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Vejamos, então, o que nos parece dever ser referido sobre o conteúdo da parte preambular.

1. Nesta primeira parte – que a generalidade dos autores denomina ‘protocolo inicial’179 - é indicada a designação ou título da escritura, bem como a data (art.º 49º, nº 1, a) do C.N.), o lugar e (ou) o cartório notarial, a identificação do notário que a lavra e perante quem comparecem os outorgantes e ainda a identificação destes e de seus eventuais representantes.

2. É dentro do já indicado propósito de que a escritura pública seja um documento dotado da maior credibilidade possível que se insere a necessidade, referida pela lei e pela doutrina, dela ser – de uma forma precisa e indubitável – datada e localizada. Ou seja, é um requisito essencial e liminar da escritura pública que da mesma conste a data precisa em que é outorgada180. A propósito da importância desta menção, poder-se-á

178 Tenho habitualmente referido que os requisitos mencionados nas alíneas a) a d) (inclusive) desse

artigo respeitam à parte preambular, que deve constar no início da escritura, e as das alíneas e) a n) à conclusão, que fica mais bem consignada na parte final, portanto depois da intercalar e dispositiva.

179 Na que é designada como a “versão moderna” cf. A. MORELO, E. FERRARI e A. SORGATO, op. cit., p.

379). Todavia, autores há que consideram que o protocolo inicial compreende a “comparência” e mesmo certos actos que antecedem a escritura, como sejam a solicitação que as partes fazem para que o notário a faça, a autorização deste (idem, passim e GIMÉNEZ-ARNAU, op.e loc.cit.).

180 Cf.

AURELIO CANDIAN, “Documentazione e documento”,in “Enciclopedia del Diritto”, p.581. O Autor diz ainda: “a data é aquele elemento que se insere no documento para fazer constar o lugar e o momento da sua formação”. Note-se ainda que a omissão da data é causa de nulidade do ato notarial (cf. artº 70º-1, a) do C.N.).

80 exemplificar: ”basta pensar na hipótese da sobrevinda incapacidade dos (ou do) sujeitos (…) ou da sobrevinda de uma nova lei”181

Quanto às hipóteses de falsidade deste elemento, dir-se-á que na escritura pública são praticamente impossíveis (aliás, nunca tivemos conhecimento de qualquer caso) e os lapsos de escrita facilmente detetáveis e retificáveis, como adiante se dirá.

A alínea b) do n.º 1 do artigo 46.º do Código do Notariado (C.N.) alude especialmente à “designação do dia mês e ano” e ainda, se “solicitado pelas partes, a hora” – bem como a expressa designação do local (que deve ser pormenorizado) em que a escritura é subscrita.

3. Um dos requisitos da escritura pública a que aludimos é o da verificação que o notário deve fazer quanto à identidade e capacidade dos outorgantes, bem como quanto à suficiência dos seus poderes para o acto.

3.1. Entre as menções que devem constar do texto da escritura, vem indicada na al. c) daquele art.º 46º a identificação dos outorgantes. Dever-se-á dizer que esta menção não é uma referência ‘ligeira’ (no sentido de descuidada, mas também no de abreviada). Pelo contrário, a lei (e a própria ancestral prática notarial) exigem uma identificação completa. Aliás, diríamos, ainda muito mais completa do que aquela que é habitualmente utilizada nos atos judiciais.

É que a lei portuguesa (à semelhança, aliás, de outras legislações também da esfera do ‘notariado latino’) exige que, quanto aos outorgantes pessoas singulares, além de serem feitas as vulgares referências do seu nome completo e da residência, seja outrossim mencionado o estado civil – para o solteiro completado com a indicação de ser maior ou menor e quanto ao casado com a menção do regime matrimonial de bens – e ainda o número de contribuinte e, se o outorgante não for português, a especificação da sua nacionalidade. Acham-se também previstas algumas outras peculiaridades que aqui não importa especificar182.

No que concerne à identificação das pessoas coletivas, diremos que, no tocante às sociedades comerciais, (cuja intervenção é mais habitual) é necessário referir a firma, o tipo societário, o número de matrícula com a indicação da conservatória onde se acha

181 A passagem é também do texto de

AURELIO CANDIAN, citado na nota anterior, p. 582.

182

São, por exemplo os casos da escritura poder basear atos de registo ou do outorgante intervir como representante de outrem (cf. os. art.ºs 46º/1, c), e 47º/1, do C.N.).

81 efetuada, o número de pessoa coletiva, o capital social e a sua realização (ou não) e a sede, havendo ainda outras eventuais menções183.

Em suma: trata-se de uma identificação que irá permitir saber exatamente de quem se trata e, além disso, o que essa identidade pode refletir do ponto de vista jurídico. Como é sabido, quando alguém, por hipótese, transmite ou adquire um bem e é casado no regime de separação ou é divorciado a situação jurídica decorrente dessa sua intervenção é completamente diferente daquela que resultaria se fosse casado em comunhão de bens. Portanto, dir-se-á: contendo o título notarial a aludida “identificação completa”, simplesmente com isso já contribui para a sua própria valia no que concerne à titulação dos atos e contratos.

3.2. Mas, sobre tal identificação ser necessária, ela, contudo, não é suficiente. De facto, é também indispensável que o notário verifique essa identidade. Esta verificação184 destina-se a demonstrar que não há dúvida alguma de que foram realmente aquelas pessoas – e não quaisquer outras – as que compareceram para outorgar ou intervir no acto.

Na realidade, a identificação completa dos outorgantes e das demais pessoas que comparecem terá de constar da escritura e de ser devidamente comprovada185 pelo notário, que fará consignar no documento a forma como fez tal verificação186. Deste modo, a eventual dúvida ou impugnabilidade a respeito dessa efetiva comparência tornar-se-á praticamente impossível.

3.3. Além disso, o notário tem de averiguar a capacidade dos outorgantes. Esta apreciação abrange em primeiro lugar a capacidade de gozo, mas também a capacidade de exercício. Em caso de dúvida, designadamente quanto à questão da

183 Referimo-nos especialmente à indicação do capital não realizado (art.º 171º nº 2 do C.S.C.) e às

hipóteses de a sociedade se encontrar em liquidação.

184 Cf. alíneas c) e d) do art.º 46.º, n.º 1 do C.N.

185 Trata-se de uma “formalidade comum” a todos os instrumentos notariais. É, aliás, matéria que, de há

longa, data está expressamente prevista na lei, tanto entre nós (alíneas c) e d) do art.º 46º, nº 1 do C.N.), como noutros ordenamentos (v.g., art.ºs 23º da Lei Hipotecária espanhola e 157º do seu Regulamento).

186

É admitida, como refere o artº 48º do C.N., a prova documental, bem como o “conhecimento pessoal do notário” e a “declaração de dois abonadores”. No tocante à prova documental, são aceites os documentos legalmente previstos para comprovar a identidade – como o bilhete de identidade, cartão de cidadão, passaporte – ou um “documento equivalente” (caso da carta de condução) se emitido “pela autoridade competente de um dos países da União Europeia”.

82 “sanidade mental”, podem as partes apresentar, ou o notário solicitar, a intervenção de peritos médicos que abonem a requerida aptidão desses outorgantes187.

Para que o notário possa autorizar a outorga do acto tem de fazer “um juízo complexo, apoiado em dados jurídicos, psicológicos e de puro facto, porque, como diz

NUÑEZ LAGOS, esta qualificação constitui uma atividade positiva – e não passiva – do notário”188

e que, não sendo a narração de factos, é sobretudo um juízo de qualificação da legalidade do documento.

3.4. Nas hipóteses de representação – quer legal, quer voluntária - é igualmente indispensável que o notário verifique a qualidade em que intervêm os representantes, bem como a suficiência dos seus poderes, neste caso com a única exceção da representação de filhos menores por seus pais189. No que se refere à representação orgânica - como quando se trata de gerentes ou administradores de pessoas coletivas -, deve tal qualidade ser comprovada, cabendo também ao notário apurar se efetivamente têm os necessários poderes para a prática do acto em causa190

No tocante à representação voluntária, por procurador, para além da prova documental exigida,191 é ainda necessário que seja verificada a capacidade do representante e do representado, bem como a suficiência, legalidade e autenticidade do poder conferido, com especial atenção aos inúmeros condicionalismos que a lei prevê, tais como a necessidade do expresso consentimento no caso do negócio consigo mesmo (ainda que em parte) e outros, incluindo a representação entre cônjuges, e determinadas, menções indispensáveis (v. g. no caso das doações)192.

Não existindo documento que comprove a autorização para a prática do acto, é relativamente frequente que intervenha um “gestor de negócios”, visto que a lei admite a representação sem poderes e, antes de haver ratificação da gestão, apenas considera o acto ineficaz em relação ao gestido e não nulo (art.º 268º, nº 1 do C.C.).

187 Trata-se igualmente de matéria prevista na lei: art.º 67º, nº 4, do C.N. 188 Cf.

GUIMÉNEZ-ARNAU, op. cit., p. 530. A citação feita é de NUÑEZ LAGOS, “Estudios sobre el valor juridico del documento notarial”, p. 90.

189

Como é evidente, não é aqui oportuno pormenorizar essas situações. Esta exceção (que não se aplica ao tutor) é também referida por NETO FERREIRNHA e ZULMIRA NETO (“Manual”, citado, p. 97) 190 Cf. citadas alíneas, bem como a al. e) do artº 46º.

191 No tocante a esta matéria, é manifestamente necessário verificar o conteúdo da procuração, bem

como a suficiência da forma, já que para a celebração de vários actos notariais a lei contém especiais exigências de forma. Ao abordar os instrumentos notariais avulsos retomaremos o assunto.

192 Não sendo oportuno desenvolver aqui cada um destes pontos, devem sempre, como é evidente,

revisitar-se as disposições dos Códigos Civil (entre outras, as dos art.ºs 261º e 262º a 269º) e do Notariado (art.ºs 116º, 150º e 151º) podendo ainda, entre muitos autores, ver-se o que referem NETO FERREIRNHA e ZULMIRA NETO, op. cit., pp. 99-102 e 997-1002; GUIMÉNEZ-ARNAU, op. cit., p. 531.

83 Consequentemente, o notário pode autorizar a prática do acto, embora deva fazer a advertência respetiva193.

3.5. A intervenção de estrangeiros bem como a de surdos e mudos também se acha sujeita a regras próprias cuja observância o notário terá de controlar (art.ºs 65º e 66º do C.N.). É que pode estar em causa, como é bom de ver, a perfeita compreensão, por parte desses outorgantes, do conteúdo da escritura e, por isso, a lei quer assegurar-se de que, também nessas hipóteses, são atribuídos ao notário os meios necessários para verificar essa cabal compreensão.

Quanto aos estrangeiros, a questão dos cuidados na outorga do acto coloca-se apenas quando não compreenderem a língua portuguesa194. Aliás, vai neste sentido a própria redacção da epígrafe do art.º 65º do C.N.

No caso da intervenção de estrangeiros, nenhum problema se coloca se (como diz o nº 3 desse art.º65º) “o notário dominar a língua dos outorgantes a ponto de lhes fazer a tradução verbal do instrumento”. Quando tal não aconteça, podem intervir tantos intérpretes quantos os “que forem necessários” (nº 2).

Se os outorgantes sofrerem de surdez ou mudez, a lei também contém regras (art.º 66º) que permitem assegurar que em todos esses casos são propiciadas ao notário as condições necessárias para a boa compreensão do conteúdo da escritura.

3.6. No que toca a outros eventuais intervenientes – caso dos intérpretes, peritos, tradutores e testemunhas – dever-se-á ainda referir que, para além das hipóteses de incapacidade ou de inabilidade contemplados no artº 68º, nº1, do C.N.), só poderão intervir no acto os que o notário considere idóneose, sendo testemunhas, as que ache dignas de crédito (nºs 3 e 4 do mesmo artigo).

Trata-se de preceitos que obviamente têm em vista assegurar a própria integridade, certeza e validade das declarações, requisitos que entre nós, como em geral no âmbito do notariado latino, se acham sedimentados na prática e na lei.195

Todos estes, que co-subscrevem o documento, são os que o Código denomina “intervenientes acidentais”, sendo certo que as testemunhas – as “instrumentarias”, que

193 Trata-se da advertência prevista no art.º 174º do C.N., de que adiante falaremos.

194 Idêntica regulamentação existe noutros ordenamentos. V.g. o art.º 150º do Regulamento Notarial

espanhol contém, a este propósito, um pormenorizado dispositivo.

84 co-outorgam o acto e as “abonatórias”, que apenas confirmam algum dado196 - também o são. Todavia, como há regras próprias a propósito das mesmas, adiante voltaremos ao assunto.

3.7. Quer, em suma, dizer que na escritura pública a identidade e capacidade dos outorgantes, bem como a idoneidade dos intervenientes, são dados que devem ser sempre certos e inequívocos.

Deste modo, e como resulta do que, sumariamente embora, se disse, a escritura é ‘conformada’ e tem de ser concluída não apenas na presença dos outorgantes, como de outros eventuais intervenientes, nomeadamente daqueles a que fizemos referência.

Com efeito, a validade e segurança do acto, mesmo em todas as referidas hipóteses em que há necessidade da participação desses intervenientes, não pode ser posta em causa, já que o notário verificou e qualificou197 todas as intervenções, em obediência a estritos e rigorosos trâmites e a imperativos preceitos legais.

Apesar da intervenção do interessado poder ser feita através de um outorgante que o represente e, por isso, poder parecer que a completa indicação da procuração devesse ser feita logo na parte inicial da escritura, a verdade é que aí é apenas referido que esse outorgante intervém na qualidade de procurador, visto que a menção completa do documento de procuração (prevista na al. d) do indicado art.º 46º) é (evidentemente) exarada na parte final, conjuntamente com os outros documentos.