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2.1.3 “Não sei taki-taki”: a língua portuguesa como principal ferramenta de comunicação

2.2 Os perigos da floresta: o ouro que atrai o perigo

2.2.2 Um rio mais longo para atravessar: terras Noirs Marrons

As pessoas entrevistadas em Paramaribo, que trabalhavam em garimpo, estavam sempre alegres, apesar dos relatos de dificuldades, da saudade do Brasil e das precárias condições de habitação e trabalho; falavam dele como uma aventura “gloriosa”, um terreno fácil de chegar e circular. E retornar era preciso, para entrevistar pessoas no próprio local de trabalho, para

330 Segundo um funcionário do Consulado brasileiro no Suriname, há muitas mortes de brasileiros nas áreas de

garimpo, e as informações que chegam ao Consulado é de que se tratam de acidentes de trabalho, mas ele entendia que também pode ser assassinato. Vendo as condições de trabalho no garimpo Beoyo, achei pouco provável que, caso ocorra um deslizamento de terra, haja sobreviventes.

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compreender de onde surge essa alegria de viver, essa força para trabalhar de doze a vinte e quatro horas por dia, de segunda a sábado, sem direitos trabalhistas assegurados. O fator motivador é o sonho de encontrar o metal precioso, e este é uma verdadeira caixa de surpresas: ao final do dia, um garimpeiro pode ter se tornado um milionário ou apenas constatar que não ganhou nem um grama de ouro. Uma vez que já havia pesquisado na área urbana, era hora de conhecer o “mato” onde havia brasileiros, para compreender esse universo migratório.

É na perspectiva de ganhar muito dinheiro para realizar sonhos e desejos que brasileiros circulam em busca do ouro, e os principais são a casa e um negócio próprios, uma educação de qualidade para os filhos (sempre vinculada a ter condições financeiras para colocá-los numa escola privada): “é daqui que eu sustento a minha família, meus filhos, eu pago a faculdade, [...] eu pago pros dois e pago escola particular pro menor. A gente não pode ficar esperando cair do céu” (Cleonice331, 42 anos, proprietária de cabaré, três filhos, entrevistada em 2012 no Suriname).

Alex332, natural do Maranhão, 40 anos, garimpeiro, um filho, não alfabetizado (apenas escreve o nome), trabalhou um ano em garimpos da Guiana Francesa no início da década de 1990 e retornou ao Brasil — mas tinha o sonho de construir um castelo em sua cidade natal, e por isso migrou para o Suriname em 1996, aos 26 anos. Desde então, trabalhava em garimpos como piupiuzeiro333, motoqueiro, e, na maioria das vezes, como garimpeiro de baixão ou de moinho334, sempre perseguindo seu grande objetivo: construir o castelo — difícil de concretizar porque precisava de muito ouro. Disse que, mesmo que não conseguisse morar em seu castelo, construiria um para que seu filho (na época, com um ano e oito meses), que ficava com a mãe335 em Paramaribo, pudesse morar: “Ainda vou pegar muito [ouro] com a piu-piu, porque eu tenho que fazer um castelo ainda. [...] Construir um castelo, e vou construir, ô! [...] Vou fazer um castelo. [...] Muito dinheiro pra fazer um castelo, depende de muito dinheiro, muito ouro, né.

331 Cleonice será apresentada posteriormente.

332 Entrevistado em 2012 no Suriname; tinha permanência no país renovável a cada dois anos.

333 Nome dado a quem trabalha na garimpagem utilizando uma máquina de detectar metal (aparelho que chamam

de piu-piu) para localizar ouro no solo.

334 O garimpo de moinho ou filão utiliza o método de moagem da pedra para extrair ouro. Segundo os garimpeiros,

é principalmente utilizado em montanhas.

335 Embora o filho pequeno de Alex vivesse com a mãe em Paramaribo, há relatos de crianças que nascem ou

moram no garimpo, e quando completam cinco ou seis anos a mãe vai morar em Paramaribo ou são enviadas ao Brasil, onde ficam com algum parente, para que possam estudar. Há também casos de crianças que vivem em Paramaribo com uma pessoa contratada pelos pais, e é muito comum ser uma mulher surinamesa, pois o serviço é mais barato e consideram que vão aprender mais rápido o holandês ou até mesmo o Sranantongo. Em alguns garimpos, na corrutela há um espaço para as crianças serem alfabetizadas em português, mas, segundo relatos, não funciona muito bem, pois as alfabetizadoras são brasileiras com pouca escolaridade. Outra situação que ocorre é que muitas crianças nascem na corrutela e não costumam ter atendimento médico. Algumas têm problemas de saúde em decorrência de falta de higiene adequada e de saneamento básico no local.

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[...] Acho bonito” — embora o seu principal objetivo seja a construção de algo grandioso, o que ele busca é a casa própria, como boa parte dos brasileiros que estão nas regiões de garimpo das Guianas.

Em 2012, devido a contatos com entrevistados, associações e igrejas, surgiu a oportunidade e uma forma segura de ir ao garimpo do Macu, explorado por brasileiros — segura no sentido de ter companhia para viajar e local para ficar. Lá foi possível pesquisar nas corrutelas do Macu e da Cláudia, na área de mineração da Maconha (garimpo da Maconha), na área de mineração Filão do Macu336 e no porto de Stokampo.

A viagem ao garimpo do Macu foi longa, no mês de agosto. Saí do local onde estava hospedada em Paramaribo por volta de 6h40m da manhã, em uma pick-up velha e carregada de mercadorias. Além do motorista, iam o seu ajudante, uma moradora da corrutela do Macu e um pastor da Igreja Assembleia de Deus Ministério de Madureira, o qual eu acompanhava. O Macu está situado em terras de Noirs Marrons Saramaka, no meio da floresta. Para ter acesso a ele, é necessário atravessar o lago artificial Brokopondo337 (Figura 16), formado com a inundação de terras desse grupo nos anos 1960, para a construção da usina hidrelétrica de Afobaka338.

Seguimos para o porto da cidadezinha de Afobaka (Figura 17), no lago Brokopondo, de onde, diariamente, várias canoas motorizadas tomam a direção dos pequenos portos dos vilarejos de Noirs Marrons, dos quais saem as estradas para os garimpos. Geralmente elas carregam passageiros, combustíveis, animais, materiais para construção, equipamentos, alimentos, etc., que abastecem a residência daqueles e as áreas de garimpos (Figura 18).

336 O garimpo do Macu engloba uma grande área, com várias corrutelas e muitos pontos de exploração de ouro. 337 O lago é considerado um dos maiores reservatórios de água do mundo, com extensão de 1.560 km², e dele é

retirada madeira para exportação (os troncos submersos). Em 2013 havia reclamação trabalhista na Vara do Trabalho de Tucuruí, estado do Pará, no Brasil, de trabalhadores brasileiros que foram contratados pela empresa Brokopondo Watra Wood International N.V. (sediada em Paramaribo) para trabalhar na retirada de madeira, que tiveram seus direitos trabalhistas desrespeitados: trabalhavam sem equipamento de proteção, 56 horas semanais, sem direito a férias, etc. (ASSOCIAÇÃO DE UNIVERSIDADES AMAZÔNICAS. Dossiê trabalhadores

brasileiros em Suriname: condições de trabalho e reivindicações trabalhistas. Belém: AUA, 2013).

338 Na época, os seis mil habitantes da área foram obrigados a abandonar suas casas; o lago resultou em 43 vilas,

em animais e floresta submersos, numa área que corresponde à metade das terras tradicionalmente ocupadas pelos

Noirs Marrons. Ver, de Richard Price: Peuple Saramaka contre État du Suriname: combat pour la forêt et les droits de l’homme, op. cit.; et Les premiers temps: la conception de l’histoire des marrons saamaka, op. cit.

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Figura 16: Lago artificial Brokopondo, Suriname (2012).

Figura 17: Porto de Afobaka, Suriname (2012).

Figura 18: Canoas com mercadorias no porto de Afobaka,

Suriname (2012).

Tudo que é transportado na canoa é embalado em sacos plásticos, para não molhar com a chuva ou a água que é jogada por outra canoa quando se cruzam no lago, e também para proteger da lama na estrada, durante o percurso de moto 4x4, que acontece num segundo momento. As pessoas embalam as coisas rapidamente, e no início não entendi o que era para fazer quando a mulher que veio conosco no carro me deu um saco grande, de plástico, desses

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de pôr lixo, para embalar minha mochila. Sem muita explicação, ela falou para colocar minhas coisas dentro e entregar ao canoeiro.

Em meio a tanto sacos iguais, na metade do percurso, em uma das paradas da canoa, um dos passageiros que desceu pegou, por engano, o saco de outra pessoa, no qual se encontravam seu passaporte e objetos pessoais, e esta ficou sem a certeza de conseguir reencontrá-los, um exemplo recorrente de perda de passaporte (outros o perdem em acidentes de canoa).

Enquanto a canoa atravessava o lago, ora chovia, ora fazia sol. Além das mercadorias, éramos dez nela, e nos protegíamos como podíamos: alguns com sombrinhas, outros com roupas de manga comprida, blusão com capuz. O percurso durou aproximadamente 2h30m, e chegamos ao porto do pequeno vilarejo Stokampo, onde pegamos uma moto 4x4 para fazer o resto do percurso até a corrutela do Macu.

A viagem, desde o porto de Afobaka, necessita de organização e solidariedade entre os passageiros, principalmente entre os que carregam mercadorias, pois é constante a transferência destas, e é preciso acomodá-las de forma que caibam todas (Figura 19). Nas viagens longas, aqueles que ajudam na organização ganham, por vezes, como recompensa, a gratuidade do transporte (na canoa e na moto).

Figura 19: Mercadorias sendo organizadas para o

transporte em moto 4x4 (o meio de transporte de pessoas e mercadorias utilizado nas áreas de garimpo) no porto de Stokampo, Suriname (2012).

Procurei mostrar calma e disponibilidade na organização e transferência das mercadorias da canoa para a moto (não disse, por exemplo, que a moto não oferecia segurança devido ao tanto de coisas e pessoas que ia carregar), tentando não alterar a rotina dessa ida ao

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garimpo, de modo que pudesse observar como as coisas se passam e, ao mesmo tempo, não ser mais um pacote que eles precisavam carregar.

No garimpo existe desconfiança no que se refere à preservação do ouro que se ganha e às pessoas que se incomodam com a insegurança do transporte, mas se alguém chegar “brefado” (sem dinheiro) e se mostrar disposto a cooperar, nem que seja ajudando a cozinheira a carregar água, não faltarão abrigo e comida. Ao me mostrar disponível, isso facilitou o contato com os interlocutores no percurso até o garimpo, pois, como falaram depois, quem se mostra incomodado com a insegurança do transporte, com o trabalho pesado e as condições de moradia, não serve para ir ao garimpo: é uma pessoa “muito mole”.

Na moto, embalados em sacos, iam nossos objetos pessoais, alimentos (carne, frango, legumes, temperos), roupas, perfumes, bíblias, acessórios (Figura 20) — além do motorista, na frente e três passageiros na parte traseira (eu, a mulher e o pastor, sentados quase em cima dos pacotes; eu, na verdade, sentada atrás do condutor, dividindo o espaço destinado a ele), num percurso que durou aproximadamente 2h30m por uma estrada quase inexistente, com buracos e “morros”, e, como havia chovido, os buracos estavam cheios de água, cobrindo nossas pernas de lama339. Nesse ambiente o quadriciclo é o único veículo que consegue subir os “morros” e atravessar a lama; assim, não dá para questionar a insegurança desse transporte, apenas torcer para chegar em segurança — o nosso excesso de bagagens e de passageiros era uma realidade diária a que todos já haviam se habituado.

Figura 20: As mercadorias organizadas na moto 4x4,

Suriname (2012).

339 No caminho, de tanto a moto passar, há buracos que, quando chove, ficam cheios de água; devido a esses

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Desde o porto de Afobaka, os perigos principais não foram os animais da floresta amazônica, mas os meios de transporte utilizados, a sobrecarga de pessoas e mercadorias e a estrada final. Chegamos à corrutela do Macu cansados, com fome, sede, muita lama no corpo e os tênis imprestáveis — e enfim deu para entender a importância dos sacos plásticos. Mas não chegamos “rodados”, como os garimpeiros se referem às pessoas que chegam sem um contato, sem o nome de uma pessoa a quem procurar no local; quem chega “rodado” leva tempo para chegar ao destino final e para conseguir “uma vaga boa”340 — além disso, todos pensam que

uma mulher desconhecida que chega sozinha em um garimpo é uma trabalhadora do sexo, uma

ploc, o que poderia dificultar a coleta de dados341.

Fiquei hospedada na casa do pastor da Igreja Assembleia de Deus Ministério de Madureira residente na corrutela, que ficava em frente ao templo, uma casa de madeira simples, com varanda, sala (que servia de quarto para o casal), cozinha, e um banheiro apenas para tomar banho, pois não havia vaso sanitário342 (o mato ou um pequeno saco plástico, jogado posteriormente no mato, eram o destino para as necessidades fisiológicas). No corredor que ligava a sala e a cozinha, armei minha rede.

O único local observado em área de garimpo, identificado como banheiro, foi um pequeno espaço cercado por lona na corrutela da Cláudia, no Garimpo do Macu (Figura 21), provavelmente construído durante a realização de algum evento (um bingo, por exemplo, que reúne número grande de pessoas).

340 Um garimpo que tenha boa produção de ouro, boa alimentação e que não requeira muito serviço braçal, como

são os locais em que se usa maior número de máquinas, nos quais o esforço físico é bem menor. No caso das cozinheiras, a “vaga boa” é aquela em que a área de garimpo tem uma cozinha com fogão a gás e em que não é difícil adquirir água, e, o mais importante, em que o dono da máquina paga em dia (em ouro), pois muitas reclamaram que já haviam trabalhado em “vaga ruim” por algum tempo e nunca receberam.

341 Foi por esse motivo que esperei até ter companhia para ir ao garimpo — além de não ter certeza de que poderia

chegar a ele com segurança.

342 Em nenhuma das casas em que entrei na corrutela do Macu havia vaso sanitário. Os únicos que os possuíam

eram os cabarés, que pagam taxa de funcionamento maior que os demais estabelecimentos comerciais para o líder

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Figura 21: Banheiro improvisado na corrutela da

Cláudia, garimpo do Macu, Suriname (2012).

A casa ficava no final da corrutela, em frente à igreja e a alguns passos do cabaré mais ativo dali naquele momento343, por isso era inevitável perceber o horário em que ele começava a funcionar e em que encerrava as atividades: a música alta iniciava no final da manhã e atravessava a noite.

Nas duas noites em que estive na corrutela assisti ao culto evangélico: sentada no fundo do templo, eu observava as pessoas chegando a pé, com lanternas de mão, depois de longa caminhada. Eram membros oficiais da igreja, mas, em sua maioria, frequentavam o templo esporadicamente, da mesma forma que a proprietária do cabaré vizinho, que de vez em quando ia assistir ao culto — naqueles aos quais assisti, esteve presente em companhia da filha. Iniciei as entrevistas no dia seguinte à minha chegada, logo cedo, quando saí para conhecer a corrutela: em cada porta em que havia uma pessoa, parava para pedir informação, conversar e, se possível, realizar uma entrevista. No garimpo não era possível marcar encontros, eu tinha pouco tempo e era preciso agir rápido, por isso as entrevistas foram realizadas com quem se mostrou disponível e sensível à pesquisa, sem que fossem marcados local e hora: elas foram feitas em cabaré, bar, barraco coletivo dos garimpeiros, cozinha, durante a viagem na moto e durante as refeições.

343 Na mesma rua (a única da corrutela) havia dois cabarés grandes e alguns pequenos (estes funcionavam com

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