse modo se dá no transporte público monopolizado, presente em grande parte das cidades brasileiras. Empresas licenciadas concorrem à editais para o uso único de trechos do tecido urbano, exercendo a totalidade das atividades de transporte dos passageiros no âmbito urbano.

3) Por fim, destacamos o uso público das ruas, ou seja, do povo. Aqui, reduzimos as múltiplas possibilidades de usos pela população em duas formas primordiais de uso, que melhor atendem nosso objetivo central.

Primeiramente destacamos o uso das ruas através do automóvel ou veículo individual para deslocamentos intra-urbanos, pela centralidade que sua utilização exerce nas cidades brasileiras desprendendo recursos públicos pela via do planejamento urbano e das gestões de tráfego na tentativa de otimização do trânsito e na diminuição dos congestionamentos. Além do fetiche, amplamente difundido ao redor da propriedade do carro, imprescindível à um capitalismo fossilista (PORTO-GONÇALVES, 2006: p. 32), sua mítica se deve à forte propagação dos ideais do American Way of Life, que é incorporado culturalmente pela população brasileira. Ademais, o processo de produção das cidades iniciado na primeira metade do século XX nos Estados Unidos e incorporado pelas cidades brasileiras veem na utilização do veículo um forte componente econômico por produzir um novo padrão de vida (HARVEY, 2014: p. 37-38).

O fato principal é que toda essa política econômica voltada para seu uso, assim como a propagandeada velocidade que tanto contribui para a busca de uma “supressão do espaço pelo tempo” (MASSEY, 2008, p. 138-139) produz na mentalidade da população um conjunto de valores que levam a ideia do carro ou do transporte individual como elemento primordial da cidade. Com isto em vista, podemos compreender como as cidades brasileiras estão despreparadas para a utilização de mecanismos de mobilidade urbana alternativos ao automóvel.

Em contrapartida à lógica da velocidade pregada pela publicidade em torno do automóvel e dos fluxos, existem os usos alternativos das vias públicas. A recreação, o lazer, a arte e a cultura também se manifestam nesses espaços reivindicando uma destinação

64 Juiz de Fora não dispõem de pedágios urbanos, como em outras cidades brasileiras. Entre todos os exemplos, podemos citar o controverso pedágio da Linha Amarela no Rio de Janeiro, ou a polêmica proposta de pedágios urbanos adotadas em metrópoles mundiais e proposta para São Paulo.

socializante da estrutura pública da cidade. A destinação da Avenida Rio Branco aos domingos para a prática de esportes e lazer em juiz de Fora é um desses usos, assim como a prática do carnaval, seja através de blocos ou escolas de samba, existe uma camada da população que busca outros usos à via pública, para além do fluxo. Não obstante, Henri Lefebvre tece observações a respeito desses usos.

Trata-se de uma aparência caricata de apropriação e de reapropriação do espaço que o poder autoriza quando permite a realização de eventos nas ruas: carnaval, bailes, festivais folclóricos. Quanto à verdadeira apropriação, a da “manifestação” efetiva, é combatida pelas forças repressivas, que comandam o silêncio e o esquecimento (LEFEBVRE, 1999: p. 31).

Em 2018, Juiz de Fora constatou um caso a mais do conflito de interesses no interior da sociedade civil. Na ocasião, a Associação de Moradores do bairro São Mateus de acordo com os termos colocados pela legislação juizforana, deve aprovar a realização de eventos culturais, declina frente ao pedido do bloco “Meu concreto tá Armado” que tradicionalmente se concentrava na Praça Jarbas de Lery e fazia seu cortejo nas ruas do bairro65. Sob a justificativa da falta de estrutura da praça para receber o contingente de foliões que “urinam na porta das lojas”, além de atrapalhar o trânsito no entorno da praça localizada no Bairro São Mateus, a ASPM negou o pedido de realização do bloco. A proibição inviabilizou o desfile gerando uma onda de comoção e protesto em outros blocos da cidade em solidariedade ao bloco e contra a decisão tomada pela associação, onde se perguntava se existia legitimidade no ato negativo.

Diante dessa dupla vertente nas ruas das cidades, é necessário resgatar a necessária crítica que Porto-Gonçalves faz ao direito de ir e vir, tão reivindicado nos últimos anos66. Mais do que “ir e vir”, destaca-se o direito de permanecer, materialmente, diante da histórica negação do direito à moradia67 e/ou culturalmente, pela identidade, pelas artes e pelo gênero, pelo carnaval de blocos ou escolas de samba. O direito de permanecer com estas práticas culturais é reivindicar um sentido humanista da cidade e garantir que estas formas de manifestações culturais continuem existindo. E ainda acrescenta que, “mais do que isso, o direito de soberanamente decidirem/pactuarem o permanecer ou o deslocar” (PORTO-GONÇALVES, 2000: p. 246). Transportado ao espaço das cidades, essa soberania nos remete a uma gestão participativa dos rumos das cidade, onde mais que usufruir de espaços públicos ou de seus

65 Cf. MORAIS, 2018.

66 No Brasil, os manifestantes das jornadas de junho de 2013 utilizavam desse recurso na luta contra o aumento das tarifas de ônibus e pelo passe livre.

equipamentos significa definir seus rumos e seus destinos, algo próximo do que Henri Lefebvre queria dizer com “o direito à cidade”.