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Composição étnica do Suriname

2.1 A narrativa dos brasileiros: a chegada dos garimpeiros desestabiliza a migração feminina através dos clubes

2.1.2 Klein Belém: Belenzinho para os mais íntimos

No início da década de 1990, em razão da mineração de ouro inicia-se a narrativa da origem da comunidade brasileira no Suriname, quando sua presença começa a ser visível — mas já havia mulheres brasileiras por lá, casadas com surinameses ou nos guetos dos clubes de prostituição. Elas viviam isoladas umas das outras, sem visibilidade enquanto identidade coletiva288.

No Suriname, a visibilidade de brasileiros surgiu com o Klein Belém, uma área de Paramaribo que envolve a Anamoestraat, que é continuação da Tourtonnelaan289, e a Princessestraat (que fica próxima às duas primeiras). Os brasileiros e surinameses que têm alguma relação de trabalho ou pessoal com o Klein Belém chamam ele simplesmente de Belenzinho, e nem todos os que vivem ou circulam por ele são originários da capital paraense: na pesquisa de campo a resposta mais comum para a pergunta sobre a origem dos brasileiros que estão no Suriname era o refrão “as mulheres vêm de Belém e os homens, do Maranhão”.

286 Cf. JUBITHANA-FERNAND, op. cit.

287 OLIVEIRA, Mobilidades transgressoras, geografias ignoradas: itinerários e emaranhamentos envolvendo territorialidades de garimpeiros no Suriname, op. cit.; ARAUJO, op. cit.

288 HÖFS, op. cit.

289 A Tourtonnelaan tem esse nome até chegar à ponte de um pequeno canal, e a partir daí transforma-se na

Anamoestraat, mas é comum as pessoas dizerem que é na Tourtonnelaan que vivem os brasileiros, por ignorarem ou não fazerem questão de observar que embora se trate de um espaço contínuo, esta última muda de nome após o canal.

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Outra ideia que se propaga ali é a da belenense na prostituição e das maranhenses “trabalhadeiras” na cozinha.

Uma pessoa que conhece bem o Brasil, ao andar, mesmo de olhos fechados, pelas proximidades da, ou na Tourtonnelaan, e sobretudo pela Anamoestraat, ao passar em frente a cada bar, hotel, lanchonete ou residência de brasileiro terá a ligeira sensação de estar em alguma parte do Nordeste ou do Norte do Brasil (especialmente na periferia de Belém ou no interior do Maranhão). No Belenzinho as músicas290, os programas de TV em língua portuguesa e o cheiro

do tempero brasileiro conduzem para bem longe do Suriname, sobretudo porque a culinária desse país é demarcada pela origem dos seus grupos étnicos (a pimenta e a masala são sabores e cheiros fortes na culinária surinamesa).

Os vários restaurantes de propriedade de brasileiros têm como carro-chefe, entre outros, a galinha caipira, a feijoada, a dobradinha, o feijão tropeiro — todos pratos típicos da culinária brasileira. O restaurante Petisco291 é uma das referências: também funciona como café (trabalha com pães, doces e bolos), mas a churrascaria é mais procurada, e como o churrasco é bastante apreciado por muitos surinameses, é possível encontrá-los ali, saboreando esse prato, sendo que sua presença não é muito comum nos restaurantes brasileiros que não o oferecem — e, além da churrascaria, já tinha uma “filial”: uma padaria (Figura 5).

Figura 5: Paramaribo: à esquerda, Café e Restaurante Petisco; à direita, Padaria Petisco (2011).

No Belenzinho a língua portuguesa ecoa na rua, em vários estabelecimentos e em glomerados de quitinetes; nele é encontrada uma variedade de produtos do Brasil, que vão de medicamentos a roupas (trazidas de Belém, Fortaleza e São Paulo) para abastecer as diversas

290 As músicas brasileiras são tocadas também em táxis de surinameses, e podem ser encontradas em locais que

vendem CDs piratas.

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lojas de brasileiras292 que conseguiram juntar dinheiro para montar um comércio. Um grande número de suas casas tem antena parabólica instalada no telhado ou no jardim — as parabólicas dão visibilidade ao morador de origem brasileira nesse país293.

Durante o dia a Anamoestraat se transforma no centro do Klein Belém, um “espaço de brasileiro”: os estabelecimentos vendem produtos brasileiros (mesmo os que não são oriundos do Brasil, em geral são direcionados aos brasileiros), há lojas de compra de ouro e é ponto de encontro de garimpeiros (onde a fofoca do ouro também é difundida). Ao anoitecer continua “espaço de brasileiro”: a circulação de surinameses é pequena (e em altas horas, inexistente), só os comerciantes chineses mantêm uma ou outra loja aberta, e na rua o churrasquinho no espeto de madeira predomina, mas é possível tomar um tacacá ou comer um vatapá — pratos típicos paraenses — preparado com ingredientes majoritariamente vindos do Brasil.

Nas proximidades da Anamoestraat vive a maioria dos brasileiros em Paramaribo — e esse pequeno Brasil tem crescido nos últimos anos. O ouro, o dólar, o euro, o dólar surinamês e até mesmo o real ali circulam paralelamente, e assim, embora não seja lícito, pode-se comprar um quilo de carne e pagar em ouro ou dólar, como se fossem a moeda local — sem contar os inúmeros cartazes e placas escritos em português fixados na frente de lojas ou em paredes, nos quais se oferecem serviços ou algum produto (Figura 6). Esse “mundo paralelo” escapa a qualquer controle estatal.

Figura 6: Anúncios de produtos e serviços escritos em português afixados em comércios no Klein

Belém, Paramaribo (2011).

292 As pessoas costumam contar, em tom de fofoca, que muitas das donas de loja trabalhavam, antes, em clube de

prostituição.

293 Nos arredores do Klein Belém, ao chegar a um hotel que não costuma receber brasileiros, o hóspede logo recebe

a advertência “mas não temos antena parabólica”, como se esta fosse um pré-requisito para aqueles se instalarem no local — e as parabólicas também dão visibilidade à presença brasileira em cidades da Guiana e da Guiana Francesa.

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Nos comércios do Klein Belém dirigidos a brasileiros (caso de pequenos supermercados, em geral de propriedade de chineses), um dos mais conhecidos é o Atacado Supermercado, que fica na Anamoestraat, primeiro comércio aberto em Paramaribo com produtos voltados para a comunidade brasileira, desde produtos alimentícios (atacado ou varejo) até peças e máquinas para trabalhos no garimpo. De dia, nele há um entra e sai de brasileiros, e muitos deles se aglomeram na porta para conversar e se informar, pelos cartazes escritos em português colados nas paredes, sobre ofertas de vagas em garimpos, notícias de óbitos de conhecidos, etc. (Figura 7).

Na mesma rua, próximo ao Atacado, há um outro comércio de referência para os brasileiros, o supermercado Transamérica (Figura 8). De propriedade de dois surinameses — um de origem hindustana e um de origem chinesa —, vende principalmente produtos alimentícios e de higiene importados do Brasil, o que garante uma movimentação constante de brasileiros em busca de um produto familiar ou para abastecer a cantina ou cozinha no garimpo — neste último caso, são as/os donas/os de cabarés, de cantinas e máquinas. O Transamérica incorporou, ao seu quadro de funcionários, brasileiros/as para funções como empacotador/a, balconista, embalador/a de mercadoria e até mesmo na secretaria, e a presença surinamesa mais marcante se percebe nos caixas.

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Figura 8: Supermercado Transamérica, em Paramaribo (2011).

Outra referência entre os brasileiros do Klein Belém é o açougue (Slagerij) Asruf (Figura 9), de propriedade de um surinamês, que tem a carne de boi e de frango entre as principais mercadorias. Apesar de existirem outros açougues que buscam atrair clientela brasileira, o Asruf é o mais recomendado e procurado por ela, mesmo porque mantém um brasileiro para fazer atendimento em língua portuguesa, o que garante que os brasileiros não terão dificuldade em fazer o pedido. É voltado de tal forma para a comunidade brasileira que em sua fachada estão impressas a bandeira do Brasil e a do Suriname, e a frase “Carne de Qualidade!”294.

294 Os comércios citados eram referência em 2011 e 2012 (época da pesquisa de campo) e continuam sendo em

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Figura 9: Açougue (Slagerij) Asruf,

em Paramaribo (2011).

Nas lojas que compram ouro espalhadas pelo Klein Belém, sempre guardadas por seguranças fortemente armados, é possível enviar valores para o Brasil e mesmo penhorar joias, coisas que já viraram rotina para muitos brasileiros. A relação de confiança destes com os proprietários daquelas é tanta que alguns enviam por terceiros os gramas de ouro, enrolados em pequenos papéis já com o número da conta, e é certeza que o valor chegará ao seu destino. As lojas mais respeitadas, por vezes guardam o ouro por um tempo, como se fosse um banco, e, segundo brasileiros que se utilizam desse de serviço, essa é uma maneira de fazer uma poupança, pois eles não têm conta nem no Suriname nem no Brasil, e na hora que precisarem vai estar lá:

– Quando tu chegas do garimpo com ouro, tu vais pra tua casa primeiro ou vai trocar o ouro?

– Não, eu vou pra casa primeiro, tomar um banho, né, que ouro a gente não anda assim, não, tem que saber qual é o melhor preço. Eu só trabalho com a Ourominas [loja que compra ouro]. [...]. Sabe como é que é: às vezes tu precisa de uma coisa, eu vou lá, eu mesmo, na Ourominas, eu sou conhecido lá... Vamos dizer que eu tenho um cordão, alguma coisa pra penhorar, já vou lá: “Mas, meu amigo, penhora, tô aperreado, me dá tanto”. [...] Em outros lugares, não, por isso que eu não gosto de ficar pulando, eu só trabalho lá com eles. Lá eles guardam meu ouro, guardam meu dinheiro. Lá [...] mando pro Brasil. Lá é o meu negócio.

– Se tu quiseres guardar 30 gramas, eles guardam pra ti? É tipo um banco? – Até um quilo, cinco quilos. É tipo um banco, entendeu? [...] Eles têm uma porcentagem pra guardar teu ouro.

127 – Não é muito, não. Olha, o meu, assim, vai custódia, faz uma custódia, entendeu? Eles não tiram nada, não. Já vai descontando.

– O que é uma custódia?

– Vamos dizer: tu chega com um quilo de ouro, tu quer guardar, deixa lá, tu és cliente de lá [...]. Tu trabalhas com eles. [...] Guardam pra ti, Se precisar... Por exemplo, estou precisando de mil dólares: pá! [eles dão]. (Marcelo, 37 anos, garimpeiro, um filho, entrevistado em 2012 no Suriname)

Os diversos salões de beleza espalhados pelo Klein Belém chamam a atenção, e pessoas que se identificam como gays, travestis e transexuais dominam o ramo. São locais da beleza e do glamour, onde as mulheres se transformam e se reinventam para retornar ao garimpo para mais uma temporada no “mato”, sejam trabalhadoras do sexo, sacoleiras, cozinheiras, donas de máquina ou de cabaré no garimpo — não importa sua ocupação, elas sempre dão uma passadinha no salão. As mulheres que estão nos clubes têm seu salão favorito.

Os hotéis mais citados por brasileiros são Bigode, Cactos (Figura 10), Cirizal, Confort, Esmeralda, Fazendinha e Pérola (Figura 11), todos localizados no Klein Belém. Juntamente com bares, são importantes na mobilidade dos brasileiros no Suriname, pois são espaços que, além do quarto, oferecem vários produtos e serviços: loja de roupas, restaurante, joalheria para venda e fabricação de joias, loja de compra de ouro — e neles circulam trabalhadoras do sexo em busca de clientes. Hotéis como o Pérola têm locais reservados para shows de bandas, o que atrai homens e mulheres das mais diversas ocupações; outros, embora sejam utilizados para encontros íntimos pagos, apenas alguns proporcionam atrações musicais.

O Cactos (Figura 10) tem uma particularidade: apesar de utilizado para encontros íntimos pagos, seu restaurante toca música evangélica. Seu proprietário, um brasileiro, é membro de uma das igrejas evangélicas brasileiras de Paramaribo, o que explica a tentativa de diferenciar seu estabelecimento dos demais, conhecidos por facilitar a prostituição — caso do Pérola (Figura 11), referência em festas e como ponto de encontro de trabalhadoras do sexo, e o local preferido das/as donas/os de cabaré em busca de mulheres para levar para o garimpo.

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Figura 10: Hotel Cactus, em Paramaribo (2011).

Figura 11: Hotel Pérola, em Paramaribo (2011).

No Suriname a mineração do ouro segue um formato brasileiro: há o dono da máquina ou balsa, a cozinheira e os garimpeiros. As máquinas ou balsas, quando de propriedade de brasileiros — que, embora atuem na informalidade se organizam como se fossem pequenas cooperativas — são coordenadas pelos donos. São eles que recrutam os garimpeiros295 e a cozinheira296, ou outros profissionais, como, por exemplo, mecânico e motorista — e, muitas vezes, os recrutam no Belenzinho (geralmente, estes dois últimos profissionais também são chamados de garimpeiros, mesmo não atuando diretamente na lavra do ouro).

295 Os garimpeiros não são assalariados, recebem uma porcentagem de 10% sobre a produção de ouro: ao final da

exploração de determinado local, o ouro extraído é dividido entre os trabalhadores. Outros 10% são pagos aos

Noirs Marrons, que autorizaram a exploração mineral no local.

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O garimpo em pequena escala, tal como é organizado por garimpeiros brasileiros informais a partir de uma dinâmica de mobilidade constante, dá vida e especificidade aos locais de garimpagem de ouro, seja no Brasil, seja na Guiana, na Guiana Francesa ou no Suriname. A pesquisa de Letícia Tedesco em garimpos do Vale do Tapajós (Pará) aponta que a mobilidade daqueles que trabalham e vivem no garimpo, naquela região, está vinculada ou à fofoca do ouro ou às,

idas e vindas periódicas para a “rua”, geralmente breves e motivadas por questões tão pontuais como “ganhar nenê em um hospital”, [...]. Daí a complicação para obter uma resposta única e definitiva para a pergunta “onde você mora” visto que as pessoas mais se de-moram do que moram, porque em sua maioria estão sempre pensando em sair definitivamente algum dia do garimpo, mesmo que nunca cheguem a fazê-lo, sendo muito mais comum intercalarem tempos no garimpo com tempos na cidade ou no campo, ou seja, “dar um tempo” em um ou outro ponto297.

As idas e vindas entre Paramaribo (geralmente no Belenzinho) e o garimpo, alternadas conforme a situação (reabastecer o negócio, enviar dinheiro para o Brasil, telefonar para a família, descansar, cuidar de si, guardar/vender ouro, pagar uma conta, namorar, rever a família ou simplesmente dar um tempo do “mato”), contribui para construção desse espaço circulatório que atrai serviços que se adequam e se adaptam às necessidades e ao ritmo da mobilidade dos brasileiros. Uma diversidade de fluxo (de pessoas, de mercadorias, de capital, de informação) que compõe a circulação migratória.

2.1.3 “Não sei taki-taki”: a língua portuguesa como principal ferramenta de