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1. Não é nosso propósito fazer aqui qualquer tentativa para expor, ainda que muito laconicamente, as diversas teorias sobre a declaração negocial no negócio jurídico, matéria sobre a qual, de resto, há uma abundante literatura, e alguma que especifica e profundamente a tratou455 .

Diremos apenas que a declaração negocial é, como sempre se disse456, e a lei reconhece457, “o elemento central” do negócio jurídico458. Já desde a antiga Roma isso

455 Recorde-se, entre outras, a indicada tese de

CARLOS FERREIRA DE ALMEIDA com uma longa análise (I Parte, Capítulo III) da “declaração negocial, enunciado e texto” e a extensa bibliografia que cita (“Texto e Enunciado na Teoria do Negócio Jurídico”, pp. 259-326).

456

Por ex., em síntese, MANUEL DE ANDRADE inicia o capítulo sobre a declaração de vontade com este título: “A declaração de vontade como elemento essencial do negócio jurídico” (cf. Teoria Geral da Relação Jurídica, vol. II, p.121. C. A. MOTA PINTO também começa o capítulo sobre a declaração negocial (no nº 103) com o título: “A declaração Negocial como verdadeiro elemento do negócio jurídico” (“Teoria Geral do Direito Civil” p. 329. MENEZES CORDEIRO, depois de referir que o negócio jurídico se forma “como um processo”, diz: “a declaração é o elemento central no processo de formação do negócio jurídico” (“Tratado de Direito Civil Português”, Tomo I, I, p. 283. Por seu turno, HÖRSTER

diz que “o primeiro passo para o negócio jurídico consiste numa declaração de vontade” (“A Parte Geral do Código Civil Português - Teoria Geral do Direito Civil”, p.434).

457 O Código Civil trata da declaração negocial designadamente nos arts. 217º a 257º., considerando que

é expressa quando “feita por palavras, escrito ou qualquer outro meio direto de manifestação da vontade”.

458 Esta é, aliás, a conhecida “teoria da declaração” de EMILIO BETTI (“Teoria Geral do Negócio

Jurídico”, tradução de FERNANDO DE MIRANDA, p. 300) e bem assim de VON BÜLOW, em contraponto à “teoria voluntarista” da “linha clássica” de SAVIGNYque acentuava a importância da vontade Afigura-se-nos que aqui (como em quase tudo) a verdade não estará exclusivamente numa dessas perspetivas, visto que o que é querido (o que é almejado pela vontade) é essencial, mas, se não for declarado (nem que seja através de outra declaração da qual possa decorrer uma ‘declaração tácita’), é impercetível no mundo das relações – e especialmente das relações jurídicas - e, por isso, irrelevante. Aliás, também SAVIGNY “distingue três elementos: a própria vontade, a declaração de vontade e a

196 mesmo se referia459. E “declaração pressupõe comunicação. Esta ideia, mais ou menos difusa, também sempre esteve presente na doutrina sobre o negócio jurídico”460

.

Ora, (e sobretudo no que toca ao titulo, que é o que aqui releva) precisamente devido à importância determinante da comunicação daquilo que afinal constitui o querer íntimo – a manifestação da vontade negocial –, como elemento fulcral e definidor do negócio jurídico, é necessário que (como temos insistido) quem a manifesta, e queira manifestá-la inequivocamente, saiba fazê-lo. E as mais das vezes não sabe ou sabe-o apenas de forma imperfeita.

Daí que seja conveniente, ou mesmo imperioso, caso se pretenda (como pensamos que se deve pretender) prevenir uma conflitualidade futura, que em muitos dos negócios jurídicos, sobretudo os mais complexos, haja o ‘indispensável’ auxílio de um técnico do direito que assista o declarante nessa manifestação e saiba avaliar se aquilo que vai ficar declarado, e da maneira como o vai, traduz realmente a vontade daquele que faz a declaração.

Apesar da aludida abundante literatura sobre o negócio jurídico, não temos visto que, em muitos dos nossos tratadistas, esta questão seja ressaltada como se crê que deveria ser. Pensamos, com efeito, que é sempre útil tê-la na devida conta, mormente num mundo dominado por vários poderes e poderosos que, à guisa de ‘patrões’ dos mercados, querem impor automaticamente461 regras contratuais a quem com eles negoceia. Ora, a mediação jurídica imparcial - para que ‘quem assina’ (eletronicamente ou não) saiba e tenha exata consciência do que está a fazer – afigura-se-nos ser sobremaneira necessária.

2. Sob este aspeto – que é afinal o da, não apenas desejável, mas também presumida, coincidência entre a vontade real e a declarada - dever-se-á dizer que (apesar da idêntica força probatória), como vimos, há uma diferença substancial entre o título notarial, elaborado pelo notário - o “instrumento público”, que é documento autêntico, – e o que é feito por um particular, isto é, o “documento particular”, o qual, ainda que

459 Ensina

SANTOS JUSTO que, no direito romano (como hoje), “não basta a vontade: é também

essencial que seja declarada, como observa CELSUS(…)”. (“Breviário de Direito Privado Romano”, p. 92).

460 A frase é de

CARLOS FERREIRA DE ALMEIDA que acrescenta: que mesmo na doutrina voluntarista a declaração “surge qualificada como comunicação de uma precedente vontade (…)” (cf. op. cit., vol. I, p. 267).

461 Pretendo referir-me não apenas à contratação “por adesão”, a que já aludimos, mas ao hoje habitual

processo eletrónico de celebrar e formalizar o negócio jurídico, em que as estruturantes regras da boa-fé são por vezes ‘esquecidas´.

197 autenticado, não perde essa natureza, que, portanto, não é alterada, não obstante ter sido realizada a sua autenticação.

Quando tratámos da escritura pública tivemos oportunidade de indicar determinadas características deste título que comprovam à saciedade o que acabamos de dizer, designadamente que a sua redação é feita pelo notário, que tem a especial incumbência e responsabilidade de a concretizar462, devendo, para tanto, lavrar o documento “conforme a vontade dos interessados, a qual deve indagar, interpretar e adequar ao ordenamento jurídico, esclarecendo-os do seu valor e alcance”, tal como está claramente dito no art.º 4º/1 do C.N. e é repetido, também no art.º 4º/1 do E.N.

Muitos são os textos (não tanto entre nós, mas sobretudo de autores italianos e espanhóis, alguns dos quais temos citado) que têm desenvolvido estas características típicas da atividade e da função notarial. Será, porém, curial citar aqui de novo o Processualista italiano SALVATORE SATTA que, de um modo simultaneamente simples e profundo (na conferência “Poesia e verità nella vita del notaio”463), trata esta matéria. Não o saberíamos dizer melhor, e por isso o seguiremos.

Recorda este Autor que palavra e escrita são “manifestações primordiais do espírito: e os alvores do espírito mostram-nos o homem que escreve diante do homem que fala. Escriba é o seu primeiro nome”. Aliás, o escriba da estátua egípcia era um notário. E lembra depois que a palavra “escribano” é ainda em alguns países de língua espanhola sinónimo de notário e que esta também “não quer dizer outra coisa senão aquele que nota”. As suas funções não eram distintas do juiz e “judices” também se chamavam na Itália antiga os notários (judices cartularii) e “a essência jurisdicional da função notarial” transparece com a atribuição ao instrumento público da força executiva.

Depois de nos falar do “mistério do direito” e da “alteridade do direito”, diz que “o ordenamento jurídico precisa de um homem que o afirme e o declare” (o juiz) e a vontade individual “para ser a vontade do ordenamento, precisa de um homem que a faça sua e efetue também ele, e por conseguinte, um juízo. O acto público é esse juízo e o notário, como os antigos bem tinham intuído, é um juiz”. E “colocado no centro do acto, vê aquém e além do mesmo, os motivos profundos, as consequências longínquas”.

462 Como muito expressivamente disse CASTAN TOBEÑAS

, a função notarial “tem como característica ser

especial, porque as suas decisões se limitam sempre a casos concretos, e ser declaratória, porque

manifesta o Direito oficialmente com relação ao caso particular” (“Función Notarial y Elaboración Notarial del Derecho”, p. 35).

463

A já referida conferência foi publicada na “Revista di Diritto Processuale”, nº 304, pp. 264-276 e entre nós traduzida por ALBINO MATOS e publicada na “Revista do Notariado”, nº 28, pp. 248-259.

198 Diz ainda com grande compreensão da vida: “Conhecer o querer que aquele que quer não conhece: eis o drama do notário”.

O cerne e o segredo da função redatora do instrumento público está, a nosso ver, exatamente nisso: conseguir perscrutar e verter para o texto do documento, em palavras ‘evidentes’, a vontade, ou seja, o querer íntimo dos interessados (que, como se observou, muitas vezes não o sabem exprimir ou só o sabem imperfeita e incompletamente) de modo a que se compatibilize com a fatizpecie admitida para o negócio jurídico ou o acto realmente pretendido.

3. É por demais axiomático que nada disto está ‘garantido’ no documento particular e, como se disse, é mesmo possível (para não dizer que é até provável quando é feito por ‘procuradores ilegais’) que venha a não corresponder inteiramente ao que as partes afinal queriam.

Por outro lado, é outrossim notório que tal garantia não emerge necessariamente da autenticação – e muito menos de uma ‘rápida’ autenticação -, que basicamente consista apenas em ouvir um ansioso (irrefletido?) declarante dizer que já leu o documento (e se realmente o leu, entendeu?) e que, portanto, não quer mais delongas e dispensa a leitura e qualquer outra formalidade.

Parece-nos que quem autentica um documento particular tem de ter a consciência – e a responsabilidade - de se recordar que ele vai ter a força probatória do documento autêntico e de que a ressalva da parte final do art.º 377º do C.C. já hoje não constitui uma ‘salvaguarda’, porque depois da publicação do citado Dec-Lei nº 116/2008, só se aplica a casos residuais464.

Por isso, ao que julgamos, o profissional do direito (em especial o advogado ou o solicitador) que não é notário, ao autenticar um documento deve atuar como se o

fosse, procurando sobretudo indagar se o conteúdo do mesmo traduz realmente a

vontade dos intervenientes, se é legal, e também, como acima dissemos, se está enquadrado numa fatizpecie admitida pelo Ordenamento.

Caso o não esteja, pensamos que só se abrem ao autenticador dois caminhos: a) ou ele mesmo, com o acordo das partes, faz outro que preencha os apontados requisitos;

464

Com efeito, o nº 2 do art.º 23º deste Diploma diz: “Todas as disposições legais, regulamentares ou outras que pressuponham ou exijam a celebração de escritura pública (…) são entendidas como pressupondo ou exigindo a celebração de escritura pública ou a autenticação do documento particular que formaliza o acto”. Ou seja: o documento particular autenticado na realidade passou a substituir a escritura pública, ao contrário do que diz a parte final do art.º 377º do C.C..

199 b) ou, se não se dispuser a fazê-lo ou se as partes não concordarem, deve recusar-se a autenticá-lo465.

É que, sendo o acto translativo ou onerativo da propriedade imobiliária título bastante para registo, não devia ter bastado ao legislador indicar - como o faz no artº 24º, nº 1 daquele Dec-Lei nº 116/2008 - que, nesse caso, o documento tem de preencher “os requisitos legais a que estão sujeitos os negócios jurídicos sobre imóveis, aplicando- se subsidiariamente o Código aprovado pelo Decreto-Lei nº 207/95, de 14 de Agosto” (que, apesar desta sibilina maneira de dizer, é o C.N., como esse próprio Dec-Lei indica).

Na verdade, o C.N. deve aplicar-se não só nesses casos, como em todos os

outros (art.º 3º, nº 1, d), e nº 3, referido na última nota), pelo que o indicado nº 1 do art.º

24º nada esclarece e, aliás, só poderá suscitar interrogações e dúvidas. Mais claro e mais acertado teria sido, ao que pensamos, o legislador estabelecer que quem autentica o documento deve adotar um procedimento análogo àquele que ao notário cabe ter quando lavra o documento autêntico466, uma vez que passou a “substitui-lo”, em consequência do que ficou estatuído no nº 2 do art.º 23º desse DL nº 116/2008.

Tal seria, ao que cremos, um esclarecimento legal verdadeiramente elucidativo e útil para as partes, como decorre do que se referiu.