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2.1.3 “Não sei taki-taki”: a língua portuguesa como principal ferramenta de comunicação

2.2 Os perigos da floresta: o ouro que atrai o perigo

2.2.1 Garimpos em pequena escala no Suriname

A cada conversa com os interlocutores eles queriam saber se eu já tinha ido ao garimpo. Diante da minha resposta negativa, diziam “Você tem que ir, é lá que você vai ver como as coisas funcionam”, e complementavam que era fácil chegar: dependendo do garimpo, era só pegar um carro ou um avião, depois uma canoa e, por fim, uma moto 4x4 — mas não havia nenhum perigo. Alguns até prometeram que, se eu quisesse, quando fossem me levariam308.

Também diziam, com frequência, que “o garimpo hoje está civilizado, não é mais como antes” — “antes” refere-se ao início da migração dos garimpeiros, na década de 1990. Segundo os

307 Em 2012, quando retornei ao Suriname, esbarrei com essa jovem em dois momentos: uma vez em um

supermercado, uma vez em um salão de beleza, nas proximidades do Diamond. Tentei estabelecer uma conversa com ela, mas não tive sucesso, pois sua passagem pelos locais foi rápida e não pareceu querer falar com uma estranha.

308 Uma das interlocutoras de 2012, Cláudia (32 anos, duas filhas, entrevistada em 2012 no Suriname), dona de

cabaré/cantina e de uma máquina de extração de ouro em um garimpo na Guiana Francesa, tentou me convencer a acompanhá-la até a área em que ela trabalhava, garantiu que não havia risco de fiscalização — em uma viagem de oito horas de canoa. Como teria que passar ilegalmente pela fronteira, agradeci e recusei.

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interlocutores, no garimpo tinha tudo que as pessoas precisam: telefone, casa de madeira, fogão a gás (“antes” cozinhavam em fogão a lenha) e até televisão.

Desde o campo de 2011, ficou claro que para compreender a circulação de brasileiras/os nas Guianas, especialmente no Suriname, era preciso fazer o caminho da “rua” para o “mato”: de Paramaribo para o garimpo. Assim, depois de me sentir menos tensa e mais familiarizada com os códigos dos brasileiros no Suriname, decidi ir ao garimpo, para entender a sua circulação por ele. A partir daí, era preciso encontrar uma maneira segura de chegar às áreas de mineração.

O Beoyo, garimpo visitado em 2011, fica bem perto de Paramaribo e era considerado de fácil acesso pelos brasileiros. A visita foi possível a partir de um contato realizado por um brasileiro com um oficial da polícia surinamesa — que nos levou em seu dia de folga309. A viagem, de carro, foi feita em uma manhã de sábado, em agosto daquele ano, num percurso de aproximadamente duas horas. Logo no início da estrada que dava acesso ao Beoyo havia várias pequenas casas de madeira abandonadas, destruídas pelo tempo, que lembravam uma pequena vila, como as que os brasileiros chamam de corrutela (ou currutela)310. O garimpo, estilo baixão311 (Figura 13), era explorado apenas pelos Noirs Marrons — o que só descobri no trajeto até ele.

Figura 13: O garimpo Beoyo, explorado por Noirs

Marrons no Suriname (2011).

309 Uma maneira de ganhar um dinheiro extra no Suriname é fazendo transporte de pessoas, um “bico” como é

chamado no Brasil.

310 Pequenos povoados com residências improvisadas, um pouco afastadas do local de mineração de ouro, onde

moram principalmente comerciantes e ficam a igreja, os cabarés e os comércios. Neles, tudo é negociado em gramas de ouro, que é a moeda local.

311 Baixão é o nome utilizado pelos garimpeiros para designar um terreno onde se explora o ouro, área que

normalmente tem uma grota próxima, na qual utilizam um instrumento chamado bico de jato (ligado a uma máquina) como uma grande mangueira com a qual jogam água sobre o solo. Nos locais acessíveis, a terra é revirada por retroescavadeiras (ret) antes de os homens começarem a trabalhar com bico de jato. Na terra firme, também há garimpagem de poço e garimpagem na água.

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Como já colocado, 22% da população surinamesa é composta pelos Noirs Marrons, nomenclatura utilizada para denominar os escravos que fugiram para a floresta durante o período de escravatura e colonização holandês, e que atualmente é solicitada para seus descendentes.

Os Noirs Marrons surinameses são divididos em seis grupos sociais312 que estão

espalhados pelo Suriname e pelo oeste da Guiana Francesa313: Saramacás (ou Saramakas),

Ndjukas (ou Okanisi), Matawai, Kwinti, Paamakas, Boni (ou Aluku)314 (Figura 14). Segundo

Maria Stela de Campos França, são nomes de rios, exceto Ndjukas, que se refere ao som emitido por um pássaro. Em sua tese a autora traça o caminho tomado pelos escravos fugitivos até resultar na formação dos grupos sociais Noirs Marrons: “Até 1760 os escravos foragidos dirigiam-se para o sul do país e formaram os grupos ndjuka, saamaka e matawai. Depois de 1760, com a rota para o sul bloqueada, os outros grupos permanecem mais próximos das plantações, e formam os grupos kwinti, paamaka e aluku ou boni”315.

312 Os seis grupos sociais de Noirs Marrons surinameses vivem uma filiação matrilinear, de modo que a linhagem

da mãe é predominante no que se refere a “les droits d’heritage, la succession politique et religieuse, et l’identité sociale”; os homens podem ter mais de uma esposa, contudo cada uma viverá em sua própria casa (PRICE e PRICE Sally, op. cit., p.24).

313 Os Noirs Marrons que vivem na Guiana Francesa são originários do Suriname, e sua chegada a ela é decorrência

de momentos históricos surinameses. Entre os acontecimentos que os impulsionaram a se afastar de seus locais de origem pode-se destacar: as guerras entre colonos e marrons (século XVIII); a guerra civil (ocorrida no período 1986-1992) e a ditadura militar (vigente no período 1980-1991); e a construção da usina hidrelétrica de Afobaka (entre 1960-1964). Ver PRICE e PRICE, op. cit.; PRICE, Richard. Peuple Saramaka contre État du Suriname:

combat pour la forêt et les droits de l’homme. Paris: IRD, Karthala/Ciresc, 2012 (Coll. Esclavages).

314 A respeito, ver DUPUY, Francis. Des esclaves marrons aux Bushinenge: le marronnage et ses suites dans la

région des Guyanes. Cahier d’histoire - revue d’histoire critique, n.89, p.29-39, 2002; PRICE e PRICE, op. cit.; HÖFS, op. cit.

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Figura 14: Localização das terras dos Noirs Marrons316 no

Suriname e principais áreas de garimpo317 do país (mapa

elaborado por Richard Price318 e informações da tese de Rafael

Oliveira319 para localização das principais áreas de garimpo

concentradas nas terras de Ndjuka e Saramaka).

Eles estão divididos em dois grupos linguísticos, Ndjuka e Saramaka, que possuem elementos, além das línguas africanas, das línguas holandesa, inglesa, ameríndia do caribe e

Arawaks. A língua Saramaka também tem influência do português, devido à presença, no

Suriname, de judeus brasileiros proprietários de terras no período colonial, e muitos dos fugitivos eram escravos dessas terras320.

Os brasileiros que estão no Suriname costumam se referir a eles como “pretos da terra”, “pretos do mato”, “pretos”, “marrons”321 e “morenos”, para diferenciá-los dos crioulos, estes

concentrados, em sua maioria, em Paramaribo. A estes, por vezes se referem como “pretos da cidade”, só em raras exceções como crioulos. Um dos interlocutores, José Paulo Ribeiro (50

316 PRICE, Richard. Les premiers temps: la conception de l’histoire des marrons saamaka. La Roque d'Anthéron:

Vents d’ailleurs, 2013, p.12.

317 Cf. OLIVEIRA, Mobilidades transgressoras, geografias ignoradas: itinerários e emaranhamentos envolvendo territorialidades de garimpeiros no Suriname, op. cit.

318 PRICE, Les premiers temps: la conception de l’histoire des marrons saamaka, op. cit.

319 OLIVEIRA, Mobilidades transgressoras, geografias ignoradas: itinerários e emaranhamentos envolvendo territorialidades de garimpeiros no Suriname, op. cit.

320 Ibidem.

321 Mesmo os interlocutores que usavam o termo marrom, o faziam com pouca frequência, e parecia que o

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anos, dono de máquina no garimpo, três filhos, entrevistado em 2011 no Suriname), explicou o motivo pelo qual o brasileiro faz essa distinção, que está ligada à denominação, em

Sranantongo: “os negros da cidade são considerados fotonengre, ou crioulo da cidade [...], busnengre [crioulo], do mato; busi é mato e foto é cidade”.

No Suriname a diferenciação entre marrons e crioulos teve início, segundo Maria Stela de Campos França, na formação de comunidades de escravos fugitivos na floresta, ainda no século XVIII, uma vez que os marrons não aceitavam em seus grupos os negros fugitivos nascidos no Suriname, os crioulos; só aceitavam os que vieram da África:

Portanto, no tempo das marronagens, marrons e crioulos eram distinguidos pelo lugar de nascimento, sendo essa distinção aplicada por parte dos marrons aos escravos nascidos no Suriname, fossem foragidos ou não. Historicamente, esse é o primeiro momento de distinção entre marrons e crioulos322.

A autora acrescenta que, além do critério de nascimento na África, os marrons consideravam os “os negros da cidade” como “crioulos”, mesmo sendo fugitivos, porque levavam em consideração o fato de “morarem nas proximidades da cidade, [...] não terem enfrentado o ambiente rude e pouco explorado do interior, e [...] não terem construído seu lar na floresta”323. Rudolf van Lier assinala que o grupo crioulo passou por um processo de

afirmação a partir de negociações com outros grupos além dos Noirs Marrons, caso dos descendentes de europeus e dos asiáticos que migraram para o Suriname, e destaca três pontos: primeiro, a referência a eles como crioulos se deu pelo fato de se tratarem de escravos que nasceram no Suriname; em seguida, essa classificação foi ampliada, sendo incluída, nela, qualquer pessoa que nasceu no país; por último, com a chegada dos asiáticos, passou a ser designada como crioulo qualquer pessoa de cor escura nascida no Suriname, excluindo-se os

Noirs Marrons e os indianos, que, embora também tenham a pele escura, são incluídos como

outros grupos separados — nesse sentido, crioulo volta a expressar a ideia de pessoa urbana de pele escura324.

Fernando Rosa Ribeiro aponta que a distinção entre os grupos tem seus laços com a diferenciação política e social presente na sociedade surinamesa:

322 FRANÇA, op. cit., p.88. 323 Ibidem, p.88.

324 VAN LIER, Rudolf A. J. (Frontier society: a social analysis of the history of Surinam. The Hague: Martinus

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“Crioulo” (plural Creolen): nome usado historicamente no Suriname para designar os negros e mestiços habitantes da costa, e que constituem a maior parte da população negra do país. Até os anos de 1950 existia uma diferenciação importante entre os mestiços (kleurlingen) e os negros (negers), com a existência inclusive de partidos políticos separados para ambos os grupos após a Segunda Guerra Mundial. Os mestiços — especialmente os mestiços claros — eram a elite colonial325.

Os Noirs Marrons têm atuação significativa nos garimpos de pequena escala no Suriname, seja diretamente na exploração mineral, seja como administradores ou controladores das áreas de garimpo, e principalmente no transporte de pessoas e mercadorias em canoas pelos rios em direção a garimpos326.

Eles são os principais parceiros ou negociadores dos brasileiros nas áreas de garimpo, nas quais os códigos e regras sociais passam pelo acordo verbal entre os dois grupos, seguindo os preceitos daqueles, que são liderados por um chefe tradicional327. Essa proximidade ocorre nas áreas de exploração mineral de pequena escala praticada pelos brasileiros, nas quais os

Noirs Marrons moram e ditam as regras — e das quais se consideram detentores. Legalmente

eles não têm o direito de exploração das terras onde vivem nem de sublocação delas para extração mineral; no entanto, como explica Rafael Oliveira,

De posse do discurso de direito conquistado pela ancestralidade da ocupação de seus antepassados que fugiram para a floresta e formaram os primeiros assentamentos quilombolas, durante o período da escravidão, os quilombolas empregam grupos de garimpeiros (em sua maioria em condição ilegal no país), estabelecem regras, fiscalizam e cobram taxas/impostos. Diante da quase inexistente presença do Estado nessas áreas, essas práticas acontecem livremente, sem controle e pagamento oficial de tributos sobre os recursos extraídos pela atividade garimpeira. Sendo assim, a atividade de mineração do ouro em pequena escala, responsável atualmente pelo maior volume produzido no país, circula livremente nos comércios das corrutelas e das demais cidades do país, sem falar na expressiva fuga de capitais ocasionada pelo contrabando e pela remessa ilegal de ouro para o Brasil, Guiana e Guiana Francesa328.

325 RIBEIRO, A construção da nação (pós-)colonial: África do Sul e Suriname, 1933-1948, op. cit., p.508, nota

13.

326 PRICE e PRICE, op. cit.; OLIVEIRA, Mobilidades transgressoras, geografias ignoradas: itinerários e emaranhamentos envolvendo territorialidades de garimpeiros no Suriname, op. cit.

327 De acordo com Fernando Rosa Ribeiro (A construção da nação (pós-)colonial: África do Sul e Suriname, 1933-

1948, op. cit.), a política colonial sempre foi mantê-los no interior do país, em suas próprias comunidades, sob o controle dos chefes tradicionais.

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A estrada que leva ao garimpo do Beoyo fica no meio da floresta, e não tem nenhuma infraestrutura, mas, de tão habituadas, as pessoas já não percebem as condições difíceis de acesso a ele. A estrada de chão tinha muitos buracos e poças d’água (tinha chovido), e quando o carro passava por eles eu tinha a impressão de que seria lançada para fora dele.

O oficial da polícia surinamesa que nos levou, um crioulo alto e corpulento, tinha uma pick-up cabine dupla, com tração nas quatro rodas (devido às condições da estrada, dificilmente outro veículo poderia rodar por ela). Ao iniciar o percurso, estava à paisana; sempre muito gentil, fez um interrogatório a respeito da pesquisa e, em determinado momento, surpreendeu- nos ao dizer que não seriam encontrados brasileiros nesse garimpo. A surpresa não ficou por aí: já próximo a ele, parou o carro, trocou a camisa por uma do tipo camuflada, como as usadas pelo Exército329, retirou uma arma do porta-luvas e a deixou sobre a perna, cobrindo-a com a camisa. Fiquei apreensiva, pois haviam dito antes de partir que era um garimpo de fácil acesso e sem problemas.

Depois que concluiu sua “organização”, ligou o carro e disse que não era para falar nenhuma palavra em português durante a visita, pois era uma área de garimpo de Noirs Marrons que não gostavam da presença brasileira; perguntei se poderia filmar e fazer fotos, e ele não fez objeção — mas, durante a visita, o tempo todo me pressionou para fazer as coisas rapidamente, para irmos embora. Ao chegar ao garimpo ele conversou com um grupo de homens sentados na entrada e, em seguida, iniciamos a visita; pareceu-nos que ele apenas comunicou que iríamos dar uma olhada.

Quando eu tirava fotos de determinada parte da área, ele falou em Sranantongo com um dos Noirs Marrons sobre a nossa presença; explicou que não se tratavam de jornalistas, mas de pessoas da universidade, que não trariam problemas — referindo-se ao fato de que a imprensa escreve sobre a degradação ambiental, o que dificulta o trabalho deles. Percebi que falavam a respeito da câmera, e o brasileiro que estava conosco, que compreende e fala muito bem aquela língua, e traduziu o teor do diálogo, disse que não havia motivo para preocupação, que não existia possibilidade de violência caso eles descobrissem que éramos brasileiros, uma vez que não existia conflito entre os dois grupos. De alguma maneira, ambos mantinham boa relação no Suriname; existiam diferenças culturais, mas não conflitos interétnicos.

329 Com a visita ao garimpo do Macu, em 2012, percebi que estar com uma camisa camuflada demonstra

autoridade; muitas vezes, quem as veste são os seguranças das áreas de exploração de ouro, que, de maneira geral, são Noirs Marrons. Na visita ao Macu eles estavam presentes nas áreas exploradas por brasileiros, e eram visíveis nelas e em algum ponto da estrada de acesso a elas.

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Encerramos a visita e voltamos a Paramaribo sem muitas informações sobre o Beoyo e as pessoas que estavam ali. No entanto, da mesma forma que os brasileiros (como veremos depois, no Macu), os garimpeiros Noirs Marrons, cidadãos surinameses, também se aventuram sem equipamentos de segurança de trabalho e sem direitos trabalhistas em áreas de garimpos, pois não existe regulação do governo para a exploração mineral em pequena escala — aliás, uma reivindicação do setor organizado dos garimpeiros no país, caso da Fundação Brasur.

A Figura 15 dá uma ideia sobre o esforço físico requerido para manusear os jatos d’água que esses homens utilizam. A força da água é capaz de jogá-los no chão ou contribuir para o desabamento de terra sobre eles330, algo corriqueiro. No Beoyo, a única proteção que usavam

era uma bota plástica, para não escorregar, e um boné, para proteger do sol.

Figura 15: Garimpeiros Noirs Marrons manuseando o bico de

jato d’água no garimpo Beoyo, Suriname (2011).