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O MERCADO DO SEXO NO SURINAME: O HABITUAL E A TOLERÂNCIA

3.1 Sair do Brasil: motivação da viagem

3.1.3 Solicitação do passaporte e a compra da passagem: agregação de custo

Algumas mulheres que viajaram para o Suriname não tinham, na época da viagem, a certidão de nascimento, sendo necessário solicitar a sua segunda via para depois fazer os demais documentos, e só então puderam dar entrada no requerimento do passaporte, o que significa várias taxas a serem pagas, onerando o valor devido ao clube (após a chegada ao Suriname, os valores agregados à dívida inicial estão relacionados sobretudo à moradia e às multas por descumprimento das regras estabelecidas por ele):

Eles daqui me ajudaram, eles mandaram dinheiro. Eles mandam tudo. Eles que tiraram meu passaporte, os meus documentos, tudo, porque na época nem documento eu tinha, e eles mandaram [dinheiro para tirar os documentos]. Eu disse que não tinha nada, eles pagaram e mandaram o dinheiro pra mim. Aí eu tirei tudo: eu tirei minha identidade, CPF, meu título [de eleitor], tudo, tudo. (Quirina, 42 anos, vendedora de loja chinesa de roupa, dois filhos, entrevistada em 2012 no Suriname)

Sempre existe outra pessoa direta ou indiretamente envolvida com a organização da viagem, seja para intermediar, retirar passaporte, seja para o translado, para tradução, etc., alguém com algum contato dentro do clube, geralmente uma mulher que está ou esteve nele; e, na chegada, há um taxista surinamês no aeroporto, que apenas conhece o destino (clube) das passageiras:

– Alguém foi contigo tirar passaporte?

– Foi, minha amiga, a menina que ia me trazer. [...] Porque a que mandou buscar nós, tava aqui [no Suriname].

– Ela trabalhava no Manilla? – Era. Era a gerente.

– Aí ela espera no aeroporto ou ela viaja junto?

– Não, a que tava aqui, ficou aqui; a que foi lá, ela só foi deixar nós no aeroporto. E eles pegaram a gente lá no aeroporto [de Paramaribo]. Viemos sozinhas.

– Quantas, mais ou menos?

– Na época era cinco. No aeroporto ela embarcou nós, e aqui eles mandaram táxi.

– E como é que sabiam que eram vocês?

– É porque, quando vêm muitas, fica tudo junto. [...] Aí, eles perguntam: “Você vai pra tal canto?”. Aí a gente: “Sim”. (Quirina, 42 anos, vendedora de loja chinesa de roupa, dois filhos, entrevistada em 2011 no Suriname)

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A passagem de avião é comprada pelo clube na Surinam Airways, em nome da passageira, que a retira no escritório daquela, em Belém, apresentando um documento pessoal — ou seja, não enviam valores em espécie para a mulher que aceita viajar. O seu acesso a dinheiro se dá por meio da pessoa que está intermediando a viagem, e normalmente ele é disponibilizado para o pagamento das taxas destinadas à retirada de documentos (incluindo o passaporte) e, às vezes, para a compra de roupas e para o táxi que a leva ao aeroporto no dia da viagem. No caso das roupas, elas nem percebem que irão pagar por isso, mas são gastos previstos inclusos em sua dívida. Costumavam dizer “arranjaram roupas pra mim”: “Aí, nesses dias eu tava dormindo na casa dessa minha amiga, e essa outra [a intermediária] chegou, essa amiga dela, né, e ela me viu, aí ela disse: ‘É, ela é bonita, a única coisa que tá faltando nela é um banho de loja’. Aí, ela me arrumou umas roupas e vim pra cá, pro Suriname” (Yasmim, 34 anos, cozinheira de restaurante, duas filhas, entrevistada em 2011 no Suriname).

Ao comando do proprietário do clube a mulher passa no escritório da empresa aérea, no aeroporto, com antecedência, para retirar a passagem:

– Quando manda essa passagem, ele não manda dinheiro?

– Não, ele manda: ele vai na agência, dá o número do documento da pessoa, do meu número de passaporte, e a passagem vai pro Brasil. [...] A pessoa pega lá no aeroporto.

– Pega na empresa?

– É, na Surinam Airways, no aeroporto. Mostra o passaporte e pega, e se, Deus o livre, na hora a pessoa desiste, depois de um mês ele pode recuperar a passagem — é por isso que ele nunca manda o dinheiro. Ninguém manda o dinheiro, porque perde se, Deus o livre, a pessoa falar que não quer mais vir em cima da hora...

– Mas a pessoa vai lá na agência?

– Aí, dá [a passagem] e fala: “Você vai viajar tal dia e tal hora”. A passagem vem em aberto, e às vezes vai já pro dia que a pessoa quer.

– Alguém acompanha? – Não.

– A pessoa faz tudo sozinha?

– Sozinha, mas tem muita mulher que faz isso aqui, trabalha para o dono do clube aqui. Vai pro Brasil pra arrumar mulher pra ele. (Yeda, 29 anos, vendedora de loja de máquinas e automotores, dois filhos, entrevistada em 2011 no Suriname)

A desistência da mulher que decidiu ir para o Suriname é uma das maiores preocupações dos proprietários dos clubes, por isso o intervalo de tempo entre o contato e a viagem é muito curto, depende apenas do prazo estipulado pela Polícia Federal para a entrega do passaporte. A

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decisão de embarcar e os preparativos da viagem também são rápidos, e elas levam consigo, além da mala, desejos, sonhos, desconfiança, medo, e sabem que têm que “prestar atenção”:

Medo a gente sempre tem, que não é legal. Tu tá sabendo que tu tá vindo pra um clube pra trabalhar com muitos homens, se prostituir, e tu não sabes o que tu vai encontrar. Pode encontrar homens bons, homens maus, aí tu sempre ficas com aquele pé atrás. [...] Então você tinha que olhar, prestar atenção qual era o clube que você vinha e tudo. (Ana, 37 anos, cabeleireira e manicure, dois filhos, entrevistada em 2011 no Suriname)

A passagem de avião de retorno ao Brasil e o passaporte são retidos assim que chegam ao clube, em geral com a justificativa de que é uma segurança contra furtos, perda e fuga — atitude nunca questionada pelas mulheres entrevistadas, pois entendiam que faz parte das regras do clube e do suposto “contrato” que diziam ter firmado com o dono dele. O passaporte lhes era devolvido quando faziam uma viagem para o Brasil (no caso das mais antigas) ou quando saíam do clube definitivamente:

– Mas quando tu chegaste, teu passaporte ficou com ele?

– Com ele. Ele dizia que era por causa… uma segurança, pra gente não perder. E, estando com ele, de três em três meses ele levava o nosso passaporte pra não ficarmos ilegal no país. (Marta, 33 anos, sacoleira, dois filhos, entrevistada em 2011 no Suriname)

– [...] você chega, você faz o que você tem que fazer, você paga a sua passagem, daí você tá livre se você quiser sair. Mesmo você não pagando a sua passagem, ainda você tá livre. Aliás, livre entre aspas, porque seu passaporte fica com o dono do clube. Não pode, assim, pegar o passaporte pra sair do país, no caso. [...]

– Quando tu pagaste, imediatamente já deram teu passaporte ou ficaram ainda?

– Não, eles devolvem.

– Imediatamente? Pagou em duas semanas, já te deu logo?

– Ele dá quando você vai pra Imigração [surinamesa]. Mas depois ele recolhe de novo. Ele diz: “No dia que você for pro Brasil, você me fala que eu te devolvo o teu passaporte”.

– Mas já tinha pagado. – Sim.

– Mesmo assim eles ainda seguraram?

– Não fica com a gente porque eles dizem que é perigoso ficar com a pessoa, e fica com eles, pro controle deles. [...] o passaporte fica com ele, com o dono do clube, não fica com a gente. Até porque eles têm um certo controle, né; você tá no clube, o passaporte fica lá com ele, na tua ficha que tá lá, e [ele] fala: “No dia que você quiser ir pro Brasil você é livre, você me fala”, [e] eles vão marcar a nossa passagem no aeroporto, pra ter certeza que você foi embora. Eles mesmo ligam. Você quer ir pro Brasil, você mesma chega lá e fala: “Olha, semana que vem, tal dia quero ir pro Brasil”. “Tá bom, posso

195 marcar sua passagem?” Ele marca a nossa passagem e chama a pessoa pra te levar. Tudo é responsabilidade dele, ele mesmo marca. (Catarina, 34 anos, manicure, dois filhos, entrevistada em 2011 no Suriname)

– Ele só entrega o passaporte quando você vai sair do clube. Ele nunca entrega na sua mão o passaporte, porque ele diz que tem medo da pessoa fugir e não pagar ele. Aí o passaporte sempre fica com ele. (Yasmim, 34 anos, cozinheira de restaurante, duas filhas, entrevistada em 2011 no Suriname)

– Mas o documento, eles ficam?

– Fica com o passaporte. Quando paga tudo, aí eles te devolvem. E quem fugiu fica sem documento. (Quirina, 42 anos, vendedora de loja chinesa de roupa, dois filhos, entrevistada em 2011 no Suriname)

Na época da pesquisa de campo nas Guianas, 2011-2012, a retenção de passaporte ainda era uma realidade no Suriname. Esse dado se contrapõe com o que consta na Pesquisa Tri- Nacional sobre Tráfico de Mulheres do Brasil e da República Dominicana para o Suriname: Uma Intervenção em Rede396, realizada de novembro de 2006 a novembro de 2007 sob coordenação da Sociedade de Defesa dos Direitos Sexuais na Amazônia (Sodireitos) e pela Aliança Global Contra o Tráfico de Mulheres-Rede Latino-Americana e Caribenha da Aliança Global contra o Tráfico de Mulheres (GAATW-REDLAC). Citando um trabalho de Laura van der Wal (De ruimte voor vrouwenhandel in de Surinaamese samenleving = O espaço para

tráfico de mulheres na sociedade surinamesa), de 2007, o relatório da pesquisa afirma que

havia mudanças no comportamento dos donos de clubes em relação à retenção do passaporte, que já não o retinham; em vez dele, seguravam o cartão de vacinação e a passagem de retorno, uma vez que já havia, no Suriname, maior atenção com as mulheres que atuavam no mercado do sexo, mesmo que o sistema jurídico-social não fosse sensível à sua situação. Segundo Laura van der Wal,

Com o aumento de atenção pela situação das mulheres, os donos dos clubes mudaram de estratégia e, em vez de reter o passaporte, eles ficam com o cartão de vacinação e a passagem, o que limita da mesma forma sua mobilidade. Quando elas conseguem fugir, sua situação continua difícil. Sem documentos, são consideradas migrantes ilegais e o sistema jurídico e social do país ainda monstra pouca sensibilidade (interesse) na situação delas. Sem dinheiro, elas não têm para onde ir. Sua possibilidade de sair da situação de exploração e confinamento é pequena397.

396 SODIREITOS; GAATW-REDLAC. Pesquisa tri-nacional sobre tráfico de mulheres do Brasil e da República Dominicana para o Suriname: uma intervenção em rede. Coordenação de Marcel Hazeu. Belém: Sodireitos, 2008. 397 Apud SODIREITOS e GAATW-REDLAC, op. cit., p.51.

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A tendência de não retenção do passaporte foi percebida na pesquisa de campo apenas na Guiana, onde a sua retenção e a cobrança da chave eram coisas observadas pela polícia nos locais de prostituição. Tanto no Suriname quanto na Guiana, as/os interlocutoras/res da pesquisa afirmavam que quando elas estavam sem o passaporte ou se já havia expirado o período de turista, eram tratadas como imigrantes irregulares e deportadas.

Das quatorze mulheres entrevistadas no Suriname que passaram por clube de prostituição, apenas Juliana (30 anos, trabalhadora do sexo, sem filhos, entrevistada em 2012 no Suriname) disse que não teve seu passaporte retido pelo clube, em uma afirmação contundente: “Não!, meu passaporte sempre esteve comigo. Eles nunca prenderam meu passaporte, nunca me prenderam, nada” — mas todo o tratamento que ela recebeu do clube foi uma exceção.