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Neste argumento, o perfil de risco das gestantes é incorporado ao processo de identificação da(s) doença(s) que ela apresenta. O diagnóstico de risco é regulado pelo discurso da propedêutica clínica, ou seja, o risco é objeto de diagnóstico em si (ALMEIDA FILHO, 1992).

Proposição: A avaliação do risco baseia-se no fato de as gestantes serem portadoras de doenças.

Esta assertiva sinaliza para a utilização do conceito clínico de risco sem se basear na aplicação direta de um raciocínio fundado na probabilidade estatística, como acontece no risco epidemiológico. Ou seja, o argumento é construído em torno da concepção de risco individual. A proposição é apresentada para defender o caráter multidisciplinar da avaliação do risco na gestação: a avaliação do risco deve ser realizada pelo médico especialista na patologia apresentada pela gestante. Os participantes posicionam os especialistas não- obstetras como atores responsáveis pela confiabilidade da avaliação do risco e se auto - posicionam nos limites da prática obstétrica que os impossibilitam de avaliar com presteza o risco associado a patologias não-obstétricas:

Normalmente, as questões que envolvam risco de vida elas não são necessariamente só obstétricas. Há condições que são obstétricas, claro. Há situações que é da obstetrícia e aí é o obstetra que cabe definir esse

neurologia, da cardiologia, da endocrinologia, ou seja, de outras áreas da medicina, muito especificas, é evidente que não cabe ao ginecologista, não é que não cabe, não há nem condições de poder ter conhecimento o suficiente daquela situação para poder definir que risco é esse, que tamanho de risco a gente está lidando. Então, todas às vezes a gente tem situações dessa natureza, a gente busca pelo parecer de um especialista daquela área (...). (Jefferson Drezett).

No entanto, a investigação e a análise do risco clínico na gestação não são reduzidas à eficácia de procedimentos diagnósticos e terapêuticos, incluindo também os aspectos emocionais, sociais e culturais na compreensão do processo saúde-doença:

(...) A gente encontra nas nossas vidas, mulheres que têm uma cardiopatia grave, que a gente diz assim << a senhora tem 10, 15, 20 por cento de chance de morrer se levar a sua gestação a termo>> e a mulher diz assim << Doutor, não faz mal, eu prefiro morrer, mas eu quero ter esse filho>> E se você perguntar para família dela, para o marido dela <<eu não quero perder minha mulher, eu não quero nem um por cento de risco>> E os filhos que ela tem também não querem esse risco. Então, você percebe que dependendo de quem está fazendo essa avaliação, e do interesse * se o interesse pessoal dela * às vezes a mulher é uma suicida em potencial em prol de uma gravidez. Como também quando ela não quer mais uma gravidez ela também é uma suicida em potencial, haja vista os instrumentos que muitas mulheres usam para poder provocar o auto-aborto. (Osmar Colás).

Na construção dessa proposição, casos fictícios também são apresentados para organizar o argumento, com a finalidade de atestar quadros clínicos preexistentes à condição de gestação que requerem a atuação de médicos não-obstetras. O objetivo é justiçar a existência da necessidade da escolha por um tratamento muitas vezes incompatível com a gestação ou pela escolha da interrupção em virtude do risco decorrente da patologia:

(...) E às vezes pode ser que não, por exemplo, o ginecologista nunca pensou nessa possibilidade, encaminhou ela para fazer um exame, encaminhou ela para um profissional da área que ela apresentou o problema, por exemplo, * e eu estou falando de uma série de patologias que acabam ocorrendo durante a gestação, e existe aquela paciente que tinha uma patologia, já estava severa e acaba por engravidar. Vamos pensar, por exemplo, numa paciente que esteja quase oxigênio dependente ou esperando um transplante. Como é que grávida vai se submeter a um transplante? Você entendeu? Porque aconteceu de ela engravidar e ela está numa fila por um transplante. Não toma droga nenhuma porque no

caso dela ela não tem um câncer, ela está esperando por um transplante pulmonar, por exemplo. (Joselene Breda).

Uso de dados:

1) Relatos de casos clínicos que atestam o risco decorrente da patologia da gestante.

Esses dados são inseridos no argumento para evidenciar fatos que expressem as experiências clínicas individuais dos participantes, e estas, por sua vez, são integradas aos conhecimentos acumulados sobre os mecanismos de doenças que colocam em risco a vida ou a saúde da gestante. Os casos clínicos, apresentados como dados, explicitam o objeto da clínica: a gestante considerada em suas particularidades. Os participantes diferenciaram risco de vida e risco à saúde. Risco de vida diz respeito à possibilidade de morrer em decorrência da patologia, caso a gestação não fosse interrompida. Como nos trechos abaixo:

(...) de repente chega uma paciente que tinha tido uma patologia grave durante a sua gestação, já tinha tido uma coagulopatia, já tinha tido uma trombocitopenia grave, tinha uma insuficiência renal já importante instalada em evolução, e a própria paciente solicitou a interrupção porque ela achava que * falaram para ela que ela podia perder o rim durante a gravidez (...). (Cristião Rosas)

(...) cardiopata, eu acho que é o mais comum *. Aquelas cardiopatias funcionais * cianóticas, funcional grau IV que * tivemos um caso que tinha, inclusive, hipertensão pulmonar, a paciente, então, o quadro cardio- respiratório já logo no início da gestação muito complicada, muito difícil (...). (Cristião Rosas)

E risco à saúde, quando a patologia não necessariamente levaria a morte da gestante, mas impediria o seu tratamento:

(...) era um caso de câncer de mama, ela tinha que realizar a interrupção e ela foi extremamente esclarecida sobre a circunstância real. Ela ponderou a decisão. (...). Eu me recordo bem desse caso de câncer de mama porque não era obrigatório que ela morresse, mas a gente sabia que isso iria ter um agravante no prognóstico dela imenso. Mesmo assim ela optou, conversando com o marido, em manter a gestação até o final, em manter a gravidez e que se ela morresse o marido continuaria cuidando dos dois filhos que ela já tinha e desse terceiro que ficaria, mas ela não teve

coragem de interromper a gestação e resolveu correr o risco até o final. (Jefferson Drezett).

(...) agora que eu estou falando eu me lembrei de um caso que eu atendi, de uma paciente * eu queria tanto lembrar o nome dela * ela não possuía o pré-natal comigo, ela era uma paciente tão séria, tão sério o caso dela, ela tinha uma artrite reumatóide. A artrite reumatóide é uma das doenças que pode * dependendo de como ela está, tem três casos assim, essa foi um (...). Então ela estava no sistema público e veio consultar comigo, mas, assim, a doença dela, o ideal para quem tem uma artrite reumatóide é engravidar quando a doença está numa fase * que a gente fala, que está em silêncio, que está sob controle, ela não está tomando medicamento forte, essa paciente engravidou no auge de uma crise, tomando doses altíssimas de corticóide, quer dizer, já pode alterar o desenvolvimento ósseo do bebê, enfim, estava tomando merticoten, estava tomando * artrite reumatóide a gente usa umas drogas muito parecidas com quimioterápico, totalmente contra-indicada durante a gestação. Você vê, ela chegou aqui para mim com dezenove semanas, quase vinte, porque depende muito disso também, da equipe que está acompanhando, dependendo dos colegas ninguém vai indicar, ninguém vai levantar a possibilidade, a não ser que seja um caso muito clássico, igual eu estou lhe falando, entendeu? Melanoma, um tumor cerebral. Agora, artrite reumatóide? Essa paciente estava em risco, com gestação de altíssimo risco, ela não ia conseguir levar esse bebê até o final, entendeu? Aí, em algum momento, ela não veio mais aí a outra falou <<olha, não doutora, complicou ela teve que internar, parece que o bebezinho nasceu e não chegou nem a vinte e seis semanas, deve ter ficado na UTI, sabe? Iria precisar *>> Bom, nasceu com alguns transtornos, entendeu? Mas seria de risco de vida para ela? Não, o risco

maior era fetal, ela, tudo bem, era dor e tudo o mais, mas artrite

reumatóide, acho que não iria complicar muito mais, não. Iria se ferrar inteira, porque teria que aumentar a dose de corticóide, enfim. Mas ninguém levantou essa possibilidade, nesse caso. (Joselene Breda).

2) Relatos de casos fictícios também foram apresentados para oferecer informações relacionadas à proposição central (risco associado à patologia). A construção argumentativa visou colocar a disposição da interlocutora (a pesquisadora) as experiências da prática médica dos entrevistados criando narrativas ficcionais baseadas em casos vividos pelos profissionais:

(...) Então vamos voltar ao câncer que é um assunto que me é mais * que é da minha rotina. Então, uma paciente jovem, por exemplo, de 23 anos e descobre um nódulo já de dois para três centímetros, o que faz toda diferença no tratamento, etc. E aí faz uma biopsia e você percebe é um tumor extremamente agressivo, e que ela teria que fazer já, partir para uma mastectomia e uma quimioterapia, sendo essa quimioterapia incompatível com o quadro gestacional dela, bom * a entrada precoce do tratamento vai

fazer toda a diferença para sobrevida dela, então, você pode comentar isso com ela (...). (Joselene Breda).

Por exemplo, eu estou aqui com uma paciente e a gente vê * vamos vê uma outra coisa, para gente não ficar nos mesmo exemplos, com um tumor renal, primeira gestação, veio fazer o exame de urina 1, deu uma alteração importante no exame de urina, a gestação é inicial, aí a gente vai fazer uma investigação, pedimos um ultra-som de vias urinárias, ela nunca * isso é fictício, esse fato, * fez o ultra-som de vias urinárias, o ultra-som renal e veio uma imagem sugestiva de tumor em um dos pólos renais, já grande, muito bem! Encaminho para um urologista, um oncologista, ela vai lá e ele, em virtude do tipo de imagem ele sugere uma biopsia no mesmo momento, tudo isso pode ser feito na vigência da gestação. Ela é submetida à biopsia e, por exemplo, observou-se que é um tumor extremamente agressivo, seria necessário uma conduta imediata. (Joselene Breda).

Garantia: Um conjunto de razões, autorizações, procedimentos e regras foram usados pelos participantes da pesquisa para afirmar a legitimidades dos dados (relatos clínicos). Essa garantia, muitas vezes foi apresentada como a necessidade do parecer ou do laudo médico de especialistas que atestassem o risco causado pela patologia da gestante:

(...) E esse parecer para gente é fundamental, porque o ginecologista não pode dizer que determinada cardiopatia necessariamente durante a gestação vai produzir fatores de risco, embora os ginecologistas, por exemplo, trabalhem com cardiopatia em gravidez, diabete em gravidez, insuficiência renal em gravidez. Mas a gente acha desejável dentro do plano regular dessa paciente que haja pelo menos um especialista naquela área, e aqui em São Paulo não haveria motivo para ser diferente, há possibilidades de conseguir esse parecer (...). (Jefferson Drezett).

O parecer é apresentado como o principal personagem na trama clínica dos procedimentos para a avaliação do risco e consequente indicação de aborto:

(...) De toda forma, é importante, se for possível obter desse especialista que não vai realizar o abortamento ou outro médico que vai realizá-lo, até, se possível, que há risco de vida e que há indicação de abortamento. Se a gente pode obter também esse esclarecimento de que há esse risco de abortamento também é muito útil para os nossos pareceres. Mas, uma vez tendo pelo menos um parecer de um especialista da área a gente ainda acredita ser interessante ter um segundo parecer, demonstrando que dois pareceres diferentes, de duas pessoas diferentes, ou de duas instituições diferentes são concordantes nesse sentido. Poderia buscar ter um terceiro, um quarto ou um quinto, mas poderia ser questionado, poderia ser colocado

em dúvida que um único parecer não fosse suficiente para esclarecer essa situação. Então a gente busca sempre um segundo parecer (...). (Jefferson Drezett).

Apesar do protagonismo do parecer, não é o seu autor que realiza o procedimento do aborto. As diferentes funções executadas pelos profissionais médicos - nesse processo que vai desde a avaliação do risco até a interrupção da gestação -, são elementos usados como dados e descritos conforme uma hierarquia de importância entre saberes e fazeres: o médico especialista produz o parecer, mas quem faz a interrupção é o obstetra:

(...) por exemplo, quem seria um que também teria que assumir a responsabilidade, e assinar o nome dele e solicitar, tal procedimento, então, por exemplo, se nós vamos precisar de um especialista do lócus em que paciente tem problema, então, se é alguém, então, provavelmente é um urologista, que é um tumor renal, é um câncer, um oncologista e o ginecologista que está acompanhando ela, que pode não fazer, a maioria não vai fazer, muito bem, aí indica para um serviço de referência e chega nessas três indicações. (Joselene Breda).

Relatos de casos fictícios também são usados como garantia para expressar os procedimentos clínicos adequados em situações de gestação de risco:

Esse capítulo que nós estamos discutindo ele é multidisciplinar, é multidisciplinar, multiprofissional. É * não caberá nunca a um único indivíduo tomar toda a decisão. Já parte de dois, é o médico que identifica o problema e a sua paciente, então, você identificando o problema, você vai dividindo, com pelo menos, mais dois profissionais, entendeu? Para que? Para verificar o problema, porque muitas vezes, vamos supor, tumor cerebral. Você está grávida, estava andando de metrô e teve um desmaio, você vai investigar uma área cerebral, uma alteração cerebral, muito bem! Repetimos em um mês, sugeriram repetir em 15 ou 20 dias, repetimos <<nossa, a lesão é expansiva, cresceu tanto, sugestivo de lesão maligna>> Aí, provavelmente, bom, é no cérebro, o ginecologista não tem essa competência, encaminha para o neuro, aí o neuro é que vai definir << é necessário a biopsia, levando em consideração essa imagem que a gente pode ter adquirido, por exemplo, numa ressonância magnética>> Muito bem, <<é preciso fazer a biopsia agora? Não dá para ser depois?>> <<Não, tem que ser, essa imagem é sugestiva de uma lesão maligna e tal >> Muito bem, é o neuroquímico, aí vai para o neurocirurgião, aí três profissionais já foram. (Joselene Breda).

Apoio: O argumento que sugere a análise da história de vida, dos aspectos sociais, culturais e econômicos de cada gestante, de modo particular, é usado para explicar o modo de diagnosticar risco na clínica obstétrica:

(...) E muitas, pela gravidez também são* aumentam o risco, a gente cansa de ver paciente com doenças graves, e a gente diz <<se a senhora não interromper a gravidez, a senhora pode morrer>> e ela opta <<Doutor, eu posso morrer, mas eu quero levar essa gravidez até o fim>> A gente respeita essa direito dela, mas se nós fossemos perguntar, se ela estivesse, por exemplo, inconsciente e nós fossemos perguntar para o marido, talvez o marido não quisesse. E para os filhos, então? <<eu não quero perder a minha mãe de jeito nenhum em troca de um novo irmão>> E para os pais dela? E para a sociedade que isso significa? Uma mulher largar filhos, soltos. (Osmar Colás).

Quadro III - Argumento II: O risco clínico na gestação associado à patologia da gestante

Proposição Sustentação

A avaliação do risco baseia-se no fato de as gestantes serem portadoras de doenças.

Dado Relatos de casos clínicos que atestam o risco decorrente da patologia da gestante.

Garantia Conjunto de razões, autorizações, procedimentos e regras nomeadas como pareceres e procedimentos clínicos.

Apoio A análise da história de vida, dos aspectos sociais, culturais e econômicos de cada gestante, de modo particular, estão presentes no modo de diagnosticas risco na clínica obstétrica.