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Na construção deste argumento é o perfil de risco do feto que está em questão. Do mesmo modo que no risco clínico associado à patologia da gestante, o risco é incorporado ao processo de identificação da(s) doença(s) que o feto apresenta.

Proposição: Doenças manifestadas pelo feto não indicam, de forma direta, risco para a gestante. O risco decorrente de patologias fetais, sobretudo da anencefalia26, é um risco secundário, decorrente da situação clínica do feto e o risco para a gestante constitui-se retoricamente, como um modo de defender o direito de não levar a gestação a termo. Ou seja, os elementos da caracterização do risco para a gestante de um feto portador de alguma patologia são apresentados de forma retórica para o convencimento de que, mesmo sendo o feto que esteja doente, é a gestante que corre risco. O uso retórico do risco para a gestante nestes casos justifica-se pela não legalização do aborto em casos de patologias fetais.

Esta proposição é apresentada a partir de relatos de casos clínicos que exemplificam a identificação e a análise do risco nos casos de patologia fetal:

(...) por exemplo, você faz um exame morfológico no primeiro trimestre de gestação, pronto, deu alguma alteração, o morfológico não invalida, um ultra-som, deu uma alteração, então você parte para o segundo passo, você informa para paciente <<olha, a gente tem parâmetros que são avaliados * nos exames, um dos parâmetros veio muito diferente daquele que é normal, o seu bebê pode ser anormal, porém, diante dessa alteração nós temos

uma segunda possibilidade>> <<qual é doutora?>> <<Fazer um exame invasivo, onde a gente vai colher a célula da tua * da loja placentária e aí nos vamos investigar o cariótipo desse bebê para ver se ele tem problema ou não>>. E aí ela vai lá, faz e traz o resultado, por exemplo, de uma síndrome que é incompatível com a vida, você está entendendo? Legalmente ela não pode interromper essa gestação, porque o risco é fetal. Então, legalmente ela tem que continuar com essa gestação, mesmo sabendo que essa gestação não vai resultar num bebê normal e que vá continuar vivo, porque tem patologias que não são * mas a lei não permite que se discuta a possibilidade do aborto, entendeu? (Joselene Breda).

A contestação de que a patologia do feto não justificaria a interrupção da gestação por risco de vida da gestante é apresentada como exceção à premissa da defesa argumentativa que considera o quadro de patologia do feto como um quadro clínico de risco para a gestante. A argumentação organiza e nomeia os atores sociais que divergem da premissa que está sendo apresentada. Essa divergência é entendida como um desdobramento da posição contrária ao aborto:

26 A anencefalia é um distúrbio de fechamento do tubo neural diagnosticável nas primeiras semanas de

gestação. Por diversas razões, o tubo neural do feto não se fecha, deixando o cérebro exposto (DINIZ, 2007). O líquido amniótico gradativamente dissolve a massa encefálica, impedindo o desenvolvimento dos hemisférios

Alguns detratores dessa possibilidade, principalmente a Igreja [católica], que, aliás, só a Igreja, não existe mais nenhuma outra entidade que não a Igreja, ou que não as entidades que estejam ligadas a Igreja, que queiram justificar, que sejam contra essa possibilidade de interrupção. Existem médicos, por exemplo, que são contra o aborto, por princípios pessoais, não ligados à religião, porque eles são contra e acabou. Acham que a mulher deve ter o filho e pronto, acabou e tal. Tudo bem! Talvez uma falta de vivencia com esse tipo de paciente, mas a Igreja, com certeza, está ligada nessa situação do risco de vida pelo anencéfalo, e quais seriam os dois argumentos que a Igreja quer quebrar para poder impedir essas autorizações? (Osmar Colás).

A contestação também é apresentada contrapondo as evidências de possibilidade de vida de fetos anencefálicos, oferecida pelos atores de posição contrária à tese do risco para a gestante nestes casos:

O primeiro seria ir contra o fato de que o anencéfalo tenha chance. E você já viu dentro do seu estudo, com certeza, alguns casos, um ou outro, muito raro, de diagnóstico de anencéfalo que foi feito e depois o neném não morreu e ainda durou dois anos, durou dois anos e morreu do mesmo jeito.

Aí eles falam << está vendo? O neném nasceu e ainda durou dois anos>> Então, você pode imaginar, naqueles dois anos como é que foi a vida daquele casal. Mas eles ainda querem dizer que pode haver esse erro de diagnóstico. Poder pode, mas cada dia é mais difícil, hoje em dia os aparelhos de ultra-som são cada vez melhores e é mais difícil ter esse risco. Mas ainda poderia, então talvez, a anencefalia não seria tão completa assim, podia ser um anencéfalo que tivesse uma partezinha do cérebro, que permitisse que aquele neném vivesse, sei lá, um ano, dois anos. Isso não é vida. Mas para eles é. E o segundo argumento que eles querem quebrar é o aumento de risco materno da gravidez, de complicações, da mulher que tem mais atonia, que tem mais hemorragia, outra mais descolamento de placenta, tem mais risco de eclampsia, tem mais transfusão uterina. Tudo isso é fato, é estatística, aumenta o risco relativo disso tudo. (Osmar Colás).

Uso de dados:

1) As pesquisas científicas atestam que as gestações de fetos com malformação, como a anencefalia, trazem risco para a gestante.

As informações científicas são usadas para impor os fatos e as evidencias que atestam o risco para a gestante em caso de anencefalia:

(...) o que existe de estudos em relação ao risco na anencefalia é * 50% delas cursam com polidraminio, que é uma patologia que de fato traz consequências para o prognóstico e a forma como evoluciona essa gravidez em termos de atribulações de complicações, ruptura de bolsa, descolamento de placenta. Outra questão em relação a essa consequência

da hiperdistensão do útero são as síndromes hipertensivas, a doença hipertensiva da gravidez que é muito mais prevalente na anencefalia. (Cristião Rosas).

2) Relatos de casos clínicos que evidenciam o drama vivido por mulheres com gestação de fetos com alguma patologia grave também são usados como dados. Na construção do argumento, há uma preocupação em diferenciar o risco para o feto do risco para a gestante e da participação da gestante na avaliação deste risco:

Por exemplo, eu tive um caso de uma boliviana, uma paciente, que o bebê estava em sofrimento fetal grave, precisava fazer uma cesárea e ela, * da cultura indígena dela da Bolívia, não queria que fizesse cesárea nenhuma << no, no, no voy a hacer cesariano>> E aí? Como? Você vai amarrar, algemar, botar ela na mesa, fazer uma anestesia para fazer uma cesárea nessa mulher? Olha o embaraço, e aí não é uma questão de risco da mãe, mas é de risco do bebê. (Cristião Rosas).

3) A evolução clínica do quadro de gestação de fetos anencefálicos é prototípica dos efeitos nocivos à saúde e à vida da gestante em função da patologia do feto.

Esse dado é apresentado na construção retórica das conseqüências da anencefalia no corpo da mulher:

E uma gravidez com anencefalia, por exemplo. * A anencefalia por si só, o fato de o feto ser anencéfalo, significa uma gravidez anormal; essa gravidez anormal é acompanhada de um evoluir de uma gravidez onde, de complicações durante a evolução da gravidez leva, acontece, onde uma gravidez normal não teria. Por exemplo, nos sabemos que a paciente com anencefalia, a anencefalia atrai a pré-eclampsia, que é uma síndrome hipertensiva, que é a primeira causa de morte materna no mundo; ou seja, a anencefalia aumenta esse risco, nós sabemos que a anencefalia aumenta o risco de polidraminio, que é uma hiper-extensão uterina, e o polidraminio aumenta o risco de ruptura uterina, de descolamento prematuro de placenta, de atonia uterina. Então, todas essas complicações gravídicas aumentam o risco da mulher. Então, foi baseado nas complicações da gravidez do anencéfalo que se interrompe a gestação, já que o anencéfalo não tem prognóstico. (Osmar Colás).

4) A história das autorizações judiciais para aborto de fetos anencefálicos.

Os dados históricos sobre os primeiros alvarás judiciais que autorizaram a interrupção de fetos anencefálicos são uados para organizar a retórica que justifica o

permissivo legal do aborto por anencefalia como sendo enquadrado na não-criminalização do aborto por risco de vida da gestante:

(...) essa história dos riscos na anencefalia, ela tem um princípio. No final dos anos 1980 e no começo dos anos 1990, quando foram dados os primeiros alvarás judiciários para interrupção de gravidez, muitos juízes faziam uma analogia entre a solicitação do alvará na anencefalia como uma abertura por risco materno que, na verdade, é uma analogia inadequada. Porque * na anencefalia o risco pode existir, mas ele não é sistemático (Thomaz Gollop).

5) A legislação sobre o aborto voluntário.

O Código Penal é usado como fonte de informação para a possibilidade de interpretação da gestação de anencéfalo como gestação de risco:

Agora, eu acho que seria interessante você colocar dá onde surgiu esse foco no risco materno. E surgiu por conta de muitos juízes que se apoiavam no Código Penal vigente para dá os alvarás. Isso é completamente furado, porque risco de vida materna, esse então, é completamente teórico. Está bem, a mulher pode ter uma atonia, pode uma * mas isso tem em qualquer gravidez. (Thomaz Gollop).

Garantia: A morte inevitável do feto anencefálico justifica o aborto por risco de vida da gestante.

Esta garantia é usada para dar legitimidade aos dados apresentados: todos eles indicam que o feto anencefálico vai morrer em algum momento, seja dentro ou fora do útero materno:

(...) da percepção geral que os médicos têm também, que é do risco fetal, esse feto, além de ser inviável, extra-uterina, depois do nascimento, a maioria deles morre intra-útero, 25%, mas eles têm deformidades orgânicas, órgãos com defeitos, malformações importante cardíaca, de suprarenal, de uma série de sistemas que até do ponto de vista para viabilizar um transplante depois desse bebê para um outro bebê fica difícil, porque são * órgãos com gênese muito complicada, muito fraca, muito defeituosa. (Cristião Rosas).

Apoio: O feto anencefálico inevitavelmente vai morrer, resta-se salvaguardar a vida e a saúde da gestante. O apoio à proposição é apresentado afirmando-se que a vida do feto não está mais em questão, já que a morte é premente:

(...) quando eu vejo uma mãe de feto anencéfalo eu logo vejo a questão do risco para mãe, não estou nem considerando mais esse feto. (Cristião Rosas).

Embora os riscos para a gestante sejam apresentados a partir de uma construção argumentativa fundada em uma retórica de convencimento, de defesa da tese de que a anencefalia do feto não levaria à morte da gestante, mas agravaria seu estado de saúde, os riscos para a vida da gestante são enfaticamente presentificados:

É * eles não são desprezíveis [os riscos], a mulher pode ter polidraminio, a mulher pode ter atonia do útero, ela pode ter dificuldade, e com freqüência tem, na liberação dos ombros, enfim, tem uma série de coisas que podem acontecer, mas o cerne da questão é * e eu sublinhei isso muito na minha fala, o cerne da questão é, primeiro, o anencéfalo é um natimorto cerebral, segundo, manter a gravidez tem riscos, mas eles não são sistemáticos. (Thomaz Gollop).

Quadro IV - Argumento III: O risco clínico na gestação associado à patologia do feto

Proposição Sustentação

Doenças manifestadas pelo feto não indicam, de forma direta, risco para a gestante. O risco decorrente de patologias fetais é um risco secundário, decorrente da situação clínica do feto e o risco para a gestante constitui-se retoricamente, como um modo de defender o direito de não levar a gestação a termo.

Dados 1) As pesquisas científicas atestam que as gestações de fetos com má formação trazem risco para a gestante.

2) Relatos de casos clínicos que evidenciam o drama vivido por mulheres com gestação de fetos com alguma patologia grave também são usados como dados. 3) A evolução clínica do quadro de gestação de fetos anencefálicos é prototípica dos efeitos nocivos a saúde e a vida da gestante em função da patologia do feto. 4) A história das autorizações judiciais para aborto de fetos anencefálicos.

5) A legislação sobre o aborto voluntário.

Garantia A morte inevitável do feto anencefálico justifica o aborto por risco de vida da gestante.

Apoio O feto anencefálico inevitavelmente vai morrer, resta-se salvaguardar a vida e a saúde da gestante.