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Violência durante a campanha eleitoral de

No documento Luta Armada em Portugal (1970-1974) (páginas 84-87)

Das eleições de 1958 à herança “fapista”

1. Um novo ciclo de violência (1958 – 1962)

1.1. Violência durante a campanha eleitoral de

A campanha eleitoral para as eleições presidenciais de 1958 foi marcada, praticamente desde o seu arranque, por confrontos entre a polícia e os apoiantes das candidaturas oposicionistas. Este clima de violência esteve logo patente na visita de Humberto Delgado ao Porto, nos dias 14, 15 e 16 de Maio de 1958. Há notícia de registo de confrontos logo na Estação de São Bento aquando da chegada do general, e na noite desse dia, após o comício no Coliseu. O próprio Diário da Manhã, órgão oficial do regime, refere em editorial do dia 17 de Maio, os incidentes entre a polícia e os apoiantes de Delgado, após o comício, tratando de responsabilizar a candidatura do general132.

Ainda no Porto, no dia 15 de Maio, verificaram-se novos confrontos quando o povo da cidade aguardava a chegada do general à saída da visita que efectuou à Casa do Gaiato. O próprio general relata que, nesse dia, viu “a polícia praticar espancamentos em frente da janela do meu hotel no Porto. Vi, mesmo, cair no passeio um homem ao primeiro golpe de casse-tête, como vi dar coronhadas, com uma brutalidade sem nome, num homem que me queria abraçar”133.

No dia seguinte, Humberto Delgado dirigiu-se a Vila do Conde e à Póvoa de Varzim, onde se repetiram as cenas de pancadaria sobre os que esperavam a chegada do candidato, numa tentativa de tentar dispersar a multidão, tendo este, como general, chamado o comandante da força policial à sua presença, ordenando que parasse de reprimir o povo. Era a primeira vez que se via um candidato às eleições a dar ordens à polícia sem temer represálias que dali poderiam advir. Mas, o certo é que o tenente acatou a determinação e durante o período de tempo que o general ali esteve não houve mais confrontos, retomados, embora, logo que o candidato se foi embora.

Depois do almoço, Humberto Delgado regressou ao Porto para apanhar o comboio para Lisboa, verificando-se novos confrontos, nas ruas da cidade, entre a polícia e a multidão que se tinha ido despedir do general. Várias participações da PSP referem a existência de feridos devido à repressão policial, chegando a receber tratamento hospitalar134. O jornal francês Le Parisien fala mesmo em “violento tumulto” entre os partidários de Delgado e a polícia “no momento em que o

132“Editorial”, Diário da Manhã, 17 de Maio de 1958, p. 1

133DELGADO, Iva e FIGUEIREDO, António (coord.), 1991, Memórias de Humberto Delgado, Lisboa, Publicações Dom Quixote, p.

105

134Arquivo Civil do Porto, M. 1195, Documentação avulsa, pasta com documentos relativos às eleições presidenciais 1958,

general tomou o comboio para Lisboa”, contando-se “mais de 60 feridos”135.

Estes episódios marcam, efectivamente, o início de uma série de confrontos que ocorrem um pouco por todo o país, em qualquer localidade onde o general se deslocasse, embora com maior incidência no Porto e em Lisboa136.

O Governo quis, depois, a todo o custo impedir a realização de uma manifestação popular na capital no regresso do general vindo do Norte. Daí que tivesse tomado precauções para o evitar. Contudo, foi impossível conter a multidão que no dia 16 de Maio se dirigiu para a estação de Santa Apolónia para saudar Humberto Delgado. Perante a massa de populares que se dirigiram para aquele local foram dadas ordens à polícia e à PIDE para formarem um cordão de segurança que mantivesse o povo afastado da estação, ao mesmo tempo que conduziam Delgado por uma rua secundária até à sua residência.

O general não sabia que milhares de pessoas estavam à sua espera no exterior da estação e seguiu as ordens da polícia. Mas o que aconteceu a seguir foi que a multidão, impaciente depois de horas à espera do general, resolveu ir para a sede de candidatura. Dirigiram-se em direcção ao Rossio, atravessaram o Terreiro do Paço e seguiram pela Rua Augusta. Quando já estavam a chegar, é no final desta rua, que aconteceu algo que, na altura, todos julgavam impensável: a polícia concentrada no Rossio começou a disparar sobre a multidão137. O pânico instalou-se e na fuga muitos populares tiveram de suportar a carga da cavalaria e dos polícias armados. Em reacção, os confrontos rapidamente alastraram por toda a baixa de Lisboa, com vários feridos e falando-se inclusivamente em alguns mortos138.

O regime pretendeu impedir a divulgação destes acontecimentos, mas tal era impossível, pois milhares de pessoas participaram no confronto e estes foram presenciados por jornalistas estrangeiros que fizeram chegar à redacção dos seus jornais relatos do que tinha acontecido. O The

Economist refere que “No Rossio, a praça que fica no coração de Lisboa, a polícia e a tropa

utilizaram as suas armas, inclusive armas automáticas, enquanto eram enviados tanques para o Terreiro do Paço, o grandioso fórum à beira do Tejo”139. Para minimizar o impacto destes acontecimentos, o Governo enviou um comunicado à imprensa confirmando a existência de tumultos e de alguns feridos, mas negando a existência de mortos140.

A intervenção pública seguinte de Delgado ocorreu passados apenas dois dias, num comício

135IAN/TT. PIDE/DGS – Procº. 1546/57 SR, 3º volume, «Le Parisien - Tumultos Eleitorais em Portugal», Maio de 1958, fl. 608. 136Sobre a violência no Porto durante a campanha eleitoral Cf: FERREIRA, Ana Sofia, 2008, Esperança Defraudada. O Porto nas

eleições presidenciais de 1958, Tese de mestrado em História Contemporânea apresentada à Faculdade de Letras da Universidade do

Porto, Porto

137SOARES, Mário, 1974, Portugal Amordaçado, Lisboa, Arcádia Editora: p. 210

138“Grandiosas manifestações pela Liberdade e a Democracia”, Avante! VI Série, nº 255, 2ª quinzena de Maio de 1958, p. 1 139IANTT /PIDE-DGS – Pr. nº 1546-57 SR, «The Economist, de 24 de Maio», 3º volume, fl. 38, trad.

realizado no ginásio do Liceu Camões. Depois dos incidentes anteriores, o Governo decidiu a endurecer as medidas de repressão policial. Santos Costa ficou encarregado de coordenar as polícias e a Guarda Nacional Republicana, tendo ordens para “empregar os efectivos militares quando necessário”141. Segundo Mário Soares, “o ambiente estava pesado de ameaças e provocações. O aparato policial era de tal ordem que, sinceramente, fazia medo aos mais audazes”142. De facto, Santos Costa tinha ordenado à polícia e à Guarda Nacional Republicana que cortassem os acessos ao Liceu, de modo a formar uma área de segurança. Além disso, dispusera forças de intervenção, cavalaria da Guarda Nacional Republicana, infantaria auto-transportada e carros de combate em vários pontos próximos do Liceu.

O clima era de enorme tensão, com o Liceu cercado, com forças policiais dentro do próprio recinto, e com as ruas da cidade a serem patrulhadas pelo exército. Mesmo neste cenário, em que a cidade parecia estar em pé de guerra, o general não se inibiu e denunciou a coação e a repressão do regime sobre a sua campanha eleitoral, sendo ovacionado pelo público presente que não se cansava de gritar pelo seu nome. Enquanto isto acontecia dentro do Liceu, na rua tinham começado os confrontos entre a polícia e uma multidão de oposicionistas que não tinham conseguido entrar. A polícia tentou dispersá-los utilizando a força, nomeadamente bastões e armas de fogo, e foram enviados carros blindados para intimidar a população. O Governo, desta vez, para minimizar ou silenciar os incidentes, proibiu a imprensa de fazer referência à existência de mortos e à utilização pela polícia de armas automáticas contra civis. Mas, era impossível, porém, esconder incidentes de tal gravidade e o Ministro do Interior viu-se obrigado a enviar um comunicado a referir que a polícia tinha disparado para o ar para dispersar os manifestantes, tendo sido atingidas, acidentalmente, quatro pessoas143.

As intenções do Governo com esta enorme demonstração de força e repressão seriam conter o apoio popular a Delgado através da inculcação de um clima de medo que intimidasse a população, mas o resultado foi o oposto: o apoio popular aumentou, ainda que Marcelo Caetano tenha afirmado que “Naquela tarde do comício no Liceu Camões foi frustrada, não me resta dúvida, uma perigosa acção revolucionária”144.

Por onde quer que Delgado se deslocasse uma multidão saudava-o efusivamente e registavam-se confrontos com a polícia que o queria impedir. O governo continuava a sublinhar que qualquer tentativa de manifestação seria severamente reprimida e aconselhava os portugueses a não participarem nos actos de apoio ao candidato da oposição. Mas o povo parecia perder o medo e

141CAETANO, Marcelo, 1977, Minhas memórias de Salazar, Lisboa, Editorial Verbo, p. 563 142SOARES, Mário, 1974, Portugal Amordaçado, Lisboa, Arcádia Editora, p. 231

143“Comunicado” do Ministério do Interior, O Primeiro de Janeiro, 19 de Maio de 1958, p. 8 144

enfrentava a polícia para apoiar Delgado.

No documento Luta Armada em Portugal (1970-1974) (páginas 84-87)