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Risco na sociedade contemporânea: o contexto da Saúde

2.4. A “molecularização” dos riscos

Com o avanço das técnicas da Biologia Molecular, em geral, e das manipulações genéticas, em particular, o campo dos conhecimentos em saúde tem passado por profundas transformações (CASTIEL, 1994). Chega-se a postular, inclusive, a emergência de uma 'nova genética', definida como "um corpo de conhecimentos e procedimentos baseados na tecnologia do ADN recombinante que cria informação sobre os gens que os indivíduos e as famílias portam" (RICHARDS, 1993, p. 567).

Expande-se, também, o conhecimento sobre as próprias doenças genéticas. É possível, mediante o uso de marcadores específicos, a testagem preditiva para determinar os portadores de genes defeituosos, tanto dominantes como recessivos, responsáveis por tais doenças, e também por enfermidades crônico-degenerativas, como alguns tipos de câncer. Além disso, já se começa a cogitar a possibilidade de, mediante terapêuticas das células da linha germinal (germ-line therapy), aplicarem-se vacinações genéticas nas futuras

crianças para evitar enfermidades crônicas não-transmissíveis, como câncer, doença coronariana e assim por diante (TANNSJÕ, 1993).

Dentro deste quadro, tem recebido destaque dos meios de comunicação de massa os avanços da genética molecular na detecção de doenças, em especial moléstias cardiovasculares e neoplasias. Nesse sentido, em todas estas circunstâncias, destaca-se o conceito de risco. Assim, temos doenças cujas determinações, sejam genéticas, sejam epigenéticas16 são bem demarcadas. Nestes casos, o modelo de risco desenvolvido pela Epidemiologia moderna alcançaria alto grau de eficácia: o fato de determinados indivíduos portarem determinados genes ou receberem-nos do pai ou da mãe delimita com precisão satisfatória a probabilidade de desenvolverem tal ou qual enfermidade. Isto é, há condições de fechamento do sistema em jogo que permite a aplicação bem-sucedida do referido modelo (CASTIEL, 1996).

Há outras doenças cujas configurações genéticas em termos moleculares não admitem uma clara identificação — é o caso das desordens poligênicas ou naquelas em que as interações socioambientais tenham peso. Aqui, as relações de risco podem não ser percebidas com os mesmos graus satisfatórios de precisão. Ainda assim, tem havido grande produção de trabalhos que procuram estabelecer relações entre exposições-agravos, independentemente das contingências de fechamento (e previsibilidade) dos fenômenos (CASTIEL, 1996).

Entretanto, é indiscutível a importância dos avanços das técnicas da Biologia molecular na apreensão dos elementos genéticos e na etiopatogenia de muitas enfermidades e distúrbios. Externamente à produção científica das afirmações de risco baseadas na genética, é importante, como foi mencionado, levar em conta os discursos

sociais relativos à idéia de hereditariedade e como esta pode ser responsabilizada pela gênese e desencadeamento de um grande número de condições e agravos à saúde. A importância deste aspecto se deve ao fato de estar relacionada a padrões de conduta que conduzam a situações tanto de exposição como de proteção (CASTIEL, 1996).

Para Castiel (1996), risco é mais do que um conceito interdisciplinar: precisamos nos preparar para cada vez mais compreendê-lo e construí-lo como um conceito indisciplinado. Almeida-Filho (2007) identificou e avaliou os pressupostos filosóficos das seguintes formas de apresentação do conceito: a) “risco” como perigo latente ou oculto no discurso social comum; b) “risco individual” como conceito da Clínica; c) “risco populacional” como conceito epidemiológico senso estrito; d) “risco rstrutural”, nos campos da Saúde Ambiental/Ocupacional.

Considerando a necessidade de atualização do conceito de risco e a incorporação da dimensão contingente dos processos de ocorrência de problemas de saúde em populações humanas, Almeida-Filho (2007) propõe, ainda, incorporar mais uma definição à lista dos conceitos de risco relacionados acima: e) “risco contingencial”, operador do recém- constituído campo de práticas da Promoção da Saúde.

A idéia de um campo geral de práticas chamado de Promoção da Saúde, contendo tanto a Prevenção quanto a Proteção e a Promoção (senso estrito) da saúde individual e coletiva, supõe um repertório social de ações preventivas de morbidade (riscos, doenças etc.), protetoras e fomentadoras da salubridade, que de certo modo contribui para a redução dos sofrimentos causados por problemas de saúde-doença na comunidade. Isso determina uma integração teórica e filosófica da rede de conceitos correlatos à saúde (vida, risco, doença, cuidado) ao conjunto de práticas discursivas e operacionais dos novos campos de saberes e de práticas que cada vez com mais intensidade e freqüência se formam em torno do objeto Saúde. Com esse objetivo, os conceitos de Risco e as práticas que lhe correspondem no campo da Saúde podem ser reunidos em três grupos (ALMEIDA-FILHO, 2007):

1. risco como indicador de causalidade (ou resíduo da probabilidade). Trata-se de

reconhecer e reafirmar sua base indutiva e freqüentista. Esse conceito particular de risco subsidia modelos de prevenção de doenças ou eventos mórbidos, com as seguintes variantes: (a) modelos de prevenção individual (conceito clínico de risco); (b) modelos de prevenção populacional.

2. risco como perigo estruturado. Tal conceito subsidia largamente modelos de intervenção nos campos da Saúde Ambiental e Ocupacional (OPAS, 1976). Nesse caso, é preciso explorar sua base dedutiva, descritiva e estrutural.

3. risco como emergência. Trata-se, nesse caso, de explicitar a base filosófica da contingência, articulada como processos de emergência em modelos de complexidade. Este conceito subsidia modelos de: a) Promoção da Saúde; b) Vigilância em Saúde.

De forma simplificada, podemos dizer que a constituição do conceito de risco epidemiológico e o método incorporado pela pesquisa médica acabam por definir estilos de vida, produzindo significados que orientam o comportamento; articula-se, assim, a uma forma de vigilância do indivíduo – pulverizada, internalizada e menos visível – traduzida no autocontrole e implementada pelo biopoder.

Reiterando o que já afirmamos anteriormente, a idéia de risco consolidou-se com a modernidade, associada ao pensamento probabilístico e à idéia de cálculo. Uma das características da transição para a modernidade tardia é a revisão contínua a partir de novas informações ou conhecimentos de uma grande parte dos aspectos da vida social. Estas idéias, de certa forma, também estão presentes nas formulações de Bauman (2001). Ele defende o ponto de vista de que há a passagem de uma modernidade denominada “sólida” para uma modernidade “líquida”. Os padrões, códigos e regras ganharam mobilidade e inconstância, ou seja, tornaram- se maleáveis e, à semelhança dos fluidos, não mantém a forma durante muito tempo. Os processos de desregulamentação, de liberalização, de flexibilização das normas, exacerbam – e paradoxalmente também limitam – de forma inédita as opções dos indivíduos e sociedades.

Esse efeito não foi alcançado via ditadura, subordinação ou opressão, mas ocorre, ao contrário, em virtude do “derretimento radical dos grilhões” (BAUMAN, 2001, p. 11) que

limitavam as liberdades individuais. A liquefação dos padrões – que antes garantiam a regularidade e os limites éticos – amplia infinitamente as possibilidades. Esse movimento transfere ao indivíduo a responsabilidade exclusiva pelo seu destino. O que deve ser feito já não está mais definido a priori. Cabe a cada um escolher o que fazer de sua vida. Os

problemas socialmente produzidos agora requerem soluções individuais (LUIZ; COHN, 2006).

São os cálculos epidemiológicos que informam sobre quais são os fatores de risco: a comida gordurosa, as tentações ricas em colesterol, a fumaça de cigarro. Portanto, as informações epidemiológicas comunicam quais são as portas que devem ser obstruídas à entrada da morte. Em termos metafóricos, podemos dizer que a Medicina, apoiada pelo método epidemiológico, é o alquimista que possui a pedra filosofal. Ela sustenta possuir o poder de transformar a incerteza em auto-segurança, é a autoridade que aprova (ou desaprova) a forma como cada indivíduo deve viver, uma forma que constantemente derrete e se transforma em novas formas igualmente líquidas, transitórias (LUIZ; COHN, 2006).

A “era da genética” traz novas mudanças de foco das estratégias regulatórias que vão levar à substituição do discurso sobre grupos de risco pelo das suscetibilidades individuais (ROSE, 2001). Na modalidade de suscetibilidade genética, o risco biomédico torna-se progressivamente individualizado e clínico (M. J. SPINK, 2007a).

A crescente molecularização da saúde, baseada em vigilância continuada de indicadores (clínicos e genéticos) por todos nós, é conseqüência de fatores diversos, entre eles o próprio avanço da tecnologia médica e a tendência neoliberal à minimização das funções do Estado. Mas aponta igualmente para mudanças na forma como o Estado se posiciona perante a saúde: nas palavras de Rose (2001, p. 6), a biopolítica se transforma em bioeconomia:

Hoje, porém, o argumento para o interesse político na saúde da população já não se coloca mais em termos das conseqüências da falta de saúde (unfitness) da população como um todo orgânico para a luta entre nações.

Ao invés disso, é colocado em termos econômicos – os custos da doença (ill-health) em termos de dias perdidos de trabalho ou aumento das

contribuições previdenciárias – ou em termos morais – o imperativo de reduzir as desigualdades em saúde.

Em suma, o Estado perde sua função pastoral– forma de poder voltada ao bem-estar do rebanho como um todo (Cf. FOUCAULT, 1999). Ou melhor, a função pastoral deixa de ser unidirecional (do pastor para o rebanho) para tornar-se relacional (com a conseqüente imposição da comunicação sobre riscos e dos consentimentos informados). Retém a responsabilidade adquirida nos séculos XVIII e XIX pelas condições gerais de saúde da população (controle da qualidade dos alimentos, saneamento, controle das epidemias), mas procura livrar-se das responsabilidades adquiridas no início do século XX, ou seja, as de assegurar os indivíduos diante das doenças e acidentes. Vê-se, portanto, como aponta Rose (2001), uma intensificação das estratégias preventivas, relacionada, por exemplo, com o “estilo de vida”, lado-a-lado ao fortalecimento da indústria de seguros (de vida, de saúde) e das obrigações de cada um de nós pela manutenção da saúde. “Todo cidadão deve agora tornar-se um parceiro ativo na busca da saúde, aceitando sua responsabilidade por assegurar seu bem-estar” (ROSE, 2001, p. 6).