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Procedimentos para inserção no território do campo-tema: preparação e realização das entrevistas

Considerações metodológicas: os passos da pesquisa

4.2. Procedimentos para inserção no território do campo-tema: preparação e realização das entrevistas

A inserção territorial no campo

Inicialmente o projeto de pesquisa desta tese foi apresentado ao Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) da PUCSP, seguindo as exigências da Resolução Conselho Nacional de Saúde no 196/96, para apreciação e avaliação do cumprimento dos requisitos éticos da pesquisa com seres humanos. O projeto foi aprovado,em novembro de 2009, sob o número de protocolo 327/200918.

Para a consecução do objetivo desta pesquisa, - identificar as noções de risco presentificadas nos argumentos médicos sobre gestação de risco para referendar o aborto em gestações de risco -, o principal instrumento de aproximação às práticas discursivas foi a entrevista na perspectiva das conversas no cotidiano (M. J. SPINK, 2000b). Conforme a

linha de pesquisa na qual este projeto se insere, do Núcleo de Práticas Discursivas e Produção de Sentidos (NPDPS), que se enquadra na perspectiva da pesquisa qualitativa, a entrevista é entendida como um espaço de conversação dialógico.

As entrevistas foram usadas para mapear e compreender o modo como os/as informantes apreendem e usam a noção de risco. Constituiu-se como o ponto de entrada para introduzirmos esquemas interpretativos na compreensão dos argumentos dos/as médicos/as em termos mais conceituais e abstratos. Desse modo, a entrevista foi usada com o objetivo de fornecer as informações básicas para o desenvolvimento e a compreensão das relações entre as informações dos entrevistados e o tema estudado. Pretendeu-se com a escolha pelo método de entrevista uma compreensão detalhada das

argumentações presentificados nos discursos dos/as médicos/as no contexto social específico da assistência médica a gestante de risco.

O território dos serviços de assistência ao aborto legal era, para mim, desconhecido. Fazia-se necessária uma familiarização com o sistema de atendimento e com os discursos médicos sobre o tema. Além da consulta a literatura, estabeleci uma estratégia de imersão que visou um primeiro contato com os artefatos sociais – conceitos, temas, histórias etc. -, visando um caminho mais acessível a esse território. Assim, visitei o Hospital Universitário Alberto Antunes, vinculado a Universidade Federal de Alagoas (HUPAA-UFAL), por ser uma instituição que já conhecia e tinha acesso facilitado.

No dia 04 de fevereiro de 2009 realizei uma vista ao HUPAA-UFAL, que foi previamente agendada por uma amiga que trabalha na Instituição como psicóloga, Nidyanne Porfírio, colega que atua no setor de Recursos Humanos do referido hospital. Durante a visita conversei com duas médicas obstetras que trabalhavam na maternidade do HUPAA- UFAL, sendo uma delas responsável pelo setor da maternidade e a outra, chefe do serviço. Nesse encontro, entreguei a Carta de Apresentação à chefe do serviço, que já se encontrava na sala de atendimento, onde me recebeu, e expliquei-lhe os objetivos da pesquisa e a razão da visita. Em seguida, a médica responsável pelo setor de maternidade chegou e eu repeti as explicações. A partir de então, elas relataram alguns casos de gestação de risco, tanto para a gestante como para o feto, mas enfatizaram que tais casos eram raros e de baixa ocorrência. Entretanto, elas descreveram um caso de gestante de feto com acrania que tinha acabado de receber alta do hospital e que estava sendo atendida pelo setor ambulatorial. Nesse caso, a gestante optou por levar a termo a gestação, pois, de acordo com os relatos das médicas: ela é muito religiosa, é evangélica, e acha que o crânio ainda vai se desenvolver, que Deus vai colocar o cérebro até o neném nascer. No começo ela achava que o feto não tinha cabeça, que não ia formar a cabeça, mas aí depois que ela viu a ultra-som, que a gente explicou pra ela e ela viu que tinha o rostinho, ela acha que o crânio vai se desenvolver também, ela tem fé que o feto forme o crânio e por mais que a

gente explique não tem quem tire da cabeça dela.

As médicas também fizeram referência a um caso de gestante de anencéfalo que conseguiu, com impressionante rapidez, a autorização para a realização do aborto e a

equipe do HUPAA-UFAL realizou o procedimento. Relataram também alguns casos de gestantes com cardiopatias graves, que corriam risco de vida, e que nesses casos a equipe realiza a interrupção sem precisar de autorização da justiça. Explicaram que, nos casos de malformação, o diagnóstico não é de risco de vida da gestante, mas do feto, e que nesses casos elas ajudam a gestante a conseguir a autorização explicitando no laudo sintomas como pressão alta e etc., associados à malformação, e dão ênfase aos traumas psicológicos

que a gestação pode acarretar esse aspecto é que vem primeiro, é o principal, depois a

gente bota os outros (sic).

Relataram, também, que não há registros dessas gestantes no serviço de maternidade do hospital, mas que poderíamos procurar os casos nos livros de prontuários. As médicas me orientaram a solicitar ao Comitê de Ética do hospital permissão para realizar a pesquisa e também me orientaram a procurar a Maternidade Escola Santa Mônica, que é estadual. Uma das médicas mencionou que procurou saber se havia sido realizado algum aborto por estupro, tanto no HUPAA-UFAL como na Maternidade Santa Mônica, e que as pessoas lhe disseram que nunca havia sido realizado ao menos um.

O estado de Alagoas não tem uma tradição de atendimento às gestantes de risco. Como vimos nos relatos das médicas do HUPAA-UFAL, às gestantes que desejam ou precisam fazer o aborto nos casos de estupro ainda não têm a assistência que lhes é garantida legalmente e nos casos de aborto por risco de vida da gestante o serviço ainda é pouco sistematizado. Optamos, então, por realizar a pesquisa na cidade de São Paulo-SP, onde há serviços de aborto legal considerados de referência e por ser a cidade onde residia à época da realização do estudo.

Para a aproximação ao território dos serviços de aborto legal em São Paulo adotei algumas estratégias que dessem conta de me inserir nos espaços de discussão sobre as questões relacionadas à descriminalização do aborto, uma vez que o aborto por risco de vida da gestante constitui um dos permissivos legais, foco deste estudo. Desse modo, a partir de um contato por e-mail com o Dr. Thomaz Gollop, coordenador do Grupo de Estudos

sobre o Aborto (GEA), em São Paulo-SP, comecei a participar das reuniões e debates sobre o tema.

O GEA é uma entidade multidisciplinar, criada em Junho de 2007, que reúne médicos, juristas, antropólogos, movimentos de mulheres, psicólogas, biólogos e outros profissionais. Não é uma Organização Não Governamental (ONG) e não tem verbas próprias. Seu foco é capilarizar a discussão do tema aborto sob o prisma da Saúde Pública e retirá-lo da esfera do crime.19

A partir da inserção nesse grupo, pude fazer contato com médicos/as membros desta organização ou indicados/as por eles/as. O primeiro médico que conversei sobre a pesquisa foi o próprio Dr. Thomaz Gollop, com o objetivo de conseguir o consentimento para participar das reuniões do GEA. Para fins de participação como entrevistado/a, conversei inicialmente, logo ao final da primeira reunião, com o Dr. Cristião Rosas, que solicitamente aceitou conceder uma entrevista e indicou o Dr. Osmar Colás como um possível colaborador, que posteriormente também consentiu participar da pesquisa. Em outras

reuniões, expliquei a pesquisa ao Dr. Jefferson Drezett e voltei a conversar com o Dr. Thomas Gollop, desta vez com o intuito de tê-lo como informante do estudo, ambos aceitaram o convite.

Encontrei algumas dificuldades em contatar mulheres médicas. Entre os membros do GEA não havia nenhuma que trabalhasse em serviços de aborto legal. Conversei, informalmente, com alguns dos médicos entrevistados sobre a presença de mulheres médicas nos serviços de aborto e eles afirmaram serem os homens maioria. Então, solicitei que me indicasse o contato de médicas que eles sabiam trabalharem em tais serviços. O Dr. Jefferson Drezett intermediou o contato com duas médicas do serviço de aborto legal do Hospital Pérola Byington e apenas uma delas, Drª Joselene Breda, aceitou conceder a entrevista. As outras médicas indicadas pelos demais entrevistados não tinham disponibilidade de horário ou não foi possível realizar o contato. Obtive, assim, cinco entrevistas, sendo quatro com médicos e apenas uma com médica.

Todas as entrevistas com os/as médicos/as foram guiadas por um roteiro que procurou estimulá-los/as a falar sobre concepções, experiências e reflexões sobre risco na gestação e seus efeitos na indicação do aborto por risco de vida da gestante. Consideramos que com a quantidade de entrevistas realizadas dispúnhamos de material suficientemente rico para consecução de uma análise discursiva para os propósitos que traçamos, mas sem, obviamente, pretender esgotar as interpretações possíveis do tema.

Contexto de produção das entrevistas

Antes de iniciar as entrevistas, solicitamos que cada o/a entrevistado/a lesse a Carta de Apresentação da Pesquisa e o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido20, e em seguida o assinasse, caso houvesse acordo com os termos do estudo. Evidentemente, o anonimato é garantido por tal termo, por isso perguntamos verbalmente sobre esse item, questionando os/as informantes sobre como gostariam de serem tratados quando mencionados na tese, se por iniciais ou por nomes fictícios. Entretanto, todos os/as entrevistados/as manifestaram o desejo de terem seus nomes publicados na tese da forma como o assinam, seja por considerarem que seus discursos já são públicos, ou por desejarem que seus argumentos se tornem visíveis, o que foi respeitado, conforme postura ética assumida nesta pesquisa.

Nos momentos anteriores ao início das entrevistas aproveitávamos para explicar mais detalhadamente os objetivos da pesquisa e relatar que ela derivou do interesse

decorrente da pesquisa de Mestrado21, sobre aborto de fetos anencefálicos. Essa conversa inicial, sobre gestação de anencéfalos, direcionou, não propositalmente, o enfoque que dois dos médicos entrevistados deram ao seu discurso. Tanto o Dr. Cristião como o Dr. Thomaz, incorporaram em suas narrativas a discussão sobre o caso específico da anencefalia fetal.

Outro fato que reverberou nas falas de alguns dos informantes foi um episódio de gestação de risco, decorrente de violência sexual, que repercutiu na mídia nacional durante o primeiro trimestre de 2009. Tratava-se do caso de uma criança de nove anos de idade, do interior de Pernambuco, violentada sexualmente pelo padrasto, e que ficou grávida de gêmeos. Ao realizar o aborto legal -, pois o caso se enquadrava nos dois permissivos do Código Penal, estupro e risco para a gestante -, os médicos responsáveis pelo procedimento foram publicamente excomungados pelo Arcebispo de Olinda e Recife, Dom José Cardoso Sobrinho, que se posicionou contra a realização do aborto por considerá-lo homicídio, atitude que gerou uma forte comoção pública. Na ocasião da realização das entrevistas o episódio era atual e pauta de muitas das discussões que envolviam a descriminalização do aborto. Os médicos Dr. Cristião e Dr. Thomaz abordaram “o aborto da menina de Alagoinhas22”, como era referido na mídia, em seus relatos.

Conhecendo os participantes da pesquisa

Cristião Fernando Rosas

Dr. Cristião Rosas foi o primeiro dos quatro homens médicos entrevistados. É ginecologista e obstetra, membro do GEA, médico do serviço de aborto legal da Maternidade Escola de Vila Nova Cachoeirinha, em São Paulo, e também atua em consultório particular. Trabalhou no Hospital Artur Ribeiro De Saboya (Jabaquara), pioneiro na implantação do serviço de aborto legal, episódio da sua biografia que influenciou a sua atuação no campo profissional. Este informante me recebeu no seu consultório particular, por volta das 18h30min do dia 19 de março de 2009. A entrevista durou 48min 36s. Simpático e solicito, a forma acolhedora com que me recebeu deixou-me à vontade para iniciar a conversa pois eu estava um tanto apreensiva com a idéia de entrevistar alguém, tanto pela minha pouca experiência com o método, como pelas minhas características

21 RIBEIRO, F.R.G. Os sentidos da vida na controvérsia moral sobre abortamento induzido: o caso da anencefalia. Dissertação (Mestrado em Psicologia Social). PUC-SP: São Paulo, 2008.

22 Algumas matérias sobre o tema podem ser encontradas em:

Folha de S. Paulo - Excomunhão: Arcebispo de PE é homenageado por "defesa da vida" - 16/04/2009. Disponível: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidian/ff1604200922.htm. Acesso em maio de 2009.

Folha de S. Paulo - Mãe de menina que abortou é indiciada - 28/03/2009. Disponível em http://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidian/ff2803200927.htm. Acesso em maio de 2009.

pessoais que denunciavam timidez e embaraço. Iniciei a entrevista falando sobre o meu interesse pelo tema e relatando a minha pesquisa de Mestrado, cujo tema foi aborto por anencefalia fetal, o que ocasionalmente fez com que o entrevistado mencionasse casos que envolvesse a gestação de anencéfalos durante a entrevista.

Senti o ambiente onde a entrevista foi realizada como calmo e reservado. Tivemos algumas interferências quando o telefone fixo do consultório tocou, fato que não chegou a interferir no fluxo da entrevista, pois o Dr. Cristião não atendeu a nenhuma das chamadas. O diálogo foi dinâmico e interativo, eu fiquei bastante satisfeita quando anunciei o final da entrevista ao meu interlocutor e ele referiu: As perguntas eram essas? Mas você me

perguntou uma coisa só. Interpretei essa manifestação como um sinal de que a entrevista foi

conduzida de modo espontâneo, e que o fluxo da fala não tinha sido interrompido à medida que eu apresentava novos tópicos.

Thomaz Rafael Gollop

Dr. Thomaz foi o segundo entrevistado. Médico ginecologista e obstetra, coordenador do GEA, atua com ênfase em medicina fetal e genética médica. Este informante possui uma clínica particular, atua em hospitais particulares e é professor associado da Faculdade de Medicina de Jundiaí. Apesar de não trabalhar em serviços de aborto legal de referencia, o consideramos um informante importante, pois se apresenta politicamente como um dos porta-vozes da posição médica favorável à legalização do aborto, com atividades políticas relevantes para a inserção do tema em foros de discussão no âmbito civil e jurídico.

O entrevistado me recebeu solicitamente em sua clínica particular no final da tarde do dia 31 de março de 2009. A entrevista teve uma duração média de 44min 50s. Essa entrevista teve duas peculiaridades, a primeira delas é que o Dr. Thomaz foi o representante da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) na audiência pública do Supremo Tribunal Federal (STF) sobre a autorização da antecipação terapêutica do parto em casos de anencefalia fetal, em agosto de 2008, fato que associado à minha fala sobre a pesquisa de Mestrado, suscitou o direcionamento da entrevista para o tema específico do aborto por anomalia fetal. A outra particularidade é que a entrevista foi interrompida três vezes para que o Dr. Thomaz atendesse telefonemas, o que pode ter prejudicado o fluxo narrativo durante o diálogo. Entretanto, o material discursivo assim produzido foi útil para os fins de análise aqui propostos, uma vez que apresenta conteúdos sobre a constituição cotidiana da noção de risco na gestação, como veremos adiante.

Outro detalhe peculiar nessa entrevista com o Dr. Thomaz foi o fato de eu lhe parecer jovem ter sido incluído na conversa. Por algumas vezes, durante os seus relatos, ele questionava sobre a minha idade ou ano em que nasci para situar historicamente os fatos narrados: (...) e eu na década de 1970, você nasceu em que ano?.

Jefferson Drezett

O terceiro entrevistado foi o Dr. Jefferson Drezett, ginecologista e obstetra, membro do GEA, que atua no serviço de aborto legal do Hospital Pérola Byington. No relato autobiográfico sobre a trajetória profissional que o levou a trabalhar com o tema da descriminalização do aborto ele enfocou a importância de seus professores e mestres

O Dr. Jefferson me recebeu solicita e atenciosamente em uma sala do Hospital Pérola Byington no final da manhã do dia 1º de abril de 2009. A entrevista durou 37min 27s, teve a implicação de ter sido realizada no local de trabalho do entrevistado, pois, inicialmente, este me pareceu com um pouco de pressa, e tinha me alertado que precisaria dar alta a algumas pacientes, mas à medida que a conversa fluía senti o informante mais à vontade e a entrevista fluiu com ricos relatos autobiográficos e de casos gestação de risco

Osmar Ribeiro Colás

Colega de trabalho do Dr. Cristião Rosas na Maternidade Escola de Vila Nova Cachoeirinha, o Dr. Osmar foi o quarto entrevistado. Tem uma longa carreira profissional na

área de ginecologista e obstetrícia e assim como os entrevistados anteriores se posiciona politicamente a favor do livre direito de escolha da mulher pelo aborto. Seu relato foi focado nas experiências de atendimento às mulheres com gestação de risco e, diferente entrevistados anteriores, não se deteve em aspectos autobiográficos para justificar a sua atuação no campo da assistência ao aborto legal.

O Dr. Osmar me recebeu no final da manhã do dia 12 de maio de 2009, em sua sala na Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP), na Escola Paulista de Medicina. A entrevista durou 40min 46s, sem interferências e em ambiente tranqüilo. O entrevistado foi bastante solicito e parecia satisfeito em poder contribuir com a pesquisa. Sua explanação sobre o tema teve um caráter didático, com muitas analogias e metáforas.

A única mulher médica entrevistada foi a Drª Joselene Breda, colega de trabalho do Dr. Jefferson no serviço de aborto legal do Hospital Pérola Byington é especialista em ginecologia e obstetrícia.

A Drª Joselene me recebeu gentilmente no seu consultório particular no final da tarde do dia 17 de junho de 2009. A entrevista durou 43min 45s, fomos interrompidas apenas por sua atendente que nos trouxe café e água, episódio que não interferiu na dinâmica da entrevista, pois esta se manteve focada no que estava sendo relatado.

Durante esta entrevista eu aproveite para questionar a informante sobre como ela sentia as diferenças de gênero no serviço da assistência ao aborto legal; como era para ela, sendo mulher, realizar abortos. A médica me respondeu fazendo uma reflexão sobre a sua vivência e a experiência de suas colegas nesse serviço, como veremos mais adiante.