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1. O enunciado dos atos e dos negócios jurídicos é o constante do texto respetivo442, que, evidentemente, é formado por palavras443 que têm de ser utilizadas de maneira significativa do que é pretendido e não, como é óbvio, com um alcance diferente e que eventualmente possa adulterar ou mesmo exprimir o inverso daquilo que se quer afirmar e que é realmente querido444.

Mesmo no caso dos contratos de adesão, a lei teve a preocupação de regulamentar (embora quiçá tardiamente445) o que exprimem e o que podem enunciar as cláusulas contratuais, em regra fixadas unilateralmente pelo contraente ‘mais forte’.

Deste modo, deve resultar da ‘hermenêutica interpretativa’ do texto escrito446, não só uma confiança quanto ao modo como o seu conteúdo foi, é, e irá ser entendido pelos declarantes (sobretudo se estes forem contraentes) e por terceiros que nele não

441

Não pretendemos significar que devesse subsiutir apenas esse Protocolo com a F.D.U.C. O que queremos dizer é que a preparação para o notariado devia incluir uma formação universitária própria para o exercício da função.

442

Não cabe no presente trabalho apresentar mais do que uma simples e brevíssima referência a esta matéria que, todavia, foi tratada com grande profundidade por CARLOS FERREIRA DE ALMEIDA na sua tese de doutoramento (“Texto e Enunciado na Teoria do Negócio Jurídico”). Por outro lado, cumpre dizê-lo, também não cabe aqui (como aliás resulta do que se disse ao indicar genéricamente o objeto da tese) fazer alguma exposição teórica, por muito abreviada que pudesse ser, sobre o tema da palavra (incluindo a sua base mórfica e os elementos periféricos).

443 E, de entre todas as palavras, cremos que importa principalmente aquela que é a proposição – isto é,

o “verbo” - significante do pensamento, representando aquilo que ele quer designar, já que, como disse

MICHEL FOUCAULT, “a proposição está para a linguagem como a representação está para o pensamento: a sua forma é a um tempo a mais geral e mais elementar, (…)” (cf. “As palavras e as coisas”, p.145). Sob o ponto de vista da origem das palavras – de certo modo confirmando que estas representam “o que se quer”, diz-se que a palavra (o verbo) “surge ligada a uma ação onde as palavras (…) substituíram os antigos gestos” [expressivos das ideias]. (Cf. BENOIST, Luc, “Signos, símbolos e mitos”, p. 27).

444 Essa é uma “função originária da palavra”, como em aprofundado estudo refere

BAPTISTA MACHADO (in “Obra Dispersa”, vol. I, sobretudo pp. 349-354).

445

Na citada conferência que PINTO MONTEIRO fez em 15 de Janeiro de 1986 na O.A. recordava que diversos autores há muito apelavam para a “urgência de o problema ser equacionado e resolvido em sede legislativa”, até que “correspondendo aos apelos que, com renovada insistência, ultimamente vinham fazendo-se sentir, decidiu-se o legislador nacional, finalmente, por instituir um regime próprio

das cláusulas contratuais gerais: fê-lo, através do Decreto-Lei nº 446/85, de 25 de Outubro” (cf. citada

R.O.A., Ano 46, Dezembro de 1986, p. 735 e p. 737).

446 Num importante tratado sobre a interpretação do contrato é, a dado passo, referido isto mesmo e

chamada a atenção para o “particular relevo, [que] no pensamento de EMILIO BETTI tem o «ponto da relevância hermenêutica» [e, em especial, o próprio relevo da “interpretação objectiva”] (cf.

192 tiveram intervenção, como também uma “segurança” quanto à forma como poderá ser, futuramente, avaliado e ajuizado.

Por outro lado, as palavras são, e têm sempre de ser, utilizadas nos documentos no seu verdadeiro alcance e sentido jurídico e não na de qualquer contingente ou ‘regional’ aceção popular447

. E tais palavras ou vocábulos terão de ser combinadas para formar frases, às quais também cabe conferir o mesmo referido sentido jurídico, o qual sendo, em princípio, devidamente conhecido tão-só por um jurista - e atrevia-me até a dize-lo, por um jurista competente –, devem, no entanto, no contexto do documento, tornar-se igualmente inteligíveis pela generalidade dos cidadãos.

Ou seja: parece-nos evidente que quem elabora o documento que vai produzir efeitos jurídicos, mormente o documento autêntico ou o autenticado, só pode ser – ou antes, só devia poder ser - um jurista habilitado e conhecedor das regras linguísticas e gramaticais, o que, cabe reconhecê-lo, nem sempre acontece, pelo que esta é uma razão adicional justificativa dos cursos e dos exames que já mencionamos e a que ainda iremos novamente fazer referência.

É que a questão do rigor da linguagem e das expressões utilizadas nos documentos é uma matéria manifestamente ‘delicada’448, que não se compadece com o improviso. E por isso dissemos – e repetimos - que a O.A. e a C.S.449 deviam criar

institutos privativos e neles instituir (com a necessária exigência) uma formação

apropriada e no final dos mesmos efetuar as correspondentes provas450, de modo que a

447

A doutrina é unânime a dizê-lo e, deve ainda notar-se que o próprio E.N. confirma este mesmo entendimento quando, ao falar do documento notarial, diz que o notário o deve redigir exprimindo a vontade dos declarantes de modo a adequá-la ao “ordenamento jurídico” e “esclarecendo-os do seu valor e alcance” (art.º 4º, nº 1). SANAHUJA y SOLER observa que ao redigir a acta “não só se faz constar um facto, como ainda que se pretende deduzir do facto uma consequência jurídica ou fundar nele mesmo direitos e qualidades com transcendência jurídica” (op. cit., II vol. p. 219”).

448 Matéria delicada inclusive porque o real significado de determinadas expressões jurídicas não é

coincidente “com o sentido que os mesmíssimos termos têm na linguagem comum”, e bem assim “as condições nas quais se utiliza no discurso jurídico o conceito de direito subjetivo”, como bem refere

DAVIDE MASSINETTI (op. cit., p. 471).

449 Não aludimos à O.N., visto que a atribuição do título de notário depende das prévias fases de

aprendizagem (art.ºs 25º a 30º do E.N.) e da aprovação em “provas públicas” (artº 32º do E.N.).

450 Logo no início do Preâmbulo do já citado Dec-Lei nº 92/90, diz-se o seguinte: “A falta de formação

profissional adequada para conservadores e notários (…) tem sido uma crítica constante nas últimas décadas ao sistema legal vigente”, E afirma-se seguidamente que o diploma pretendeu “dar resposta” a estas questões. A instituição do “Curso de extensão universitária ou de formação”, ministrado na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra (e, claro, com a respetiva frequência e aproveitamento) passou a constituir um elemento essencial daquela formação. A admissão na carreira de conservador ou de notário compreendia 4 fases: Provas de aptidão; o referido curso de extensão universitária; estágio; provas públicas (Cf. GUERRA, Maria Ema Amil Bacelar Alvarenga, “Manual de Organização e Gestão dos Serviços dos Registos e do Notariado”, pp. 27-29).

193 indicada habilitação, condizente com as finalidades que apontamos, se pudesse concretizar.

2. Como resulta do que se referiu, para que o sentido das palavras e das frases fique

claro e que, portanto, o texto do documento traduza fielmente o que é querido, torna-se

necessário que represente e explique a intenção das partes ou do declarante, e que o faça de modo suficientemente preciso.

Assim, o texto não deve ser dúbio, podendo significar uma coisa e o seu contrário. Caso isso aconteça, poderá inclusiva e pertinentemente suscitar-se a questão da invalidade do documento, o que (necessariamente) é obrigação de qualquer titulador – notário, advogado, solicitador ou outro – a todo o custo evitar.

Daí que, no nosso ponto de vista, não só através dos institutos específicos do O.A. e da C.S. que acabamos de referir, como eventualmente de outras instituições, urgisse condicionar a possibilidade legal de se emitirem documentos autênticos ou de autenticar os particulares, de tal modo que só pudesse fazê-lo quem possuísse as devidas habilitações (mesmo – enquanto isso for admitido - tratando-se de empregado de câmaras de comércio e indústria) e fosse aprovado em testes específicos e externos a tais institutos e instituições.

Seria ainda de ponderar se a formação devia, ou não, - e parece que devia - abranger as matérias da linguística e da hermenêutica jurídica, inclusivamente atenta a repercussão prática que tais noções têm na correta e exata elaboração dos títulos.

Queremos também precisar o seguinte: quando aqui nos referirmos a títulos fazemo-lo utilizando a expressão num sentido amplo, abrangendo, designadamente, todos aqueles que o C.N. contempla, como é o caso das traduções. É sabido que o tradutor não pode cumprir a sua missão se não tiver um perfeito conhecimento do idioma respetivo. É que, como pertinentemente se escreveu, “sem o conhecimento da língua (…) será impossível estabelecer a relação sintática e menos ainda a relação semântica, mesmo podendo [o autor] identificar os símbolos”451.

A estrutura da língua é, consabidamente, refletida na sua gramática e os aspetos sintático e semântico têm de ser suficientemente conhecidos452 para poderem ser

451

A frase é de MARIA AMÉLIA CARREIRA DAS NEVES(“Semiótica Linguística e Hermenêutica do Texto Jurídico”, pp. 145-146). A Autora referia-se à língua inglesa, mas depois exemplifica também com frases portuguesas.

452

Dada a notória importância deste ponto é dificilmente compreensível o desinteresse de alguns profissionais, que provavelmente teve origem, já em tempos recentes, num descurar do estudo da língua

194 aplicados, em qualquer circunstância453, por quem elabore documentos ou exerça a “função autenticadora”. Daí que, como resulta do que se disse, nas próprias provas de ingresso que referimos, talvez fosse conveniente incluir esta matéria.

3. Em consequência do que se vem dizendo sobre a conveniência da correta formalização documental dos atos e dos negócios jurídicos, cabe notar, também muito brevemente, o seguinte: a nítida, inteligível e exata consignação do facto, ato ou negócio deve ficar plasmada, tão rigorosamente quanto possível, no texto do documento, de modo que ‘a interpretação possível’ seja “apoiada pelo texto”454.

A questão de saber quais os limites da interpretação de um texto excede manifestamente os próprios ‘limites’ do presente estudo por múltiplas razões, entre as quais salientamos a de que se inseriria num campo distinto daquele que apenas visa estudar a titulação (e mesmo esta numa perspetiva panorâmica) e ainda a de que a interpretação do texto supõe que ele já exista, esteja concluído. Consequentemente, a explicação do seu conteúdo é feita “ex post”, ao passo que a nossa finalidade é sobretudo a de debater a forma como ele deve ser ‘confecionado’ e o que tem de conter, ou seja, numa ótica “ex ante”.

De resto, os principais objetivos da atividade notarial e registral inserem-se na chamada “função cautelar”, mas, neste sentido, não cabe na lógica da titulação notarial – e, por extensão, na que designamos como para-notarial – uma apreciação ou um ‘julgamento’, sobre o que ficou escrito e convencionado (que também se designa como a ‘sinceridade’ das declarações dos outorgantes), mas já cabe no que irá ficar escrito e vai ser da responsabilidade do titulador redigir.

Por isso, ao falarmos da titulação, a perspetiva que nos parece mais ajustada, por parte do titulador, é a da clara, cabal e inequívoca consignação da declaração e não a da “convicção” que possa ter (ou vir a ter) um julgador, para o qual tem igualmente de

que, como se reconhece, radica no ensino básico e liceal. A propósito deste, perdoe-se-me que cite uma simples e recente notícia de jornal: “Alunos não conseguem construir um texto”. E explicitava-se: “A construção de um texto ou a estruturação de um argumento são das maiores dificuldades dos alunos do 2º ano (1º ciclo) do ensino secundário” (in Jornal de Notícias de 22 de Março de 2012, p. 8).

453 Queremos deixar claro o seguinte: esta multiplicidade de circunstâncias não impede, como é

evidente, que cada documentador tenha o seu próprio ‘estilo’ (que talvez outros não apreciem) o qual, em princípio, como se sabe, não colide com os “limites da interpretação” de um texto.

454 Esta é, a nosso ver, a posição que deve ter o documentador que elabora o título e que não colide com

as diferentes escolas filosóficas. De qualquer modo, é necessário que coexistam “todos os instrumentos da crítica tradicional”, sem os quais a leitura de um texto “corre o risco de se desenvolver em todas as direções e de autorizar toda e qualquer interpretação possível”. Embora, na expressão de DERRIDA, este “guard-rail da interpretação” proteja a leitura, mas não a abra, ele é manifestamente “necessário”. (A transcrição é de UMBERTO ECO, “Os Limites da Interpretação”, p. 33).

195 relevar a declaração tácita. Ou seja, não é o “comportamento concludente” (matéria de facto) que deve estar em causa, mas sim (apenas) a “conclusão documental” (matéria de direito) que terá de ser incontroversamente extraída do próprio ‘texto’ do documento que constitua “um título”, mormente se este puder basear registos que publicitem erga

omnes os direitos que nele sejam consignados.