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A pesquisa de campo foi desenvolvida em várias etapas. Na primeira, realizada em junho de 2011, os esforços foram concentrados em Paramaribo, a maior área urbana do Suriname, com população de 250 mil pessoas (a população total do país é estimada em 480 mil). Os primeiros contatos foram feitos ainda no Aeroporto Internacional Val-de-Cans - Júlio Cezar Ribeiro, em Belém, com passageiros do voo para Paramaribo. Nesse aeroporto, antes de entrar na sala de embarque já dava para identificar quem tomaria o avião rumo à capital surinamesa: homens e mulheres que se aglomeravam na frente do portão de embarque em silêncio, com bilhete e passaporte à vista, e observavam atenta e discretamente uns aos outros — nada do habitual grupo de pessoas com uma revista ou um livro na mão, e a impressão era a de que procuravam rostos conhecidos. No momento de entrar na sala, o grupo tranquilamente

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ficou em fila, e os que vinham atrás olhavam o que faziam os da frente — e a cena insinuava que a maioria fazia sua primeira viagem de avião e sua primeira viagem ao Suriname.

Na sala de espera, uma jovem, Paula, parecia habituada aos procedimentos: em meio ao silêncio da sala, ela simplesmente mexia no celular enquanto esperava o tempo passar. Aproximei-me e iniciei uma conversa sobre o atraso do voo, e ela perguntou se era a primeira vez que eu ia ao Suriname; ao saber que não, quis saber o motivo da viagem, e foi uma chance para falar da pesquisa, sem destacar muito a questão da prostituição, mas evocando a migração de mulheres. Durante a conversa Paula me falou que conhecia uma mulher que trabalhara em clube; perguntei se me apresentaria a essa mulher e ela concordou: ficou de fazer o contato e intermediar. Deu seu telefone e a conversa continuou: ela viera ao Brasil fazer uma cirurgia, e, depois de uns trinta minutos de conversa, contou que também estivera em clube. Falei do meu interesse em escutar sua história, e ela respondeu que não, mas apresentaria pessoas.

Assim, sem muito critério e sem pretensão, foram feitas tentativas de contato com pessoas que pareciam disponíveis na sala de espera do aeroporto. Ali, Paula foi o único contato significativo para a pesquisa, pois as demais tentativas de conversar não foram frutíferas, as pessoas pareciam atentas e apreensivas com a viagem; algumas apenas escutavam (ou observavam) o que eu dizia, e no máximo faziam um sim ou um não com a cabeça, ou murmuravam um “hum-hum” difícil de identificar se era um sim ou um não, mas parecendo uma demonstração de desconforto e desconfiança.

O embarque parecia um velório, todo mundo calado, as pessoas segurando seus pertences de mão sem fazer barulho. Visivelmente, quase todos eram brasileiros, em sua maioria, homens. Durante o voo, um rapaz de aproximadamente 23 anos, que estava sentado ao meu lado, contou que viajava pela primeira vez de avião e que também era a primeira vez que ia ao Suriname; lá trabalharia num garimpo junto com um tio, que o aguardava. Ele me pediu para preencher a sua folha de entrada de estrangeiro no país, e dava para perceber que a aeromoça era bastante solicitada pelos passageiros para o seu preenchimento (alguns tinham uma cópia já preenchida, que lhes servia de exemplo). Era visível que aquele papel, escrito em holandês e em inglês, era um tormento para a maioria daquelas pessoas; também era visível que, muitos, mal sabiam assinar o próprio nome.

Quando o avião já sobrevoava Paramaribo, a aeromoça anunciou, em holandês e inglês, que haveria uma pequena parada em Caiena, antes, por causa do mal tempo, mas todos permaneceriam a bordo. Quando o avião pousou nessa cidade, formou-se uma fila enorme no corredor do avião, de passageiros que se preparavam para descer, pois não tinham compreendido nada do que ela anunciara. Alguns minutos depois, em meio ao burburinho de

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vozes que questionavam por que a porta do avião não abriu, uma voz masculina (um surinamês), falando lentamente um português simples, mas compreensível, explicou que o avião estava em solo da Guiana Francesa e que todos deveriam aguardar sentados — não demorou e o erro virou motivo de riso. Se fosse um caso de emergência, todos estariam em perigo, pois poucos ali entenderam de imediato o que estava acontecendo58.

Depois do desembarque em Paramaribo, o desafio era identificar potenciais contatos para a pesquisa. O local em que me instalei nessa cidade ficava justo onde a Tourtonnelaan se transforma em Anamoestraat, nas proximidades do Klein Belém, área que consegue dispersar o cheiro de masala, que perfuma parte da culinária surinamesa: nela o aroma vem de temperos e comida brasileiros, que exalam pelas ruas, como o do churrasco e o de pratos nordestinos.

Essa primeira etapa em campo foi marcada por um período de calma para os brasileiros no Suriname, pois grande número deles havia sido regulamentado pouco antes, e as pessoas circulavam mais pelas ruas do Klein Belém: o vaivém de pessoas ia até tarde da noite, o que dava a impressão de estar no Brasil59.

Depois de uma semana em Paramaribo, liguei para Paula, e ela ficou de retornar a ligação; duas semanas depois, telefonei novamente, e ela ainda não conseguira falar com as pessoas, pois estavam no garimpo, mas uma amiga sua aceitara ser entrevistada. Marcamos e fomos juntas na casa da amiga, e a primeira entrevista foi feita. Paula aguardou o final e disse que outra amiga sua daria entrevista, e já estava esperando — mas, antes de ir, outra brasileira, que morava na parte de cima da casa, foi entrevistada. Depois pegamos um táxi e fomos ao encontro da terceira entrevistada, uma brasileira que vivia com uma mulher, sua companheira, e um brasileiro, os três trabalhando com serviços ligados a estética e beleza na própria residência. O tempo entre um contato e outro era muito dinâmico e rápido, pois as pessoas chegavam a Paramaribo ou iam para o garimpo (no Suriname mesmo ou na Guiana Francesa)

58 A Surinam Airways, por muito tempo única responsável pelos voos entre o Brasil e o Suriname, até o primeiro

semestre de 2011 só fazia a comunicação em holandês e inglês (duas línguas, como é usual), mas esse voo tem, como maioria dos passageiros, brasileiros que só conhecem o português. No segundo semestre desse ano ocorreram alterações significativas na empresa, pois foram contratadas funcionárias que também falam português, seguindo um pouco a tendência de muitos comércios em Paramaribo, que têm uma vendedora para atender brasileiros, que são clientes assíduos e de recursos, e sempre pagam em dinheiro. Agora, durante o check-in e o voo há uma pessoa que fala português, o que possibilita a comunicação com os passageiros de origem brasileira, e a língua também foi incluída na transmissão das informações durante o voo. Em agosto de 2015 a Gol, companhia aérea brasileira, começou a fazer voos de Belém para o Suriname, e adota o mesmo procedimento da Surinam Airways com relação à adoção da língua portuguesa nos informes do voo.

59 No Suriname não é comum as pessoas circularem a pé durante a noite pelas ruas, o comércio fecha cedo, por

volta de 17h (apenas as lojas de chineses costumam ficar aberta durante parte da noite, principalmente aquelas nas proximidades do Klein Belém), e o transporte coletivo, que já é insuficiente, vai reduzindo aos poucos logo que anoitece.

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rapidamente, seguindo o ritmo de vida dos brasileiros nesse território, constantemente em circulação.

Ao terminar a entrevista houve oportunidade de realizar uma outra (a quarta), com uma mulher que estava ali fazendo o cabelo. Na mesma semana retornei a essa casa para entrevistar duas brasileiras; ambas trabalhavam no garimpo, uma como cozinheira, uma na prostituição, mas esta última desistiu porque estava cansada: não dormira na noite anterior porque acompanhara o namorado em visitas a cassinos da cidade (para jogar) — e contava para as amigas como tinha sido a noite e sobre o presente que ele lhe dera: uma quantia em dólares60.

Nessa primeira etapa em Paramaribo, as histórias de vida registradas permitiram compreender a circulação dos brasileiros pelo Suriname, mas já aí deu para perceber a necessidade de retornar ao campo para aprofundar as questões levantadas e seguir pistas que emergiram desses contatos. Também nessa primeira etapa houve oportunidade de visitar um garimpo explorado por Noirs Marrons (visita abordada na Parte I).

Na época procurei a Embaixada do Brasil em Paramaribo, que foi muito receptiva e deu várias informações, as quais conduziram ao encontro de brasileiros que colaboravam com ela e com o escritório da Adidância da Polícia Federal brasileira instalada no Suriname. Também estive no Centro Cultural Brasil-Suriname, onde acompanhei uma reunião entre o Consulado do Brasil e o Conselho de Representantes de Brasileiros no Exterior (CRBE)61, o que facilitou a intermediação para, posteriormente, pesquisar em áreas de garimpos.