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A Teologia da Libertação, o Concílio do Vaticano II e as mudanças na Igreja

No documento Luta Armada em Portugal (1970-1974) (páginas 46-50)

Capítulo I O Mundo em Mudança

5. A Teologia da Libertação, o Concílio do Vaticano II e as mudanças na Igreja

Os anos 60 foram marcados por grandes mudanças dentro da Igreja Católica, que se abriu mais ao mundo laico e social. Dois grandes factores contribuíram para que isso acontecesse: o aparecimento na América Latina da Teologia da Libertação e o Concílio do Vaticano II, em Roma.

A Teologia da Libertação é um movimento cristão de teologia que engloba várias correntes de pensamento que interpretam os ensinamentos de Jesus Cristo em termos de uma libertação das pessoas das injustiças económicas, políticas e sociais. Ela foi descrita, pelos seus proponentes como uma interpretação da fé cristã através do sofrimento dos pobres, da sua luta e esperança, e uma crítica da sociedade, da fé católica e do cristianismo através dos olhos dos pobres66.

A Teologia da Libertação tornou-se um movimento internacional, sendo sobretudo uma reacção moral à pobreza causada pela injustiça social que era flagrante naquela região do globo.

Segundo José António Veloso existem três correntes principais na Teologia da Libertação: 1 – A autêntica teologia da libertação, entendida no sentido católico, apoiada na palavra de Deus, devidamente interpretada pelo Magistério e que consiste na “reflexão teológica centrada no tema bíblico da libertação e da liberdade e nas suas incidências práticas”

2 – A teologia da libertação que adopta o método marxista da análise da realidade e da história, apresentando-o como sendo o único método «científico» e, portanto, «necessariamente verdadeiro», segundo a lógica da filosofia dialéctica que lhe serve de base.

3 – A teologia da libertação que assume explicitamente a ideologia marxista embora

65ESTANQUE, Elísio, BEBIANO, Rui, 2007, Do Activismo à Indiferença. Movimentos Estudantis em Coimbra,

Lisboa, ICS, p. 12 a 22

66BARRYMAN, Philip, 1987, Liberation Theology: essential facts about the revolutionary movement in Latin America

despojando-a – pelo menos teoricamente – do seu ateísmo e materialismo67.

A Igreja publicou um documento em que faz uma análise da teologia da libertação e refere que estas duas últimas correntes da teologia da liberação eram de “inspiração marxista” e propunha “uma interpretação inovadora do conteúdo da fé e da existência cristã, interpretação que se afasta gravemente da fé da Igreja, mais ainda, constitui uma negação prática dessa fé” e continua a crítica referindo “conceitos tomados por empréstimo, sem fazer a crítica prévia, à ideologia marxista, e o recurso a teses de hermenêutica bíblica marcadas pelo racionalismo encontram-se na raiz da nova interpretação, que vem corromper o que havia de autêntico no generoso empenho inicial a favor dos pobres”. Com a divulgação deste documento, a Igreja sublinha que “quer chamar a atenção dos pastores, dos teólogos e de todos os fiéis, para os desvios e perigo de desvio, prejudiciais à fé e à vida cristã, inerentes a certas formas de teologia da libertação que empregam, de maneira insuficientemente critica, conceitos assumidos de diversas correntes do pensamento marxista”68 .

Segundo os teólogos da teologia da libertação, o seu objectivo é construir uma sociedade nova, mais justa, onde a vida humana tenha mais valor e dignidade e para isso é necessário que as classes sociais mais desfavorecidas lutem contra aqueles que a oprimem. Daí que esta teologia não negue e existência da luta de classes, pelo contrário, sublinha-a, afirmando que é esta que faz mover a história e que só através da luta os oprimidos poderão combater os opressores, o que consequentemente legitima a utilização da violência. Esta é justificada como um meio para acabar com as injustiças sociais e à violência que constitui o domínio dos ricos sobre os pobres deve corresponder a contra-violência revolucionária mediante a qual esta relação será invertida69.

A linha oficial da Igreja Católica critica a Teologia da Libertação, e, no seu texto crítico oficial, é referido que esta corrente identifica o “Reino de Deus” com o movimento de libertação humana e sócio-política e o “pobre” do Evangelho com o proletariado de Marx; divide a Igreja entre a Igreja do Povo – a igreja da luta libertadora revolucionária que compreende os oprimidos – e a Igreja Hierárquica – aliada aos opressores ou burgueses; rejeita a “doutrina social da Igreja” por ser uma ilusão das classes médias destituída do sentido histórico; faz uma releitura essencialmente política da Bíblia; desacredita o Magistério e a Tradição da Igreja, declarando que pertencem à classe exploradora; a divindade de Cristo é aceite formalmente, contudo, ao “Cristo da Fé” opõe-se o “Jesus da História” e a sua experiência revolucionária libertadora dos pobres; e a Eucaristia é

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VELOSO, José António, 1985, A Teologia da Libertação e as Injustiças Sociais, Separata da Revista Celebração Litúrgica, nº 5, Ano B, Braga, pag. 3 e 4

68SAGRADA CONGREGAÇÃO PARA A DOUTRINA DA FÉ, Instrução sobre alguns aspectos da Teologia da

Libertação, Roma, 1984. É o cardeal alemão Joseph Ratzinger, actual Papa Emérito Bento XVI, e na altura Prefeito da

Sagrada Congregação para a Doutrina da Fé, que apresenta num colóquio privado o primeiro “Relatório” que vai dar origem a este texto oficial da igreja Católica sobre a Teologia da Libertação.

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reduzida a uma celebração do povo que luta70.

A Teologia da Libertação continuou influenciar muitos teólogos, sacerdotes, bispos e leigos, essencialmente na América Latina, mas os seus ecos chegaram à Europa. Esta corrente criticava a riqueza e o poder, denunciava a pobreza e as injustiças económicas e sociais, e defendia que os mais pobres e oprimidos deviam lutar para se libertar da opressão e construir um mundo novo e um homem novo. Os ecos desta corrente teológica faziam-se sentir dentro da Igreja e mesmo na Europa eram muitos os católicos que começaram a preocupar-se com as injustiças sociais e a questionar se não seria necessário mudar o estado das coisas. Afinal, acreditavam num Cristo que tinha nascido e vivido pobre, que tinha defendido os mais pobres e injustiçados da humanidade e que tinha proclamado os ideais da igualdade e da justiça. O cristianismo passou a ser visto por estes católicos como um instrumento de transformação correcta do mundo, que devia unir todas as forças progressistas e que devia estar ao serviço da libertação dos oprimidos.

Em Novembro de 1958, morria o Papa Pio XII, pondo fim a um pontificado difícil marcado pela Segunda Guerra Mundial. Nesta altura, a Igreja era atravessada por diversas correntes de ecumenismo, vindas de vários países, animadas por clérigos ou laicos. Preocupado, o colégio dos cardeais elegeu um papa de transição, Angelo Roncalli, cardeal de Veneza, que adoptou o nome de João XXIII. Este prelado, de raízes camponesas, espantou toda a gente pela sua simplicidade que o levou a suprimir os faustos da etiqueta vaticana, a visitar os hospitais e as prisões de Roma e a encetar encontros com os comunistas.

A 25 de Fevereiro de 1959, na Basílica de São Paulo Extramuros, João XXIII anunciava a 17 cardeais as suas decisões, fruto de uma reflexão profunda sobre o mundo em que viviam e que estava e completa transformação: reunião de um sínodo diocesano para a cidade de Roma; refundição do Código de Direito Canónico de 1917; convocação de um concilio para estudar os problemas da Igreja. O principal objectivo destas medidas era aproximar as diversas correntes ecuménicas e aproximar os católicos dos não-católicos e até dos ateus. Constituiram-se comissões preparatórias e um Secretariado para a Unidade e foram convidados observadores não-católicos71.

O Concilio foi inaugurado em Roma, a 11 de Outubro de 1962, por João XXIII, rodeado de 2778 prelados de todas as raças e nacionalidades, 45% dos quais vinham do Terceiro Mundo. Dos 93 observadores 29 eram laicos, uma Comissão Central presidida pelo Santo Padre coordenava o conjunto dos trabalhos e um Secretariado dos Meio de Comunicação vinha juntar-se ao Secretariado para a Unidade dos Cristãos.

Muito rapidamente, destacaram-se duas tendências dentro do concílio: os tradicionalistas – a

70Cf: SAGRADA CONGREGAÇÃO PARA A DOUTRINA DA FÉ, 1984, Instrução sobre alguns aspectos da Teologia

da Libertação, Roma

Cúria, os prelados italianos, espanhóis e da América Latina – e os inovadores – outros países da Europa, Ásia e África. O objectivo do Concilio era promover o diálogo dos católicos com todas as outras igrejas e os não-cristãos.

João XXIII morreu a 3 de Junho de 1963, só assistindo à primeira sessão do Concílio e a sucessão recaiu no cardeal Montini, que escolheu o nome de Paulo VI. Nas últimas três sessões do Concilio assistiu-se a algumas modificações: a cúria perdeu o seu poder a favor de um Sínodo constituído por 150 bispos; foi constituído um Secretariado para os Não-Cristãos e um Secretariado para os Não-crentes; as mulheres foram admitidas a participar nos trabalhos (oito religiosas e sete laicas); estabeleceu-se que se devia proceder a uma simplificação das celebrações litúrgicas e que as línguas nacionais substituiam o latim. Há no entanto questões que persistem como a questão do celibato dos padres e a participação das mulheres na vida da Igreja.

A Teologia da Libertação e, sobretudo, o Concílio do Vaticano II tiveram impacto dentro da Igreja Católica portuguesa, quer ao nível do clérigo como dos leigos. Ao longo dos anos 60 assistiu- se a uma radicalização dos católicos em Portugal, para o que contribuiu decisivamente a contestação à guerra colonial e as posições do Vaticano, principalmente o debate e as conclusões do Concílio do Vaticano II, seguidas atentamente pelos católicos portugueses; bem como a política do

aggiornamento, ou seja da abertura da Igreja Católica aos crentes e não crentes, o estabelecimento

de relações com outras religiões e em defesa das liberdades cívicas. A publicação da Encíclica

Pacem in Terris, que defendia a paz e o direito de todos os povos à sua autodeterminação foi

decisiva deste ponto de vista.

Os ventos de mudança da Igreja Católica chegaram rapidamente a Portugal e tocaram, não apenas os leigos mas também os próprios eclesiásticos. Sintoma disso é o caso dos padres que optaram por criticar a guerra colonial e a conivência da hierarquia da Igreja com o regime, o que levou a que alguns destes padres fossem afastados e excomungados enquanto outros optaram por abandonar a Igreja. Além disso, alguns destes ex-membros da Igreja mostraram-se bastante permeáveis à questão da luta armada e acabaram por militar na LUAR e nas BR e por participar inclusivamente em acções armadas ou nos seus aparelhos logísticos de apoio, guardando armas e explosivos e abrigando operacionais destas organizações em Igrejas, conventos e casas paroquiais. Eles consideravam que o regime só cairia através deste tipo de acções e que estas estavam em consciência justificadas pela situação interna que se vivia no país, muito marcado por uma guerra colonial injusta.

Por outro lado, também os leigos católicos se radicalizaram, influenciados pelo Concílio do Vaticano II, pela efervescência do Maio de 68 e pela Teologia da Libertação, na América Latina. Este sector passou a dinamizar as acções de luta contra a guerra colonial e contra a ditadura, e,

formaram o mais importante grupo de apoio logístico da LUAR e do PRP/BR.

No documento Luta Armada em Portugal (1970-1974) (páginas 46-50)