• Nenhum resultado encontrado

1.2. A festa e a cidade: o caráter urbano do carnaval

1.2.1. Cidades em festa

Quando Henri Lefebvre propõe uma divisão da história e evolução das cidades ocidentais, partindo da “cidade arcaica” “essencialmente política”, passando pela “cidade medieval”. que “sem perder o caráter político, foi principalmente comercial, artesanal, bancária”, até chegarmos nas “cidades industriais” e a modernidade (LEFEBVRE, 2001: p. 11), temos a possibilidade de elencar algumas festividades em cada uma de suas formas. Ou ainda, podemos buscar a relação entre festas e cidades em civilizações anteriores à organização das cidades. Mergulhando mais profundamente na história, entendemos que “a ‘cidade’ da comunidade primitiva existiu, foi construída nos centros de peregrinação, por ocasião de rituais míticos. Cavernas, cemitérios, morros e outros sítios rituais foram as primeiras ‘cidades’” (FERNANDES, 2001: p. 2).

Todavia, como expõe Bakhtin, entendemos que existem elos de ligações e práticas semelhantes com as festas pagãs, mas as transformações às quais se sujeitam a festa são tamanhas que as tornam bastante distantes em termos práticos. O autor afirma em passagem sobre o riso. “É o caso dos festejos carnavalescos no mundo antigo, sobretudo as saturnais

romanas, assim como os carnavais da Idade Média que estão evidentemente muito distante do riso ritual que a comunidade primitiva conhecia” (BAKHTIN, 2010: p. 5).

Também, Fernandes adverte que a festa não integra uma dimensão da essência humana. Por mais que o ato de festejar esteja profundamente ligado à história da humanidade há muito milênios, a festa não é uma atividade intrínseca à humanidade. “Tampouco se pode explicar a festa por necessidades biológicas, ou reduzi-las, de modo simplista, como infelizmente é tão comum, à manipulação pelas classes dominantes das frustrações das massas”. A festa é “necessidade permanente do homem de fazer a suspensão ou moratória do cotidiano” (FERNANDES, 2001: p. 16). O que deve ser diferenciado da ideia da festa tratada como descanso. Realmente não são sinônimos, uma vez, que festejar é também trabalho, produz e transforma espaços. Essas práticas desenvolvidas historicamente constituem as cidades em sua evolução através de espaços físicos e ocupações de espaços públicos (FERNANDES, 2001: p. 2).

Exemplos disso, são as festas em honra a Dioniso. Cultuado no campo e na cidade, o deus do vinho ficou marcado na história por celebrações de sua divindade através dos prazeres carnais, comidas e bebidas alcoólicas em abundância, além da prática do sexo e outras atividades como a jogatina e o teatro (MALHADAS, 1983: p. 69).

Superiores em brilho e organização às celebrações dionisíacas de todo o mundo helênico, celebravam-se, em Atenas, por ano, cinco festas de culto a Dioniso: as Lenéias (em janeiro-fevereiro), as Antesterias (em fevereiro-março), as Dionisíacas urbanas (em março-abril), as Oscoforias (na segunda quinzena de outubro) e as Dionisíacas rurais (em Dezembro-janeiro) (MALHADAS, 1983: p. 67).

Celebradas na primavera europeia, “no fim de março, passado o inverno, o mar se tornava navegável e acorriam para Atenas estrangeiros de todas as partes, para prazeres e negócios públicos ou particulares”. Dentre todos os tipos de culto, as dionisíacas urbanas foram as de maior relevância. Além de serem realizadas nos espaços públicos da pólis, eram inauguradas com um sacrifício à Asclépio, que visava o bem da cidade. “Cantava-se um peã e em nome da ‘polis’ oferecia-se o sacrifício, para pedir, certamente, no momento em que o ano se renovava com a chegada da primavera, a saúde para a cidade” (MALHADAS, 1983: p. 70). Na cidade de Roma9, no século IV a.c. existem registros de festas ao titã fugido, Saturno – as chamadas saturninas –, que em muito se aparentavam com as dionisíacas, apesar das especificidades do panteão grego e do romano. “As saturnais ocorriam no último mês do

calendários romano, em dezembro. Este tempo estaria sob a égide de Saturno, deus protetor da agricultura”. De acordo com a mitologia, Saturno um dia foi rei na terra, abolindo durante esse período as distinções de classes, num reinado “justo, bondoso e alegre”, conseguindo a confiança do povo e os ensinando a agricultura. Saturno, por fim retornou ao reino dos deuses e o povo na terra em celebração de seu nome, suspendia a ordem frequente entre os dias 17 e 23 de dezembro. “A ordem nessa semana era viver alegremente, comer muito e extroverter os instintos regulados durante o ‘tempo ordinário’ do ano (SEBE, 1986: p. 15-16).

Existem controvérsias quanto às origens do carnaval. José Carlos Sebe atribui ao carnaval a qualidade de “uma das festas mais antigas da história” ligando-a “à figura de deuses apaixonados, à tragédia e a cultos como o da fertilidade da natureza”. Isso o leva a concluir que a possível origem do carnaval esteja nos povos egípcios, incorporada pelos “gregos em suas longas viagens durante a Antigüidade”, influenciando as festas em homenagem à Dioniso ou à Saturno (SEBE, 1986: p. 9-11). Isso leva o autor a concluir.

A combinação do culto da fertilidade com as licenciosidades sexuais é um elemento constante em todas as narrativas. Bebedeiras, lascívia, muita comida, orgias coletivas, música e dança, contidas em um espaço de tempo programado, permitem ver que na ‘inversão do cotidiano’ estava a idéia de um renascimento (SEBE, 1986: p. 20). Entretanto, não nos parece sensato assumir a influência diretamente, justamente por falta de consenso. Para Roberto da Matta, o carnaval se caracteriza por ser uma festa de “escala cronológica cíclica, que é independente de datas fixas”. Dessa forma, “o começo do carnaval perde-se no tempo - estando ligado a toda humanidade, do mesmo modo que pensar no tempo do carnaval é pensar em termos de categorias abrangentes como o pecado, a morte, a salvação, a mortificação da carne, o sexo e o seu abuso ou continência” (MATTA, 1997: p. 54-55). No entanto, por compromisso com a própria história, entenderemos como marco originário do carnaval, as festas cristãs romanas que antecedem o período da quaresma.

O domínio católico no período da Idade Média é de conhecimento geral. Logo podemos aceitar que as tradições religiosas cristãs faziam parte da vida do cidadão medieval e de suas cidades (BAKHTIN, 2010: p. 5; FERNANDES: 2001: p. 16).

Os festejos do carnaval, com todos os atos e ritos cômicos que a ele se ligam, ocupavam um lugar muito importante na vida do homem medieval. Além dos carnavais propriamente ditos, que eram acompanhados de atos e procissões complicadas que enchiam as praças e as ruas durante dias inteiros (...) (BAKHTIN, 2010: p. 4).

Durante o papado de Paulo II, às vésperas da quaresma – período cristão de abstinências em referência aos quarenta dias que Jesus passou no deserto sem se alimentar ou beber água e ainda tentado pelo diabo – se liberava os fiéis ao consumo em abundância de carne e outros prazeres terrenos, em preparação ao sacrifício (MOONEY, 1988: p. 10-11).

Apenas no século XV, provavelmente movido pelo sucesso popular da festa, o papa Paulo II a incorporou no calendário cristão. Aliás, Paulo II foi mais longe, chegando a patrocinar toda uma rica celebração antes do advento da Quaresma. Em Roma o papa escolheu a via Láctea e, depois de adorná-la com guirlandas e tochas, permitiu danças variadas, corridas de anões e corcundas. Sem dúvida, por este tempo, ainda que promovido pelo sumo pontífice, o carnaval romano já era violento. Não apenas as práticas medieval de buffonerie, espécie de batalha de confetes, ovos, urina e farinhas, mas também jogos e disputas faziam parte da celebração (SEBE, 1986: p. 25).

Diante disso, podemos conceber o carnaval nas cidades medievais como, basicamente, de ordem religiosa, assim, como outras comemorações aos seus cânones ou datas comemorativas da vida de cristo e de figuras importantes. Destaca-se então, os dias de santos e santas, as celebrações do nascimento, vida e morte de Jesus. Contudo, o carnaval exerce certa peculiaridade no que se refere à religiosidade.

Não se trata naturalmente de ritos religiosos, no gênero, por exemplo, da liturgia cristã, à qual eles se relacionam por laços genéticos distantes. O princípio cômico que preside aos ritos do carnaval, liberta-os totalmente de qualquer dogmatismo religioso ou eclesiástico, do misticismo, da piedade, e eles são além disso completamente desprovidos de caráter mágico ou encantatório (não pedem nem exigem nada). Ainda mais, certas formas carnavalescas são uma verdadeira paródia do culto religioso. Todas essas formas são decididamente exteriores à Igreja e à religião. Elas pertencem à esfera particular da vida cotidiana (BAKHTIN, 2010: p. 5-6).

É na Idade Média que cada região vai desenvolver uma forma específica de celebração dos dias de carnaval. O Brasil, como colônia de Portugal, país de forte domínio católico, importa suas tradições religiosas e também a prática do entrudo, que definiremos com maior riqueza de detalhes no capítulo II.

Já pincelada algumas notas ao redor do caráter urbano do carnaval, o que nos cabe, a partir dessa curta história da relação entre as festas e as cidades ocidentais – ao longo de um período demasiado extenso para ser abordado com o devido rigor –, é o que nos cabe a compreender os elementos presentes nessa narrativa que possibilitem apontar a geograficidade da festa. Antes disso, resgataremos as mudanças que as revoluções científicas e industriais suscitaram nas cidades em direção a uma compreensão maior da realidade atual.