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2.1.3 “Não sei taki-taki”: a língua portuguesa como principal ferramenta de comunicação

2.3 O cabaré dá espaço ao sagrado

2.3.3 Marcador social: a nacionalidade das mulheres

Na Guiana e no Suriname a abolição da escravidão faz parte do calendário nacional, é costume comemorá-la com uma grande festa, na qual são vendidos comidas típicas e artesanato, e há shows352 gratuitos. Nos dois países a população crioula costuma frequentar essas festas com trajes e adornos típicos africanos, e as mulheres capricham no visual; as famílias chegam juntas, sempre sorridentes e receptivas. No Suriname a abolição da escravidão (o Keti Koti) significa correntes quebradas353. Em 2011 presenciei esse momento em Paramaribo, quando circulei entre as centenas de pessoas que estavam na festa — ao anoitecer, o número de participantes se multiplicou —, nos arredores do Parque das Palmeiras (Palmentuin). Perguntei a algumas mulheres se podia fotografá-las e elas imediatamente concordaram (Figura 27).

351 Não gastei com alimentação e hospedagem, e onde eu chegava perguntavam se eu havia almoçado ou jantado.

Na corrutela do Macu minhas refeições foram oferecidas por uma família, membro da Ministério de Madureira, que avisou, desde o primeiro dia, que elas seriam feitas em sua casa: na verdade, não apenas eu, também o pastor que viajou comigo, o pastor da igreja presente na corrutela e sua esposa, e mais dois membros da igreja, e, por vezes, quem aparecia na hora — momentos que me ajudaram a estabelecer contato com várias pessoas. Uma mulher, dona de um dos restaurantes da corrutela, insistindo para que eu recebesse uma garrafa de água mineral, disse: “Toma essa garrafa de água, para não dizer que não te ajudei em nada, e, à noite, vem jantar conosco”.

352 Diversos cantores, grupos musicais e de dança, locais ou de países vizinhos, se apresentam na festa.

353 Uma data comemorativa de significado especial para os crioulos, que fazem questão de participar da festa. Os Noirs Marrons não se sentem contemplados com a abolição de 1863, pois já viviam no interior da floresta após a

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Figura 27: Festa comemorativa do fim da escravidão no Suriname, no Parque

das Palmeiras, em Paramaribo (2011).

Em 2012 estive na festa comemorativa da abolição da escravidão que aconteceu no Parque Nacional (National Park), em Georgetown. Também lá as pessoas desfilavam, posavam para fotos para quem quisesse tirá-las — a impressão é que tirar fotos fazia parte do ritual. Diferente do Suriname, na Guiana a festa parecia mais estruturada, os trajes eram mais luxuosos, aparentando maior poder aquisitivo de algumas pessoas (Figura 28). Até o presidente e a primeira dama compareceram, além de outras autoridades locais. Como no Suriname, pedi autorização para algumas mulheres, para fazer fotos, e elas também permitiam prontamente. Contudo, algumas me perguntaram de que país eu era, e quando respondi “Brasil” o contato amistoso foi desfeito: uma interrompeu a conversa e perguntou se eu morava em Georgetown — com a minha negativa, ela então concordou: “Então pode tirar a foto”. Outra, depois que tirei a foto, quis saber a minha origem, e ao saber desfez o lindo sorriso que havia feito no primeiro contato, interrompeu a conversa, desconfiada, e se retirou. Houve um grupo de mulheres em que a situação foi ainda mais embaraçosa: enquanto faziam a pose, uma delas perguntou se eu era brasileira, e diante da minha resposta afirmativa ficou muito irritada, disse

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que não era para eu tirar. Conversou com as demais em seu dialeto e me olharam com ar de reprovação e desconfiança, como se eu tivesse cometido um erro grave, e se afastaram, deixando-me intrigada com a sua reação. Assim como os homens, que veem as brasileiras como trabalhadoras do sexo mesmo não estando em locais e situações que apontem para isso, as mulheres têm esse imaginário. Algumas brasileiras contaram que em lojas de roupas na Guiana chegavam a ser impedidas de usar o provador (se quisessem comprar a roupa não havia problemas, mas não podiam prová-la).

Figura 28: Festa comemorativa do fim da escravidão na Guiana, no Parque

Nacional, em Georgetown (2012).

Carolina Höfs, em sua pesquisa sobre a experiência de migrantes brasileiros em Paramaribo, analisou o processo de etnicização da nacionalidade brasileira no Suriname. Os comerciantes foram os principais interlocutores, uma vez que o comércio nessa cidade era o seu foco. São eles que assumem a posição de lideranças, e “são identificados como parte de uma elite imigrante por terem maiores investimentos na cidade e por estarem a mais tempo no país”354. Seus interlocutores afirmam que existem quatro “classes” de migrantes brasileiros

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nesse país: “os comerciantes”, “os crentes”355 “os peões”356 e “as plocs”357. Contudo, no

cotidiano essas categorias não são estáticas, uma vez que muitos indivíduos podem ser identificados como pertencentes a mais de uma delas e o “o garimpo e a prostituição impregnam a experiência coletiva dos migrantes”. Nesse contexto, as mulheres são marcadas pela prostituição e os homens são marcados pela imagem de peão, de tal modo que essas duas atividades atingem mesmo as categorias laborais que não estão diretamente nelas envolvidas, e acabam por afetar a construção da identidade dos brasileiros no Suriname. Segundo a autora,

A associação entre a prostituta e a identidade brasileira faz com que o estigma atinja a todas as imigrantes e as torna potencialmente desacreditadas. Rotineiramente, elas recebem propostas de relações sexuais, são acenadas com gestos obscenos e passam por situações desconfortáveis em locais públicos — como, por exemplo, em bares, festas ou supermercados. Uma interlocutora falou sobre as formas de discriminação que sofre no dia-a-dia e as associa ao fato de que, entre as brasileiras, o trabalho sexual predomina sobre outras atividades profissionais e faz com que o estigma atribuído às prostitutas seja estendido a todas indiscriminadamente358.

Os dados coletados na pesquisa de campo desta tese corroboram a análise de Carolina Höfs de que no Suriname as brasileiras são estigmatizadas, sobretudo por mulheres, porque são associadas à prostituição — e isso acontece também na Guiana e na Guiana Francesa. Segundo algumas interlocutoras, as mulheres nacionais as veem como putas e “ladras de maridos”, gerando desconfiança e tensão, que dificultam interações sociais — e, como mulher brasileira, durante a pesquisa de campo pude verificar a assertividade dessas informações. O que está em evidência nesse cenário não é a mulher comportar-se ou vestir-se como uma prostituta, ser ou não ser prostituta, mas a identidade brasileira. As relações são construídas por categorias de gênero, sexualidade e nacionalidade.

355 Frequentadores assíduos de igrejas evangélicas brasileiras no Suriname. 356 Os garimpeiros que atuam diretamente na lavra do ouro.

357 Segundo Carolina Höfs (op. cit., p.67), “ploc é como os imigrantes brasileiros chamam tanto a prostituta como

o intercurso sexual”. A categoria ploc é abordada na Parte III desta tese enquanto uma segunda possibilidade de prostituição no Suriname: a exercida fora do clube e sem a dívida adquirida ao sair do Brasil.

PARTE II: