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O MERCADO DO SEXO NO SURINAME: O HABITUAL E A TOLERÂNCIA

3.2 A pauta da reunião: a dívida e o prazo para pagar

De acordo com as mulheres entrevistadas, quando elas chegavam ao clube havia uma reunião com o proprietário na qual lhes eram explicadas as regras da casa. A língua não era problema, pois, caso ele não soubesse português, havia uma gerente brasileira ou um intérprete para ajudar na transmissão das regras:

A hora que você chega, você vai logo pro escritório falar com o dono do clube, e ele passa logo a regra de tudo: “Olha, aqui é assim, assim”. Você é livre pra ir e voltar, mas à noite você tem que estar no horário no clube. Você pode sair o dia todo, passar o dia todo na rua se você quiser, mas você tem que estar aqui no clube oito horas da noite, você tem que entrar, e nove você tem que estar embaixo, no salão. Se você descer nove e meia ou nove e quinze, você já vai pagar multa. (Catarina, 34 anos, manicure, dois filhos, entrevistada em 2011 no Suriname)

É na primeira reunião feita com as mulheres que elas tomam conhecimento do valor da dívida inicial: “Cheguei aqui, ela explicou. Mas quando eu cheguei era outro sistema, entendeu? Ela não disse [no Brasil] o total, quanto nós ia pagar, e quando eu cheguei era muito dinheiro pra pagar, nunca mais terminava de pagar a passagem” (Cláudia, 32 anos, dona de cabaré/cantina e de máquina no garimpo, duas filhas, entrevistada em 2012 no Suriname). No

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momento do convencimento para que as mulheres aceitem a proposta de viagem, não costumam informá-las de quanto será a dívida, dizem apenas que embora elas não tenham dinheiro para tirar passaporte e comprar a passagem de avião, o clube vai arcar com os custos e terão bastante tempo para pagar, de modo que viajam sem saber quanto devem:

– Ela disse pra ti o quê?

– “Tu vai pra um clube. Lá, tu paga a tua passagem.” Não disse que era muito e nem era pouco. Lá, quando chegasse lá, você ia conversar com o dono. No segundo dia ele foi falar com a gente.

– Mas ele falava português? – Não!

– E como é que vocês conversavam com ele? – Tradutor.

– Tradutora? Era uma mulher?

– Homem. Eles eram filipinos, lá do Manilla. (Cláudia, 32 anos, dona de cabaré/cantina e de máquina no garimpo, duas filhas, entrevistada em 2012 no Suriname)

As entrevistadas chamavam de “período de contrato” os três meses que uma mulher tem para pagar a dívida, embora não exista nenhum contrato oficial de prestação de serviços, apenas corresponde ao período legal de permanência no Suriname como turista:

– [...] Nos três meses, que era o contrato. – Ah, então tu tinhas um contrato de três meses? – Tinha.

– Então nesses três meses tu não podias voltar?

– Não, antes de três meses não podia voltar. Quer dizer, você poderia voltar se você pagasse o que você tinha emprestado.

– Não pode pagar depois?

– Não, é três meses que você tem, porque é o [tempo do] visto. (Quirina, 42 anos, vendedora de loja chinesa de roupa, dois filhos, entrevistada em 2011 no Suriname)

Como regra, no período de três meses a dívida inicial pode ser paga em parcelas, cobradas semanalmente. Os valores correspondem a gastos efetuados pelo clube, com acréscimos, para que a mulher chegue a Paramaribo, sobretudo a passagem de avião, o táxi e as taxas para a emissão de documentos pessoais, principalmente o passaporte. O valor da dívida inicial das interlocutoras ficava entre setecentos e dois mil e quinhentos dólares, alto para essas mulheres:

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– E a passagem, ele cobra o mesmo valor quando tu chegas?

– Não, ele cobra mais alto. Eu paguei, na época, setecentos e cinquenta dólar americano. (Quirina, 42 anos, vendedora de loja chinesa de roupa, dois filhos, entrevistada em 2011 no Suriname)

– E aí, quando tu chegas lá, já está devendo desde o táxi?

– Tudo. Comida, tudo. Qualquer comida que eles pagam na estrada pra ti comprar, ela tá incluída no táxi, na passagem, né, porque eles cobram duas passagens; tudo eles cobram dois preços pra ti, nunca cobram só um: táxi, a comida que você come, a taxa de embarque e a passagem. É tudo. Fica devendo. (Yeda, 29 anos, vendedora de loja de máquinas e automotores, dois filhos, entrevistada em 2011 no Suriname)

3.2.1 Dívidas, horários, moradia e multas: regras da engrenagem que faz o

clube ganhar dinheiro

As quatorze mulheres entrevistadas que migraram para clube no Suriname viajaram para esse país, pela primeira vez, entre 1982 e 2007, e seu destino foram os clubes Manilla (cinco mulheres), Seven-to-Seven (três), Aventura (duas), Condor (duas) e Diamond (duas) (Tabela 8) — e só Yeda (29 anos, vendedora de loja de máquinas e automotores, dois filhos, entrevistada em 2011 no Suriname) retornou ao Brasil pensando em ficar definitivamente, mas voltou para o Suriname ao encontrar-se em uma situação financeira difícil. O Seven-to-Seven, o Aventura e o Condor já estavam fechados na época da pesquisa de campo. No caso do Condor, o antigo proprietário o passou para o filho administrar, e este, não tendo sucesso em sua gestão, fechou- o e colocou o prédio à venda — contudo, não dá para saber se os outros dois realmente fecharam ou se mudaram de nome, endereço ou país (muitos proprietários tinham origem holandesa e retornaram ao seu país)398.

398 Trabalho publicado pela Maxi Linder em 2008 (Indept interviews with sex workers from the Dominican Republica and Brazil in Paramaribo and Nieuw Nickerie), citado por SODIREITOS e GAATW-REDLAC (op.

cit., p.50), afirma que o número de clubes registrados na polícia havia diminuído, mas que visitas a locais de prostituição mostraram que, na verdade, eles apenas mudaram de endereço, por isso não apareciam nos registros oficiais; também diz que os clubes de prostituição que constavam nos registros do Ministério da Justiça e da Polícia estavam registrados como hotéis ou discotecas.

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Tabela 8: Ano de chegada das mulheres ao Suriname por clubes de prostituição. Clube de

prostituição

Ano de chegada ao clube

1982 1997 2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 % Manilla - 3 1 - - 1 - - - - 35,7 Seven-to-Seven 1 - - - 1 1 - - 21,4 Aventura - - - 1 1 14,3 Condor - - - 1 1 - - - 14,3 Diamond - 1 - - - - 1 - - - 14,3 Total 1 4 1 1 1 1 2 1 1 1 100

Duas mulheres entrevistadas viajaram duas vezes para o Suriname através de clube de prostituição. Na primeira vez, Cláudia (32 anos, dona de cabaré/cantina e de máquina no garimpo, duas filhas, entrevistada em 2012 no Suriname) foi para o Manilla, de onde fugiu para o garimpo; quando foi deportada pela Guiana Francesa para Belém, estava sem dinheiro e voltou com a passagem paga pelo Seven-to-Seven. Yeda (29 anos, vendedora de loja de máquinas e automotores, dois filhos, entrevistada em 2011 no Suriname) pagou a dívida com o Condor, tempos depois voltou para o Brasil, mas ao encontrar-se novamente em dificuldades financeiras retornou, dessa vez para o Manilla, livre da dívida inicial (uma amiga que ainda trabalhava em clube lhe emprestou o dinheiro da passagem de avião). Outra que voltou ao clube, mas sem ter saído do Suriname, foi Juliana (30 anos, trabalhadora do sexo, sem filhos, entrevistada em 2012 no Suriname): foi pela primeira vez para o Aventura, depois foi para o garimpo, posteriormente retornou ao mesmo clube (quando ficou em Paramaribo, para tratar- se de malária), dessa vez livre da dívida.

Ana (37 anos, cabeleireira e manicure, dois filhos, entrevistada em 2011 no Suriname) também retornou ao clube (Manilla), mas na época trabalhava como cozinheira em outro local: ela alugou o restaurante de um hotel de propriedade do dono do Manilla por seis meses, e nesse tempo morou no alojamento do clube (pagando por isso) junto com as mulheres que trabalhavam como prostitutas. Como conhecia o proprietário, seu trabalho não se limitava ao restaurante: “Eu fui me dando, eu conversava com as meninas que chegava do Brasil e tudo, ia pra Imigração. Ajudava ele, né”. Quando deixou o restaurante voltou a se prostituir no garimpo, até que um cliente a chamou para morar com ele, relação que durou quatro anos; depois ela fez um curso online de cabeleireira e começou a trabalhar nessa área.

Percebe-se que por ter mais experiência e desenvoltura para se comunicar, e maior proximidade com o dono do clube, certas mulheres acabam contribuindo para a sua organização e com a socialização das “novatas”, envolvendo-se na teia de relações que estruturam a

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prostituição sem qualquer direito assegurado, em um país em que a prostituição, apesar de ilegal, tem sido tolerada com arranjos informais de funcionamento de clubes.

3.2.2 Na hora de começar: as “novatas” na prostituição

No clube, a profissional do sexo vira “vitrine”, e adotar a nova vida na prostituição requer mais atenção com o visual — que as entrevistadas chamavam de “banho de loja” —, o que significa um custo considerável para as mulheres no clube, pois apresentar-se bem vestida e maquiada depende exclusivamente do seu dinheiro, e para quem acaba de chegar é necessário investimento: “[no clube] tinha muitas mulheres bonitas. Eu já fui mais me ajeitando, porque eu cheguei aqui bem brega, né, porque toda mulher que vem, chega, né, às vezes não tem nem roupa. Só que, depois, você vai conhecendo, aí você vai ter condições e você vai dando banho de loja, né”(Lara, 52 anos, proprietária de cantina e cabaré, três filhos, entrevistada em 2011 no Suriname).

Apenas três mulheres afirmaram ter experiência na prostituição antes da migração. Em geral as entrevistadas diziam que as que não estavam habituadas ficavam retraídas, não recebiam os clientes no quarto e demonstravam vergonha nos primeiros dias, o que significava que seriam observadas de perto pelo proprietário do clube, pois se não trabalhassem retardariam o pagamento da dívida:

A maioria já fazia. [...] Mas algumas, não. Algumas vinham, nunca... [tinham se prostituído], segundo elas falavam, né, mas algumas, a gente via mesmo que elas não faziam, porque tinha muita vergonha, e até se entrosar com aquilo tudo, era difícil, ficava... não trabalhava, então tinha que fazer strip pra pagar o tíquete [a passagem de avião] — era obrigatório. Meninas que nunca trabalharam [na prostituição], que chegavam e ficavam com vergonha, num canto ali, ficavam travadas mesmo, percebia que elas não faziam aquilo antes. Então eles tinham... “Ah, você não trabalhou, e aí você tem uma conta comigo, uma dívida.” Então, cada strip era cinquenta dólares. [...] você ia fazer strip e aquele dinheiro ia direto pro seu tíquete. Então, se você fizesse todo sábado, ou todo dia, um strip, você ia pagar, só que ele [dono do clube] só permitia um sábado — ou na sexta ou no sábado. Já era mais uma ajuda pra menina pagar o tíquete. (Catarina, 34 anos, manicure, dois filhos, entrevistada em 2011, no Suriname)