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1 A titulação autêntica nas notas: o instrumento notarial

No capítulo anterior referimos que o instrumento notarial pode ser lavrado “nas notas” e “fora das notas”, tendo então tratado apenas deste último e relegando o primeiro para o presente capítulo, dada a sua maior complexidade e a conveniência metodológica da sua análise ser feita autonomamente.

Ao iniciar o estudo do tema do instrumento nas notas - que é sempre documento autêntico – pareceu-nos que conviria precisar a noção de autenticidade.

O conceito legal de “documento autêntico” que está hoje enunciado no nº 2 do art.º 363º do C.C. (e notarialmente no art.º 35º, nº 2, do C.N.) provém do disposto no artigo 2422.º Código de Seabra – conceito este que, como indica VAZ SERRA77, foi

inspirado no Código francês (artigos 1371.º e segs.) – que muito sinteticamente o definia como “o que foi exarado por oficial público, ou com intervenção deste exigida por lei”. O artigo seguinte distinguia os documentos autênticos oficiais (provenientes das repartições públicas, câmaras e autoridades eclesiásticas, os atos judiciais e os registos públicos) dos extraoficiais (os instrumentos, atos e escrituras exarados por “oficiais públicos”78

ou com sua intervenção).

Aquela sumária definição era, no entanto, completada pelo que constava de outras disposições, designadamente as dos artigos 2425.º, 2426.º e 2428.º. Nos dois primeiros dizia-se que, em geral, tais documentos faziam prova plena do ato e no último estabelecia-se que a sua falta “não pode ser suprida por outra espécie de prova, salvo nos casos em que a lei assim o determinar expressamente”.

No essencial – mas ressalvada a distinção entre documentos autênticos oficiais e extraoficiais, que desapareceu – as antigas e sedimentadas ideias do Código de Seabra, precisadas pelos debates doutrinários que antecederam a publicação do atual Código, para ele acabaram por transitar. E assim o n.º 2 do artigo 363.º indica que “autênticos

77

Cf. o estudo citado, no BMJ n.º 111, p. 75.

78 Esta não era, contudo, a designação dada na redação original do preceito, que a respeito dos

documentos autênticos “extra-oficiais” dizia – e cremos que muito mais corretamente - que eram “os instrumentos ou atos exarados por notários, ou com sua intervenção destinados à declaração de vontade dos outorgantes”.

57 são os documentos exarados, com as formalidades legais, pelas autoridades públicas nos limites da sua competência ou, dentro do círculo de atividade que lhe é atribuído, pelo notário ou outro oficial público provido de fé pública”.

Para que os documentos sejam havidos como autênticos exige, pois, a lei79 que se cumpram dois requisitos básicos:

a) Que sejam lavrados “com as formalidades legais”, isto é, que se cumpram os requisitos, prescrições e solenidades que a lei exija, quer como elementos prévios, quer também no próprio momento em que são exarados; e,

b) Que provenham: i) de uma autoridade pública80 nos limites da sua competência81, ii) ou do notário82, iii) ou ainda, dentro do círculo de atividade que lhe é atribuído,83 de outro oficial público provido de fé pública.

Sendo certo que o n.º 1 do artigo 369.º do C.C., quanto às autoridades públicas, esclarece que a autenticidade do documento por elas exarado depende da sua competência em razão da matéria e do lugar e da inexistência de impedimento para o lavrar (ainda que n.º 2 e o artigo seguinte estabeleçam presunções de autenticidade) a verdade é que no tocante ao notário a lei, e bem, não faz restrição alguma, até porque é ele próprio que funcional e legalmente pode e tem competência legal para atribuir fé

79

É o art.º 363º/2 do C.C. que o refere em termos gerais e o artº 35º/2 do C.N. que o particulariza no que toca aos documentos notariais.

80 A lei atual não especifica – como o fazia o C.C. de 1867 no § 1.º do art.º 2423.º – quais são as

autoridades públicas, mas ter-se-á de entender que são os magistrados, os governantes e,

genericamente, os detentores de poder público, designadamente os agentes e funcionários da administração central e local. A desnecessidade de se ter especificado resultará da óbvia aplicabilidade das regras gerais e ainda da restrição que logo a seguir é feita: “nos limites da sua competência”.

81 Isto é, “dentro dos limites dos seus poderes oficiais” (cf. VAZ SERRA, op. cit.,

BMJ nº 111, pág. 81). Alguns autores (v.g. RODRIGUES BASTOS, “Das Relações Jurídicas”, pág.130) citam como exemplo a

célebre “questão de FERRUCI relativa ao documento emanado de uma câmara ou junta de freguesia

declarando que certo indivíduo pagou determinada dívida particular a um outro indivíduo. Seria “chocante” considerá-lo como documento autêntico. Contudo, já teria autenticidade se essa junta atestasse que o mesmo indivíduo reside na freguesia, visto que atestar tal facto (a residência) se inscreve “nos limites da sua competência”.

82 A lei distingue – e bem – a “autoridade pública” da pessoa do notário o qual, exercendo uma

atividade pública, não está, todavia, integrado no funcionalismo público (no sentido estrito e rigoroso do conceito) e na respetiva hierarquia. Mas é provido de fé pública. Quer dizer que o nosso legislador, em conformidade com os princípios do “ordenamento latino”, também aqui acolhe (ainda que em parte tacitamente) a integração do nosso notariado no “notariado latino” – único que, aliás, verdadeiramente se pode chamar notariado.

83 Afigura-se que esta maneira de dizer da lei quando referida ao notário torna-se não só arrevesada

como pouco esclarecedora. De facto, a função notarial não abrange “um círculo” mais ou menos restrito de atividades, visto que se destina precisamente a “conferir fé pública” (a dar autenticidade) a todos os “atos jurídicos extrajudiciais”. Isto é, trata-se, como adiante veremos, de uma abrangente competência

genérica (cf. art.º 1.º, n.º 1, do C.N.). Contudo, esse “círculo de atividade” justifica-se, plenamente

quando se fala de qualquer “outro oficial público” que tem um “círculo de atividade” específico e

determinado. Por isso, optamos por enunciar o requisito da proveniência do documento de forma

tripartida, que se afigura mais clara: 1) autoridade pública “nos limites da sua competência”; 2) notário; 3) outro oficial público no seu “círculo de atividade”.

58 pública84 aos documentos em geral e também aos factos que lhe cheguem ao conhecimento85 e a quem, portanto, incumbe conferir-lhes autenticidade.

Por isso, tratando-se de um documento lavrado por notário, com as formalidades legais, tem de considerar-se que é autêntico.

Consequentemente, devemos concluir que o “instrumento público”, que cumpre todos os requisitos enunciados no n.º 2 do art.º 363.º do C.C., é sempre um documento

autêntico.

A autenticidade do “acto notarial” decorre, aliás, da própria atividade notarial, tal como a lei a define. Ao tema nos referiremos com maior detalhe quando houvermos de aludir à função do notário.

Por ora cabe tratar dos “instrumentos notariais” aos quais a lei confere o carácter de documento autêntico, começando pelos que são feitos “nas notas” e por aquele que, desde tempos ancestrais (a que nos havemos de referir) é considerado o paradigmático título notarial: a escritura pública.