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A violência como solução de conflitos: os Noirs Marrons fazem “barulho” e os brasileiros são “doidos”

2.1.3 “Não sei taki-taki”: a língua portuguesa como principal ferramenta de comunicação

2.3 O cabaré dá espaço ao sagrado

2.3.2 A violência como solução de conflitos: os Noirs Marrons fazem “barulho” e os brasileiros são “doidos”

Os brasileiros costumam dizer que os Noirs Marrons não matam, apenas fazem barulho ou atacam em grupo e batem muito no adversário, pois têm medo dos espíritos de seus ancestrais. Richard Price, ao descrever a forma como os Noirs Marrons Saramaka traduzem os acontecimentos cotidianos, afirma que, para eles, as ações do presente podem ter consequências em seu futuro ou no futuro de seus descendentes:

D’après eux, les actions humaines sont à l’origine de tous les maux; de ce fait, leur conception de l’histoire fonctionne à double sens. Non seulement chaque malheur, maladie ou mort découle de telle ou telle mauvaise action accomplie dans le passé, mais encore, chaque délit ou méfait qu’il soit dirigé contre une personne ou une divinité, aura un jour ou l’autre des conséquences néfastes. Si un homme est tué, son esprit entretiendra une volonté de vengeance éternelle à l’encontre de la famille du meurtrier (et les divinités offensées, qu’elles soient serpents ou autres, se vengeront de la même façon). L’offense initiale n’est pas forcément un meurtre, elle peut tout aussi bien n’être qu’un menu larcin ou une atteinte à l’honneur349.

Um motoqueiro com quem eu conversava depois do incidente envolvendo o Noir

Marron no Filão do Macu disse que “esses pretos só fazem barulho”, ou seja, sempre ameaçam

e atiram para amedrontar as pessoas, mas nunca para atingir alguém. Na opinião de um garimpeiro que estava junto conosco na hora da conversa, “Eles têm medo de brasileiro porque eles dizem que somos doidos”. Diferente dos Noirs Marrons, “brasileiro não ameaça, e, se preciso, mata” — e o imaginário de que este é capaz de agir com violência é reforçado por muitos brasileiros como uma maneira de se defender; sempre contam uma história de violência (sobretudo quando há morte) envolvendo um brasileiro, como um recado para aqueles evitarem briga com brasileiros — uma espécie de “guerra de nervos”.

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Percebi o reforço desse imaginário de brasileiro “bravo” ou “doido” quando voltava do garimpo do Macu para Paramaribo. No Suriname o entendimento geral é que brasileiro a caminho do “mato” não tem ouro e está com pouco dinheiro, e que brasileiro a caminho da “rua” está cheio de ouro — e as pessoas preferem receber pelos serviços em ouro. O que significa que eu, por ser brasileira, ao retornar do garimpo carregava ouro, e, por ser mulher, ouro ganho com “facilidade”, na prostituição.

Como eu não possuía o metal precioso, fiquei em situação complicada na hora de pegar a canoa para o porto de Afobaka: falei ao canoeiro Noir Marron que eu não tinha ouro e perguntei se poderia efetuar o pagamento em SRDs. Ele perguntou se alguém me esperava do outro lado com um carro e eu disse que não; ele concordou com o pagamento em dinheiro, fez um cálculo rápido e deu duzentos SRDs. Os outros passageiros, mesmo as mulheres Noirs

Marrons, pagaram em ouro: dois gramas, pesados na hora em sua balança de bolso.

Quando chegamos a Afobaka, o pastor com o qual fui ao garimpo e que retornava comigo desceu primeiro e acertou com um dos motoristas que estavam à espera de passageiros a nossa viagem a Paramaribo, e voltou para me avisar justo no momento em que eu, já com minha mochila e o dinheiro na mão, ia pagar o canoeiro e este se recusava a receber em espécie: queria o pagamento em ouro. Disse-lhe que não tinha, e ele aumentou o tom de voz, recusando- se a receber o dinheiro. Saí da canoa e fiquei na beira do rio, com a mão estendida, e ele gritava em Sranantongo enquanto continuava a descarregar a canoa; dizia coisas que eu não entendia, e não pegava o dinheiro. Ninguém interveio, e eu pedi a um garimpeiro que ainda estava na canoa (e que eu escutara conversar em Sranantongo antes da travessia) para lhe dizer que eu não tinha ouro; de cabeça baixa e em voz baixa, respondeu que não sabia o dialeto. O canoeiro continuava a gritar, e escutei algumas vezes a expressão “ma pampa” (“filha da puta”, em

Sranantongo).

Em momento algum ele demonstrou intenção de me agredir fisicamente, mas depois de tanto insistir para que ele recebesse, entrei no carro. O motorista entendia um pouco de português e de inglês; misturando os dois idiomas, expliquei-lhe o que estava ocorrendo e perguntei se poderia tentar entregar o dinheiro ao canoeiro, e ele concordou — mas aquele continuou se recusando a receber. Segundo o motorista, caso eu não pagasse, não poderíamos sair do local; respondi que eu não sairia do carro, pois me sentia insegura. Ele voltou a conversar com o canoeiro, que propôs que eu pagasse trezentos SRDs. Para encerrar o assunto, paguei e seguimos viagem.

No carro, no qual também viajavam um surinamês (crioulo, como o motorista) e duas crianças (seus filhos), o pastor, indignado, evocava o modo violento como alguns brasileiros

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“famosos” na região haviam resolvido coisas desse tipo, como a morte de um canoeiro Noir

Marron Ndjuka, em Albina350, e os dois gendarmes mortos na Guiana Francesa pelo grupo do Manoelzinho (a que já me referi aqui).E repetiu várias vezes: “É por isso que brasileiro resolve logo, como o Manoelzinho” — apesar de preso no Brasil, Manoelzinho virou referência do contexto de violência na área de garimpo. Quanto aos crioulos, só observavam, calados. Nesse discurso percebe-se que violência e masculinidade aparecem como elementos constitutivos da imagem dos brasileiros no Suriname, reforçando estereótipos como sujeito brigão, violento e beberrão.

Mas, durante a viagem, tentando entender o que ocorrera, conversei com o motorista e o outro surinamês, e o primeiro começou a explicar sobre os diversos grupos de Noirs Marrons no Suriname, falando deles como detentores de “uma regra complicada, por causa de sua cultura”. O que seria complicado e cultural que gerava tantos gritos e nenhum entendimento? Depois de muitas perguntas, consegui entender: quando se trata de estrangeiros (que em sua maioria são brasileiros), a regra é pagar a ida em dinheiro e a volta em ouro. Podem até aceitar o pagamento em dinheiro, desde que a viagem seja prosseguida no carro do sócio do canoeiro (que, por vezes, é alguém da família), que já está à espera, e como eu não peguei o carro do primo do canoeiro que me transportou, quebrei a regra — que, pelo visto, apenas as pessoas que trabalham com transporte conhecem com clareza, por isso ninguém interfere. O problema é que os brasileiros com os quais dialoguei na beira do rio não a conheciam. O desconhecimento de algumas das regras Noirs Marrons, que não são verbalizadas, gera uma série de discussões, que podem acabar em violência física — muitos dos interlocutores no Suriname diziam que eles não respeitam o combinado e, por vezes, pedem mais ouro, uma vez que refazem o cálculo a partir de regras não verbalizadas se se sentem prejudicados, e cobram em voz alta, que é a sua maneira de dialogar.

Armas, tiros, álcool, tristeza, insegurança, solidão, bom humor, solidariedade, esperança e sonhos foram as temáticas e os sentimentos que, pouco a pouco, descortinaram o cenário das

350 Em dezembro de 2009, um canoeiro Noir Marron foi morto por um brasileiro depois de discutirem pelo

pagamento do serviço de transporte de canoa realizado por aquele. Segundo as informações colhidas em campo, o canoeiro recebeu o valor combinado, mas depois decidiu cobrar mais. Discutiram e o brasileiro o matou com uma faca. Depois da sua morte, um grupo de Noirs Marrons atacou um alojamento de brasileiros em Albina, ferindo vários deles, e queimou e saqueou algumas lojas de propriedade de chineses (que vendiam mercadorias a brasileiros). Esse episódio teve grande repercussão e mobilizou autoridades do Brasil, do Suriname e da Guiana Francesa para o socorro às vítimas e na apuração do caso. Num primeiro momento, as autoridades surinamesas e brasileiras (através da Embaixada do Brasil) tiveram a preocupação de verificar se o episódio era isolado ou se havia a possibilidade de ocorrerem outros conflitos, de proporções maiores, entre brasileiros e Noirs Marrons, e ambos os países chegaram à conclusão de que foi um caso isolado, que não havia conflitos ou tensões entre os dois grupos.

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corrutelas e áreas de trabalho no garimpo. E, muitas vezes, perguntei-me o que eu estava fazendo ali. Mas, apesar dos momentos de insegurança, fui muito bem acolhida351 e, em diversas ocasiões, protegida