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6 Escrituras públicas em especial – as justificações

1. Quanto às justificações (e este plural tem o sentido adiante mencionado) previstas na Subsecção II do C.N. – que compreende os subsequentes art.ºs 89º a 101º - o legislador não tentou definir o conceito, como, a nosso ver, devia ter feito. É que existe alguma confusão, mesmo por parte de juristas, que pensam tratar-se de um tipo de escrituras que quando, não existe outro documento, pode ser utilizado ad libitum, porque ‘serve para tudo’. Ora, evidentemente, não é assim.

Procuremos, então, referir o essencial (e, repetimos, apenas o essencial250) sobre estas escrituras.

Em primeiro lugar só podem (e só devem) ser utilizadas quando o direito existe. Unicamente o que não existe, ou não se encontra, é o título que ‘normalmente’ o comprove. Em segundo lugar destinam-se a obter um título para fins de registo predial e cumprimento do princípio do trato sucessivo, com vista à publicitação do direito que se acha formalmente “indocumentado”. Em terceiro lugar só são utilizáveis quando o direito que se invoca é incontroverso e incontrovertido251.

Dissemos que as justificações se destinam apenas a obter um título para que, no

registo predial, possa ser dado cumprimento do princípio do trato sucessivo. E então

quanto ao registo comercial de que fala o art.º 94º do C.N.?

250 Há alguns úteis e mais completos trabalhos sobre as justificações. Um deles, completo é o de MÓNICA JARDIM:“A Evolução Histórica da Justificação de Direitos de Particulares para Fins do Registo Predial e a Figura da Justificação na Atualidade” (consultável em

http://www.fd.uc.pt/cenor/images/textos/publicacoes/mnica-10092010.pdf (sitio do CENoR).

251

Sendo controvertido não pode, obviamente, tal controvérsia ou litígio ser resolvida em sede notarial, mas apenas no foro judicial. Procuramos desenvolver um pouco mais as ideias-base referentes às justificações numa conferência feita em Cabo Verde a 24-07-2007 e depois publicada, com alterações, no sítio do CENoR (http://www.fd.uc.pt/cenor/), e ainda com essas alterações e outros aditamentos no nosso citado livro “Temas de Registos e de Notariado”, pp. 97-120.

104 Afigura-se-me que esta disposição ficou ultrapassada (ou mesmo tacitamente revogada) desde que entraram em vigor as alterações aos C.R.C. e C.S.C., principalmente as introduzidas pelo já mencionado D.L. nº 76-A/2006, que alterou radicalmente todo o regime de registo de quotas ou de partes do capital social. Esse registo passou a ser efetuado, sem qualificação alguma, e por simples depósito da ata donde conste o facto às mesmas relativo. Foi também revogado o art.º 31º do C.R.C. que estabelecia o princípio do trato sucessivo. Independentemente da crítica que todas estas medidas merecem (e às quais aludiremos na parte do registo), o certo é que nos parece claro que as escrituras de justificação são hoje inaplicáveis ao registo comercial e ao registo automóvel252.

2. Começamos por falar em justificações porque elas não são de uma, mas sim de três espécies, todas respeitantes ao princípio do trato sucessivo, e sucessivamente referidas no C.N.:

i. Para estabelecimento de um primeiro trato (art.º 89º); ii. Para reatamento do trato sucessivo (art.º 90º);

iii. Para estabelecimento de um novo trato sucessivo (art.º 91º)253.

A noção de trato sucessivo, em termos metodológicos, não têm aqui o seu lugar mais adequado, mas antes quando, a propósito do registo predial, se estudar esse princípio, como noutras oportunidades fizemos254. Todavia, não é possível numa ‘tese panorâmica’ tratar pormenorizadamente todas as matérias, pelo que diremos apenas que o C.N. indica naqueles três artigos em que consiste cada uma dessas modalidades e os elementos que a escritura deve, em especial, referir. Além disso, o nº 1 do art.º 89º explicita que deve ser afirmado pelo interessado que ele é, com exclusão de outrem, titular do direito que se arroga, e bem assim explicada a causa da aquisição e as razões

252 Não é esta a opinião de

NETO FERREIRINHA e ZULMIRA NETO, expressa no citado “Manual de

Direito Notarial” (cf. op. cit., pp.501-510). Contudo, o nosso ponto de vista é diferente. Para os C.R.C. e C.S.C. não se trata de ser, ou não, suficiente a escritura pública ou só o documento particular, mas sim de não ser, nem uma, nem o outro, o ‘documento adequado’. É-o apenas a acta do órgão social e esta nunca é de obtenção impossível. Além disso, a deliberação não tem prazo. Consequentemente, o título legalmente exigível é a acta, não a escritura (mesmo de justificação). Caso os sócios se recusem a deliberar, não vemos alternativa que não seja a via judicial. Também não nos parece que a escritura de justificação seja aplicável ao registo de bens móveis (automóveis, navios ou aeronaves).

253 Esta modalidade de justificação é relativamente recente: só a partir do C.R.P. de 84 é que se criou o

conceito de “ estabelecimento de novo trato sucessivo”. Anteriormente, considerava-se que não era admissível invocar a usucapião havendo um titular inscrito (vide, ARAÚJO, António Magro Borges de, “Prática Notarial”, pp. 492-493).

254 Foi o caso da conferência feita em Cabo Verde a 24/7/2007 no “1º Encontro de Notários e

Conservadores dos Países de Língua Oficial Portuguesa”, cujo texto está, em parte, reproduzido em nossos “Temas” sob o título “Notas sobre as justificações” (pp. 97-120).

105 que o impedem de a comprovar pelos meios normais. Consideramos que estas menções são de certo modo ‘gerais’, visto que são comuns às diferentes espécies de justificação e apenas as haverá que adaptar à modalidade em causa.

No caso do art.º 90º a escritura deve mencionar “as sucessivas transmissões, com especificação das suas causas e a identificação dos respetivos sujeitos”, bem como os motivos pelos quais se alega ser impossível obter os títulos em falta.

A hipótese do art.º 91º está contemplada na lei notarial apenas desde que entrou em vigor o C.R.P. de 1984, ainda que a doutrina já anteriormente a tivesse previsto255. Trata-se do estabelecimento de um novo trato que se verifica quando não existem as sucessivas transmissões derivadas desde o titular inscrito (note-se: transmissões e não apenas os documentos). Quebrou-se o trato sucessivo (o titular inscrito alheou-se completamente do direito inscrito) e a certa altura começou a estabelecer-se, um novo

trato, que já nada tem a ver com o anterior precisamente porque emerge não de uma

aquisição derivada a partir dele, titular inscrito, mas sim de uma aquisição originária que se inicia contra ele, ou que o esqueceu. A situação pressupõe que houve, por parte daquele titular inscrito, um abandono do seu direito. Neste caso a usucapião256 (que se dá, portanto, independentemente do titular inscrito) implica um “novo trato sucessivo” que nada tem a ver com a situação tabularmente existente.

3. A admissibilidade de qualquer destas justificações depende da verificação de determinados pressupostos que tornem legítimo e lícito o recurso a este meio.

Referimo-nos já aos dois básicos: a existência do direito e a ausência de controvérsia. Na verdade, é necessário que haja uma razoável ‘certeza’ de que o direito

existe e que o notário que preside à celebração da escritura esteja suficientemente

convicto dessa mesma existência, designadamente porque lhe foi explicada a situação em causa. No caso de não ficar convencido de que o direito invocado existe, não deverá lavrar a escritura, e antes recusar a prática do acto. De resto, o art.º 95º do C.N. impõe ao notário o dever de analisar as razões invocadas pelos interessados e de decidir se as

255 Este assunto foi ventilado a propósito da possibilidade de se invocar a usucapião mesmo quando

havia um titular inscrito e mereceu um parecer e ulterior despacho favoráveis na Procº 17- R.P. 26 (cf.

citado C.N., edição do M.J. p. 147). Depois da publicação do C.R.P de 84, foi também debatida em

diversas oportunidades, nomeadamente no Parecer do C.T. do Procº nº 143/2000 (in BRN nº 3/2001 e no sitio www.dgrn.mj.pt/BRN.).

256 Na situação do “novo trato”, em que há sempre um titular inscrito, que não transmitiu

(derivadamente) o seu direito, a causa da aquisição só pode ser a originária e, nesta, a usucapião. Temos

as maiores reservas a propósito da ‘veracidade’ destas situações de aquisição por usucapião, como

106 mesmas “os impossibilitam de comprovar pelos meios extrajudiciais normais os factos que pretendem justificar”.

O outro pressuposto é a total ausência de qualquer situação controvertida. Na verdade, se existe uma dúvida quanto ao reconhecimento público de que o justificante tem o invocado direito ou se há alguma indefinição, antagonismo ou litígio relativamente ao prédio em causa, já não é possível o recurso à justificação. É que nunca é ao notário (ou ao conservador) que incumbe dirimir litígios, visto que essa é uma exclusiva função judicial, que só através do recurso aos tribunais e unicamente por decisão do juiz, pode ser exercida257, como aliás decorre do que se acha constitucionalmente garantido258.

A justificação foi, desde sempre, uma solução pensada e legalmente estruturada para resolver os problemas da falta de um título formal que possibilitasse o registo, mas não os da controvérsia, ou da negação, a respeito da existência do direito.

Além destes pressupostos essenciais, há outros que o C.N. também prevê: a necessidade de as declarações serem testemunhalmente confirmadas, de a escritura ser instruída com determinados documentos e de lhe ser dada publicidade. No caso de não haver, ou de não se provar que houve, intervenção do ‘titular registral’, a lei exige ainda a sua “notificação prévia”259

.

Quanto aos documentos há dois óbvios: as certidões da conservatória e da matriz260. Mas há ainda necessidade de juntar os documentos relativos às transmissões intermédias no caso de os interessados os possuírem (nº 3 do art.º 98º). No tocante à confirmação testemunhal, cabe acentuar que se exige a intervenção de três ‘declarantes idóneos’261 (os quais, antes do Acódão nº 379/2012 do Tribunal Constitucional262, eram

257

Salvo, é claro, os “meios alternativos da resolução de litígios” (como é o caso da arbitragem) que aqui não estão em causa.

258 Este princípio – da administração da justiça pelo juiz - decorre sobretudo do disposto no nº 1 do artº

205º da Constituição da República Portuguesa. Vide GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA

“Constituição da República Portuguesa, Anotada”, p. 792 (ponto III).

259 Na verdade, o titular inscrito goza da presunção de que o direito lhe pertece (artº 7º do C.R.P.), pelo

que não pode, à sua revelia, ser alterada a titularidade do direito sobre o prédio que o registo lhe garante.

260

Afigura-se que a necessidade da inscrição não é pressuposto para a celebração da escritura (ao contrário do que se chegou a entender, ainda que com bastante polémica, no domínio de códigos anteriores), não apenas face à redação do nº 1 do artº 92º (idêntica à do artº 102º do Código anterior), como porque presentemente a mera participação de omissão na matriz dá logo lugar à inscrição provisória. Aliás, já ao tempo daquele artº 102º - que LOPES DE FIGUEIREDO considerou ter vindo “resolver dúvidas” e “permitir o recurso a estas escrituras em hipóteses em que não seja o caso de inscrição na matriz” – também se me afigurava que a prova de inscrição na matriz não era um pressuposto para a celebração da escritura (cf. “Código do Notariado”, p. 325).

261

Essa idoneidade é a relativa às testemunhas instrumentárias ex vi do disposto nos art.ºs.º 96º, nº 2, e 84º do C.N. Anteriormente exigia-se que as testemunhas residissem na localidade onde se situava o

107 advertidos de que incorriam em responsabilidade criminal no caso de “dolosamente e prejuízo de outrem, prestarem ou confirmarem declarações falsas”).

No caso de o prédio ter um titular inscrito, não pode ser celebrada a escritura de justificação (nem feito um registo definitivo) ignorando aquela preexistente inscrição e os efeitos dela decorrentes, designadamente os que o art.º 7º do C.R.P. consagra. De facto, ter-se-á de presumir que tal direito lhe continua a pertencer “nos precisos termos em que o registo o define”.

Deste modo, antes de ser efetuada a escritura, o notário deve, “nos termos gerais da lei processual” (nº 5 do art.º 99º) promover a notificação desse titular inscrito ou dos seus herdeiros para que declare(m) se consentem na justificação, interpretando a lei o seu silêncio no sentido de que o consentimento se considera prestado.

Por fim dir-se-á que há também que observar os condicionalismos gerais que respeitam à titulação da transmissão ou reconhecimento de direitos sobre imóveis263.

Depois de lavrada, a escritura deve ser publicada (art.º 100º) e, em princípio (isto é, no caso de não haver oposição) só podem ser passadas certidões decorridos 30 dias após a publicação. Se houver oposição, só “depois de averbada a decisão definitiva da ação” (nº 4 do art.º 101º).