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2.1.3 “Não sei taki-taki”: a língua portuguesa como principal ferramenta de comunicação

2.2 Os perigos da floresta: o ouro que atrai o perigo

2.2.3 Uma área de trabalho no garimpo: o Filão do Macu

A corrutela do Macu estava pouco movimentada, não havia muita gente para encontrar. Na ocasião ocorria o deslocamento de pessoas que seguiam a fofoca do ouro para o Filão do Macu, uma nova área de exploração de ouro, a uns trinta minutos de moto da corrutela, onde, a cada dia, instalavam-se mais garimpeiros. Cleonice (42 anos, proprietária de cabaré, três filhos, entrevistada em 2012 no Suriname) falou que tinha “muitos homens lá. Os homens não vêm mais pra cá, os homens ficam pra lá”— e “pra lá” segui no início da tarde do dia seguinte ao da minha chegada, como quem segue a fofoca, depois de uma longa negociação do valor, em espécie, da moto que me transportaria, pois tudo é pago em ouro, que eu não tinha. Além disso, ninguém vai ao garimpo se não for para ganhar ouro, e minha presença não estava vinculada a ganho financeiro (ou a uma emissora de televisão). Coincidentemente, o motoqueiro era irmão da proprietária do bar onde ele se encontrava quando o procurei, e ao chegar ao local fui reconhecida por uma mulher que eu havia entrevistado em 2011 em Paramaribo, onde ela então morava — na época, trabalhava como cabelereira em sua própria casa e estava abrindo um salão de beleza em sociedade com um amigo. Quando nos encontramos no bar, ela bebia em companhia de um homem, e estava visivelmente embriagada. Contou-me que estava vendendo roupas, e, em lágrimas, desabafou que se encontrava em situação irregular, pois não fora à cidade renovar o documento que autorizava sua permanência no país. Ela se apressou em me apresentar para a dona do bar e a seu irmão; este, depois de eu muito explicar que não tinha ouro, desconfiado (sobretudo por ter escutado minha conversa com a entrevistada do ano anterior), aceitou me levar, mas disse que não me esperaria mais que meia hora para retornar. Ao chegar ao Filão do Macu (Figura 22) pude ver a dimensão de uma área de garimpo alimentada pela fofoca do ouro: havia ali um aglomerado de barracos, barulho constante de motor e intensa circulação de pessoas.

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Figura 22: Entrada do Filão do Macu, Suriname (2012).

Numa área de garimpo, as principais atividades são desenvolvidas por cozinheiras e garimpeiros, duas funções inseparáveis. No Macu o trabalho começou a ser realizado com a construção de um poço, para permitir a entrada e a saída dos homens, e a retirada de terra e pedra (figura 23). Cleonice (42 anos, proprietária de cabaré, três filhos, entrevistada em 2012 no Suriname) havia explicado que “Moinho é um poço que a pessoa fura; os homens trabalham de 30 a 40 metros, até 60 metros dentro, os brasileiros. E vão emadeirando; poço, sabe? Então, tem mais de quinze poços lá [no Filão do Macu]”. Geralmente esses poços funcionam vinte e quatro horas, uma vez que os homens não dependem de luz natural para trabalhar: “Os homens pegam o serviço seis da manhã e vão largar amanhã seis da manhã. Aí, os que largaram seis da manhã estão dormindo agora, vão acordar onze horas, meio-dia, pra comer. Aí, vão beber cachaça” (Cleonice, 42 anos, proprietária de cabaré, três filhos, entrevistada em 2012 no Suriname). As pedras retiradas do poço são quebradas com uma marreta e trituradas em um moinho, até se aproximarem da consistência da areia (como se fosse uma argila), e só depois, na lavagem, começa o processo de extração do ouro. Na quebra das pedras, as mãos e o rosto são as partes do corpo mais vulneráveis, e todo o trabalho é realizado sem equipamentos de segurança.

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Figura 23: Poço construído para a entrada e a saída

de homens, e retirada de material (terra e pedra) no Filão do Macu, Suriname (2012).

O motoqueiro que estava comigo havia se afastado um pouco e eu conversava com um garimpeiro dono de máquina que coordenava um grupo empenhado na mineração de um dos vários poços instalados na área; quando ele retornou, avisou que o pastor da corrutela do Macu estava ali — e pediu para eu não comentar com ele que cobrara pelo transporte, porque se ele soubesse ia lhe “encher o saco”. Em seguida chegou o pastor, e reclamou porque eu não havia dito que iria até o local, pois teria providenciado o transporte; combinamos que eu ficaria até o final do dia e ele garantiria que um membro da igreja me levasse de volta.

Fiquei mais tranquila para prosseguir a pesquisa no local. O homem com quem eu conversava me levou até a cozinha, onde estavam os outros trabalhadores, que conversavam e assistiam a um programa de televisão de uma emissora brasileira, pois as antenas parabólicas permitiam isso (Figura 24) — uma pausa obrigatória, uma vez que uma das máquinas estava com problemas e eles aguardavam a chegada de uma peça para o seu conserto. Na cozinha, insistiram para que eu entrasse no poço e fizesse fotos lá dentro; garantiram que era seguro e que me ajudariam, mas agradeci e disse que não tinha tanta coragem assim, e eles riram. Ter sido apresentada aos garimpeiros pelo dono da máquina e responsável pelo “serviço” facilitou enormemente minha circulação pelo local.

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Figura 24: Antena Parabólica instalada para captação de sinal de canais de TV

brasileiros no garimpo Filão do Macu, Suriname (2012).

Na área de trabalho, cada barraco tem uma função na organização geral. Em meio a eles, os garimpeiros me apresentaram os principais: os pequenos barracos que cobriam o poço e os equipamentos, o barraco em que a cozinheira preparava e servia as refeições, os barracos que serviam de dormitório344, nos quais estavam estendidas diversas redes, e, por último, o barraco da cozinheira (o único fechado com madeira ou lona preta), que os garimpeiros chamam de “fuscão” — pode-se dizer que é seu espaço privado345. A Figura 25 mostra alguns desses

barracos.

Figura 25: Barracos do Filão do Macu, Suriname (2012).

Depois de circular pela área e entrevistar cozinheiras e garimpeiros, fui ao pequeno cabaré (um salão aberto, sem paredes), e lá estava o pastor que viajara comigo fazendo a

344 Geralmente grande, sem paredes, coberto de lona, comporta várias redes, para os garimpeiros que trabalham

para o mesmo “dono do serviço” (o dono da máquina ou negociador do local onde foi instalado o poço); o “dono” é o responsável pelo pagamento dos garimpeiros e da cozinheira, o pagamento do percentual do Noir Marron responsável pela terra onde está a área explorada e organizador da partilha do ouro retirado no local.

345 “A cozinheira tem o seu fuscão, que é por obrigação ter o lugar da cozinheira, e tem o barraco dos garimpeiros.

[...] O fuscão é da cozinheira. Tudo coberto com plástico, aqueles plásticos preto: esse é o fuscão. Todo garimpo tem um fuscão, que é o da cozinheira. Ou, então, deve ter uns dois fuscão, que é da cozinheira, e o [do] dono do barraco com a esposa. [...] Dos trabalhadores, é um barracão” (Quirina, 42 anos, vendedora de loja chinesa de roupa, dois filhos, entrevistada em 2011 no Suriname).

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instalação do microfone e da caixa de som para a realização de um culto evangélico no local. Nesse momento tocava música evangélica, uma maneira de anunciar que a igreja, na figura do pastor, estava presente. Eu navegarei, um dos hinos tocados, bem conhecido no Brasil por várias igrejas evangélicas, chamou a atenção de todos na área.

A realização do culto parecia um evento social para os garimpeiros. Fiquei sabendo que aquele dia não era diferente: evangélicos ou não, eles marcam presença quando os cultos são realizados no garimpo; alguns são membros oficiais de uma igreja evangélica, mas a maioria é de frequentadores. Para a igreja, qualquer que ela seja, o evento ganha maior simbologia, por ser realizado em um espaço do “pecado”, o cabaré. Aliás, na corrutela de Benzdorp, a narrativa sobre a instalação, nela, da primeira igreja evangélica brasileira, está associada ao fechamento de um cabaré para a instalação de um templo da Assembleia de Deus, resultado de uma promessa da proprietária daquele. Marjo de Theije, que tem estudado a presença de migrantes brasileiros no Suriname e a religião, conta que escutou diversas versões sobre a história do cabaré que em 2000 virou igreja naquela corrutela:

Aconteceu no ano 2000. Expulsos da região por um grupo de surinamenses, os brasileiros foram perseguidos até a pista de aterrissagem à beira do rio, onde ficavam as canoas, e entraram em desespero. O que eles poderiam fazer para voltar e recuperar seus pertences? Um deles era a Dona Maria, a quem muitos consideram a fundadora de Benzdorp porque em 1998 foi a primeira a abrir um bar e bordel na região. Dona Maria começou a rezar e prometeu entregar o bordel para ser uma casa de Deus, se os brasileiros pudessem retornar à área de mineração. Assim foi. A polícia veio restaurar a lei e a ordem e os garimpeiros voltaram para seus locais de trabalho e o cabaré mais antigo de Benzdorp se tornou uma igreja da Assembléia de Deus346.

Essa narrativa é reproduzida por pastores quando falam das igrejas evangélicas brasileiras no Suriname, e faz parte de temáticas de pregação em alguns momentos dos cultos, como marco de sua entrada naquela região de garimpo e resultado do poder de Deus. Para Theije, o surgimento de povoados (como Benzdorp) em torno de um bordel não é novidade, contudo um bordel em pleno funcionamento virar igreja é “notável e parece sintetizar dois elementos importantes da vida do garimpeiro: prostituição e crença religiosa”347.

346 THEIJE, Marjo de. Ouro e Deus: sobre a relação entre prosperidade, moralidade e religião nos campos de ouro

do Suriname. Religião & Sociedade, v.28, n.1, p.69-83, jul. 2008 (p.69).

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