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1. A doutrina trata habitualmente a matéria referente aos documentos a propósito do debate processual (portanto, adjetivo) sobre a prova e não enquanto títulos que visam consignar e indicar os dados de um ato ou de um negócio jurídico ou seja, que o pretendem titular, com os necessários elementos previstos no direito civil.

Sobre ser importante, dir-se-ia até que fundamental, a questão da prova - mormente na perspetiva de quem tem de a valorar -, não é tanto esse o campo em que nos colocamos, mas sim o do documentador que deve elaborar um título válido, que refira com precisão e sem ambiguidades o que realmente se pretende declarar ou convencionar.

Ora, sob este ângulo, aliás entre nós pouco debatido, e no tocante à comparação entre o documento autêntico e o documento particular autenticado, verifica-se que há uma diferença, que pensemos ser radical, entre os aspetos probatório e o documental, a que aludimos. É que, como bem se sabe, estes últimos “têm a força probatória dos documentos autênticos” (art.º 377º do C.C.), ao passo que documentalmente são muito diferentes. Os primeiros – e, é claro, reportamo-nos apenas aos notariais – são elaborados, ‘confecionados’ pelo notário, que ausculta a vontade das partes e a traduz, com rigor jurídico e semântico, por forma a que o declarado no texto do documento corresponda à vontade real dos declarantes, ao passo que o autenticado é particular64,

63 Vide, por todos,

GUIMÉNEZ-ARNAU, op.cit., pp. 843-887. Entre nós, tomei conhecimento de que, já há alguns anos, a um notário foi pedido que fosse a determinado local certificar a autenticidade de uma fotografia, tirada na sua presença, em determinada data, a uma obra que estava a ser realizada (e ao que parece ilegalmente), o que o notário fez.

64 Diz

ALBERTO DOS REIS que o Código Civil (de 1867) classificava os documentos em autênticos e particulares (artº 2421º) e o C.P.C. “acrescentou a estas espécies uma terceira: os documentos autenticados”. Todavia, os documentos autenticados “entram no grupo dos documentos particulares”. E

49 ou seja, é feito ‘por quem quer’, com ou sem rigor jurídico, podendo ou não traduzir fielmente o que no fundo é querido e apenas é posteriormente autenticado.

É certo que esta autenticação consiste numa confirmação dos declarantes de que conhecem o conteúdo do documento – que lhe é lido ou que dizem que já leram – e que ele exprime a sua vontade. Contudo, como é manifesto, uma coisa é essa afirmação sobre algo que já está feito, - é pré-preparado - e que apenas importa confirmar, e outra muito diferente é auscultar, averiguar, indagar, o que é realmente querido, o ‘objetivo’ (contratual ou outro) que se quer alcançar e consignar e, em função disso, redigir o documento também da melhor forma, não equivocamente, e de modo a que bem se enquadre na fatispecie legalmente prevista.

É em face de tudo isso e utilizando as expressões juridicamente apropriadas, mormente para que futuramente não possam dar lugar a interpretações erróneas, que tem de ser feita a redação do documento autêntico, como se dirá a propósito da escritura pública, que é, propriamente e no rigor dos conceitos, o “acto notarial”, que também se designa (e pensamos que corretamente) como “instrumento público notarial”65

.

Nada disso existe no documento apenas autenticado, visto que quem o vai autenticar é, ao menos teoricamente, alheio às questões da redação e do rigor semântico, sintático e jurídico das palavras e frases utilizadas. E dizemos que é alheio num duplo sentido: primeiro porque ao efetuar a autenticação – simplesmente a autenticação - não foi, nem está, incumbido de escrever o conteúdo do documento, de o ‘lavrar’; depois porque – salvo no caso das ilegalidades - não fica responsável por tal conteúdo (visto que apenas lhe cabe certificar que as partes o ‘confirmaram’) ao contrário do que acontece com o instrumento público notarial em que, como melhor veremos, o notário se corresponsabiliza com as partes pelo que ele contém, pelas eventuais ambiguidades e/ou prejuízos que tais erros e deficiências possam causar.

acrescenta: “só constituem um tipo diferente quando se combina o critério da origem (autor) com o critério da eficácia probatória. O documento autenticado é particular em atenção à sua origem, mas tem a mesma força probatória que o documento autêntico” (cf. “Código de Processo Civil Anotado”, III, p. 356).

65 De facto, cremos que estes conceitos se equivalem, muito embora entre nós, por vezes, apareçam

confundidos, como adiante melhor se procurará explicitar. Todavia, cremos que assim não sucede na generalidade dos países do “notariado latino”, mesmo na lei (v.g. art.º 147º do Regulamento Notarial espanhol). O Código Civil italiano faz referência ao “acto público” no art.º 2699º a propósito das provas. Pela doutrina, vide A. MORELLO, E. FERRARI e A. SORGATO, op. cit., pp. 223-273; SANAHUJA Y SOLER, op. cit., pp. 469-486; ESCOBAR DE LA RIVA, op. cit., pp.252-256; VALKENEER, op. cit.,

50 Na verdade, o ‘acto notarial’66 não é apenas o que goza de fé pública. É também o que é lavrado - tem de ser lavrado – ‘de princípio ao fim’, competente e responsavelmente, por quem é um profissional da documentação, e da documentação autêntica, que é obrigado a conhecer os termos juridicamente apropriados, as implicações dos atos que autoriza, as diligências que devem ser antecipada e posteriormente feitas e as autorizações que devem ser obtidas – enfim, um conjunto de procedimentos que muitas vezes são esquecidos e ignorados por parte de outros profissionais (não falando sequer de funcionários dos CTT, de mediadores e afins [!], mas incluindo os juristas: v.g. advogados e solicitadores) cuja especialização, contudo, não é essa.

A indicada diferença radical entre o “instrumento público” e a mera autenticação do documento particular é também formalmente percetível por qualquer pessoa minimente atenta. Na verdade, mesmo nos cartórios notariais, procedia-se à autenticação e aos reconhecimentos apondo o simples ‘carimbo’ do termo de autenticação. Atualmente, tal prática está um pouco ultrapassada dada a facilidade de arquivo em computador de documentos-tipo que basta imprimir, mas a realidade subsiste e é, afinal, a mesma: trata-se de documento que pode não ser “confecionado” por quem o autentica (como frequentemente ocorre) e que, depois de ver que não é ilegal, quase se limita a apor-lhe um carimbo ou a imprimir um papel a ele equivalente.

É claro que quando é um jurista que vai autenticar um documento particular – notário, advogado ou solicitador – diríamos ainda que nos parece ser da sua elementar

obrigação deontológica ‘não deixar passar’, sem mais, palavras, frases ou conceitos

equívocos que possam ser causadores de futuros conflitos, devendo recusar-se a lavrar o termo67 enquanto isso não for esclarecido. Mais ainda: no caso do advogado e do solicitador que patrocine apenas uma das partes e o documento não tiver sido redigido com o conhecimento e o consentimento do colega que patrocine a outra, também nos parece indispensável que o termo não seja lavrado antes de obtida essa aquiescência.

66 Tal como, no sentido referido no texto, é designado no seio do ‘notariado latino’, considerando-se

sempre que é o lavrado pelo notário: “acte notarié”, “acto notarial”, “atto notarile”, etc.. Cf. sobre o tema, a bibliografia indicada na nota anterior.

67

Cabe, porém, notar o seguinte: a nossa opinião deve ser entendida mais no sentido de um conselho do que, propriamente, numa rigorosa interpretação da lei. Com efeito, como adiante se dirá, os casos de recusa (art.º 173º, nº 1, do C.N.) são taxativos e a situação que apontamos no texto não caberá, em rigor, em qualquer deles. Contudo, o que o autenticador deve sempre fazer (e isso a lei consente) é aconselhar as partes a adotar outra redação.

51 2. Depois de referir estes pontos, que nos parecem corretos – ou talvez mesmo necessários -, também queremos esclarecer o que acima dissemos sobre o “carimbo” da autenticação e o que realmente pretendemos significar: o conteúdo do documento particular, embora não sendo redigido por um notário ou por outro profissional, como seria desejável, no entanto, para poder ser autenticado por quem quer que o possa fazer, tem sempre de ser examinado, de modo a verificar a sua validade intrínseca. E, se for nulo, não pode ser autenticado. Caso o viesse a ser (violando, assim, uma norma imperativa) quem efetuou a autenticação seria responsável pelos danos que causasse68.

Deste modo, a “autenticação” de um documento só pode ser feita se o seu conteúdo for legalmente admitido e se se mostrarem cumpridas as prescrições imperativas prévias e ainda se a forma utilizada for admitida para o acto em causa.

Começando por referir esta última exigência, devemos recordar que, como a nossa lei consagra, em regra, o princípio da liberdade de forma (art.º 219º do C.C.) 69, a autenticação só não será admitida quando, para aquele caso, não se aplicar o princípio da ‘formalização necessária’70, designadamente se não for legalmente exigido (ou tiver sido convencionado) o documento autêntico71.

Quanto a algumas prescrições imperativas prévias, designadamente de natureza fiscal, elas existem em vários casos, como quando o acto tem por objeto bens imóveis e o contrato é translativo. Assim, como decorre do disposto no art.º 49º do CIMT, não se pode proceder à autenticação desses documentos (nem fazer certos reconhecimentos) se não for apresentado o comprovativo do cumprimento da inerente obrigação fiscal.

Outros imperativos existem, como os que concernem à prova, que deve ser indicada no termo, de terem sido obtidos os licenciamentos municipais e/ou urbanísticos, como é o caso das licenças de construção ou de utilização de prédios

68 Ainda que no tocante à autenticação de documentos não exista disposição que expressamente o refira,

parece que não pode haver dúvida alguma de que assim é, não apenas porque a esta matéria se aplica o C.N. (art.ºs 150º a 152º e 184º) - tal como para os não notários também estabelece o nº 1 do artigo 38º do Dec-Lei nº 76-A/2006, de 29/3 -, como também porque tal obrigação sempre existiria à luz dos princípios gerais (v.g., entre outros, art.ºs 483º e 562º do C.C.). Vide ainda o citado “Código do Notariado, Anotado”, edição do Ministério da Justiça, p. 237.

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Como bem se sabe são inúmeras as referências bibliográficas sobre este assunto. Na Internet há um interessante texto de DANILO DONEDA “Sobre o princípio da liberdade de forma” (consultável em:

www.estig.ipbeja.pt/~ac_direito/lib.forma -consultado em 23-03-2012 às 11:00h) que sintetiza o tema.

70 Como adiante se dirá, pensamos que na legislação portuguesa coexistem dois princípios: o da

liberdade de forma que constitui a regra para a generalidade dos casos que envolvem bens móveis e o outro, que denominamos da ‘formalização necessária’, que, também por regra, se aplica às situações que respeitam às transações de bens imóveis.

71 Como se sabe, o documento meramente autenticado não substitui o documento autêntico (art.º 377º

do C,C.), nem, é claro, entre estes, a escritura pública nos casos em que ela é exigida (art.º 80º, nº 2, do C.N.). É também possível a convenção em que se exija o documento autêntico (art.º 223º do C.C.).

52 urbanos, dos alvarás de loteamento ou das certificações que permitem o destaque de uma parcela destinada a construção e, nos prédios rústicos, do parecer favorável da câmara municipal em caso de constituição de compropriedade ou de ampliação do número de compartes72.

Em suma: quem proceder à autenticação de um documento particular deve saber quais são os condicionalismos impostos para a celebração do contrato ou para a feitura do acto em causa, por forma a que lhes seja dado o necessário cumprimento.

3. O modo de proceder à autenticação é através de um “termo”, tal como vem referido no art.º 150º. do C.N. A disposição seguinte indica que o termo de autenticação deve conter: a) a declaração das partes de haverem lido o documento ou a de que conhecem bem o seu conteúdo; b) a ressalva das emendas ou deficiências similares, caso não estejam já devidamente ressalvadas.

Quanto à identificação das partes e à eventual participação no documento de “intervenientes acidentais”, aplicam-se as regras relativas aos instrumentos públicos (art.º 151º, nº 2) e, no caso de assinatura a rogo, é necessário identificar o rogado e confirmar que o rogante confirmou o rogo (art.º 152º).

São estas as únicas disposições que o C.N. dedica aos documentos autenticados. Parece, portanto, evidente que se demonstra o que começamos por afirmar a respeito deste tipo de documentos: há - não obstante o que por vezes se diz - uma grande diferença entre eles e o documento autêntico, lavrado pelo notário, que tem de obedecer aos diversos e rigorosos procedimentos que em parte já se indicaram e que adiante se irão pormenorizar.