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1.3. Carnaval: produtor de espaço nas cidades

1.3.1. Carnaval e a inversão das dinâmicas da cidade

O caráter urbano da festa carnavalesca proporciona na paisagem, uma série de alterações, assim como deixa no espaço suas marcas. O planejamento e a gestão urbana, com frequência, não são capazes de direcionarem uma cidade a todos os tipos de manifestações artísticas. A forma urbana (via planejamento) não abrange a totalidade de interesses sociais e como os sujeitos são ativos, transformam o espaço de acordo com suas necessidades.

Na década de 1930, os jornais esportivos como o Mundo Sportivo dirigido por Mário Filho, no período de intervalos dos campeonatos de futebol, tinham dificuldades em continuar circulando, devido à falta do que pudessem noticiar (SIMAS, s/d). As escolas de samba já existiam, mas ainda não faziam parte do cotidiano de grande parte das pessoas na cidade do Rio de Janeiro. Por mais que alguns sambas fossem gravados em discos de vinil, boa parte dos sambistas se recusaram às gravações, alegando que a canção “perde em sinceridades” (FERNANDES, 2001: p. 76).

Os únicos concursos entre escolas de samba realizados até o ano de 1932 haviam sido duas disputas musicais na casa do pai de santo Zé Espinguela. Mario Filho, diante da falta de notícias para o periódico esportivo organiza através de seu jornal, um concurso para apresentação do movimento de escolas de samba que vinha ganhando forças nos últimos anos. Não ao acaso, o local escolhido pela escola foi a Praça Onze de Junho. A proposta do local é sugerida por Carlos Pimentel, um dos primeiros jornalistas especializados no carnaval carioca e o responśavel por apresentar as escolas de samba à Mário Filho. “Pimentel explicou a seus colegas de redação que o local do concurso só poderia a Praça Onze, onde elas já vinham se apresentando espontaneamente” (FERNANDES, 2001: p, 76).

No ano seguinte o 1933, o Mundo Sportivo fecha as portas e a organização do concurso de escolas de samba vai para O Globo. Uma das primeiras ações do novo organizador foi tentar “transferir o concurso da praça Onze para o ‘deserto’ da recém-constituída esplanada do Castelo, no que felizmente foi impedido pela prefeitura, sob a alegação de que o espaço se destinava à apresentação do corso” (FERNANDES, 2001: p. 79). Sem embargo, a Praça Onze já havia se consolidado como reduto do carnaval marginalizado16. O crescimento da chamada Cidade Nova ocupado majoritariamente por imigrantes “fez com que a capacidade festiva de seus moradores construísse em torno da praça Onze um território sagrado para o Carnaval popular das mascaradas, dos cordões, ranchos pobres e dos blocos” (FERNANDES, 2001: p. 35).

No Rio de Janeiro, partir de 1947, com a demolição da Praça Onze, os desfiles passam a ser realizados na Avenida Presidente Vargas. A montagem de arquibancadas e outras estruturas de apoio começam a ser realizadas a partir desse momento, uma estrutura provisória que só será encerrada após a inauguração da Passarela do Samba.

Na cidade de São Paulo podemos destacar as manifestações carnavalescas que ocupam as ruas e espaços públicos da cidade espalhadas por diversas regiões. Destaque para os desfiles dos corsos que ocorriam na Avenida Paulista no início do século XX, e os cordões da Barra Funda17 e os do Vae-Vae, no Bela Vista, que ocupavam as ruas das cidades, mesmo diante de uma sociedade extremamente racista que repudiava e reprimia fortemente as manifestações negras (SANTOS, 2013: p. 101).

16 No início do século XX, o Corso e as Grandes Sociedades Carnavalescas vão se destacar entre as formas de brincadeira do carnaval mais elitizados. Cordões, blocos e escolas de samba vão dominar as formas de manifestação carnavalesca entre a população mais pobre.

Antes da construção do Sambódromo do Anhembi, em 1991 durante o mandato de Luiza Erundina, os desfiles aconteciam na Avenida Tiradentes, uma das principais vias da cidade que liga a região da Luz à Marginal Tietê. A avenida ajuda a contar a história dos desfiles das escolas de samba de São Paulo, presenciando grande parte dos concursos realizados na cidade (SANTOS, 2013: p. 71-72).

Não muito diferentes da realidade paulistana se encontra os desfiles de escolas de samba em Juiz de Fora, que se realizavam de maneira informal em batalhas de confetes entre a Rua Halfeld e a Rua Marechal Deodoro da Fonseca. Em 1966, no primeiro concurso de escolas de samba da cidade, organizado pelo Departamento Autônomo de Turismo os desfiles passam a se realizar na Avenida Rio Branco, nas imediações da catedral metropolitana, conhecida também por ser uma das principais artérias da cidade.

Sabemos que a realização dos desfiles é uma parte extremamente reduzida das manifestações carnavalescas que se realizam nas cidades citadas. Explorando ainda mais a história de carnavais para além das cidades do sudeste brasileiros, podemos constatar muitas outras manifestações para além das escolas de samba. No entanto, utilizamos estes exemplos por dois motivos principais. O primeiro por se tratar de uma das principais e mais conhecidas manifestações carnavalescas no Brasil. E em segundo lugar, por ter tido uma origem repleta de ações repressivas por parte das forças de segurança e aos poucos, conquistar espaços centrais na dinâmica de suas respectivas cidades.

Com isso, chegamos em nosso principal ponto. O carnaval é em potência, um alterador dos fluxos das cidades. É de conhecimento geral, que as cidade mundo afora, vem ao longo de décadas aumento as velocidades e transformando suas formas para intensificar a fluidez de capitais e fora de trabalho. O modernismo18, atribui à cidade um sentido funcional e o urbanismo auxilia ideologicamente essa visão de mundo através de “especulações que frequentemente se disfarçam de ciência” (LEFEBVRE, 2001: p. 48).

As manifestações carnavalescas invertem as relações funcionalistas que dominam o ideário das cidades. A cidade produzida para os ritmos da produção e circulação se vê ocupada de grupos desinteressados na produção de valor e empregando suas energias na geração de novas sociabilidades espacialmente referenciadas. É nessa direção que Henri Lefebvre, lança a crítica ao modelo da cidade moderna em face ao seu caráter múltiplo, do encontro, social e cultural.

O ser humano tem também a necessidade de acumular energias e a necessidade de gastá-las, e mesmo de desperdiçá-las no jogo. Tem necessidade de ver, de ouvir, de tocar, de degustar, e a necessidade de reunir essas percepções num “mundo. A essas necessidades antropológicas socialmente elaboradas (isto é, ora separadas, ora reunidas, aqui comprimidas e ali hipertrofiadas) acrescentam-se necessidades específicas, que não satisfazem os equipamentos comerciais e culturais que são mais ou menos parcimoniosamente levados em consideração pelos urbanistas. Trata-se da necessidade de uma atividade criadora, de obra (e não apenas de produtos e de bens materiais consumíveis), necessidades de informação, de simbolismo, de imaginário, de atividades lúdicas. Através dessas necessidades específicas vive e sobrevive um desejo fundamental, do qual o jogo, a sexualidade, os atos corporais tais como o esporte, a atividade criadora, a arte e o conhecimento são manifestações particulares e momentos, que superam mais ou menos a divisão parcelar dos trabalhos. Enfim, a necessidade da cidade e da vida urbana só se exprime livremente nas perspectivas que tentam aqui se isolar e abrir os horizontes. As necessidade urbanas específicas não seriam necessidades de lugares qualificados, lugares de simultaneidade e de encontros onde a troca não seria tomada pelo valor de troca, pelo comércio e pelo lucro? Não seria também a necessidade de um tempo desses encontros, dessas trocas? (LEFEBVRE, 2011: p. 105).

A forma urbana é transformada então por estes sujeitos que ousam desafiar o funcionalismo das cidades e de alguma forma, são assimilados pelo Estado e pelo mercado. Neste sentido, destacam-se a Passarela do Samba Darcy Ribeiro no Rio de Janeiro e o sambódromo do Anhembi em São Paulo, espaços construídos via poder público para a realização das festas e otimização dos fluxos da cidade. Ou ainda, podemos destacar propostas controversas, como a “Arena dos Blocos” na capital fluminense, de otimizar as vias das cidades durante os dias de carnaval com a criação de espaços destinados exclusivamente para a realização de tais atividades (BARREIRA, 2018: s/p).

Em Juiz de Fora, podemos verificar a inversão das lógicas cotidianas, através das prática carnavalesca locais. Até o ano de 2015 transformava-se periodicamente o uso da Avenida Brasil, uma das vias mais movimentadas da cidade, requalificando suas dinâmicas ao ritmo cadenciado das baterias das escolas de samba. Semelhantes, os blocos conduzem a passos lentos, de maneira mais espontânea, uma ocupação popular temporária, diminuindo o ritmo e alterando as sonoridades do motor a explosão pelos acordes musicais.