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Os efeitos do dissídio sino-soviético

No documento Luta Armada em Portugal (1970-1974) (páginas 52-55)

Capítulo I O Mundo em Mudança

7. Os efeitos do dissídio sino-soviético

O dissídio sino-soviético constituiu um acontecimento de consequências irreversíveis na evolução do movimento comunista internacional. Após a morte de Estaline, em 1953, sucedeu-lhe uma direcção partilhada entre Malenkov e Krutchev, que procedeu a um processo de desenuviamento interno e externo que culminaria, três anos depois, em 1956, no XX Congresso do PCUS, numa altura em que Krutchev se afirmava como principal dirigente, conseguindo afastar Malenkov e reconfigurar o equilíbrio no interior do Partido Soviético.

Criavam-se, desta forma, condições para a implementação de uma política reformista que assentava a nível externo no reforço da ideia de coexistência pacífica entre países e blocos com sistemas diferentes.

Assim, uma nova guerra deixava de ser inevitável e a coexistência pacífica seria o factor regulador das relações, conflitos e tensões a nível internacional, enquanto que, ao mesmo tempo, se desenvolvia a concepção de que em cada país a transição para o socialismo se podia realizar por via pacífica, designadamente por via eleitoral e parlamentar.

No fundo, admitia-se que a transição para o socialismo e a sua construção em cada país fosse definida no quadro das forças políticas progressistas desse mesmo país. Era aquilo a que Berlinguer, do PC Italiano, viria a designar de policentrismo, isto é, a autonomia dos Partidos Comunistas face a Moscovo e a pluralidade de caminhos para o socialismo.

Efectivamente, os diferentes documentos aprovados no XX Congresso do PC da União Soviética, sobretudo o Relatório Secreto de Krutshov, que denunciava os crimes de Estaline, provocaram uma grande comoção e desorientação nos Partidos Comunistas de todo o mundo.

Tanto mais assim, que nesse mesmo ano, no XX Congresso, na Polónia, as greves e manifestações por aumentos salariais ocorridas no complexo metalúrgico de Poznam foram violentamente reprimidas, mas o seu exemplo alastrou pelos países de “democracia popular”, questionando a política repressiva herdada do período estalinista.

No caso da Hungria, a multiplicação de grupos, círculos e associações exigindo eleições livres, o direito à greve, aumentos salariais ou a revisão dos acordos com a União Soviética evoluiu para manifestações e greves, que foram brutalmente reprimidas pela polícia secreta húngara, mas que se revelaria incapaz de suster o movimento que se estendeu pelo país, com a criação de organismos autónomos, que só a invasão brutal da Hungria pelos tanques da URSS e do Pacto de

Varsóvia asfixiou.

A reacção aos acontecimentos da Hungria no seio dos Partidos Comunistas, designadamente ocidentais, foi tumultuosa e a deriva ideológica torna-se evidente, dissipando as ilusões de desanuviamento e de policentrismo trazidas pelo XX Congresso do PCUS. Eram afinal estreitos os limites da desestalinização.

À “direita” e à “esquerda” irromperam divergências fundas no seio do movimento comunista internacional, desenhando um quadro de crise que seria duradouro e irreversível, e que tever a sua máxima expressão no dissídio sino-soviético.

Na sequência do XX Congresso do PCUS, Mao Tsé-Tung começou a afastar-se da União Soviética. As suas declarações na grande reunião dos Partidos Comunistas, realizada em Novembro de 1957, em Moscovo, assim como na visita que realizou no ano seguinte a Moscovo demarcavam- se das posições soviéticas no que se referia à readmissão da Liga dos Comunistas Jugoslavos no movimento comunista internacional, donde fora expulsa cerca de dez anos antes, pela heterodoxia do seu modelo de construção do socialismo. Do mesmo modo, questionava a posição do PCUS quanto à possibilidade de evitar um confronto mundial, que Mao admitia, contrariamente aos soviéticos. E, finalmente, criticava no PC da União Soviética e nos partidos que o seguiam o modo como encaravam a via pacífica para o socialismo, rebaixando e anulando o papel da violência revolucionária e privilegiando as modalidades reformistas de combate político75.

Ainda em 1958, quando Krutchov visitou a China, encontrou da parte de Mao resistência à instalação de submarinos e meios de comunicação soviéticos em território chinês. E, daí em diante, a relação sino-soviética não deixaria de se degradar, com manifestações “nacionalistas” por parte dos chineses e retaliações por parte dos soviéticos.

Em Julho de 1960, as posições chinesas estão cristalizadas e o PC da China refere-se já, ainda que internamente, a uma luta entre o oportunismo e o marxismo no seio do movimento comunista internacional. Os chineses afirmavam que os soviéticos em nome da coexistência

pacífica desaconselhavam todas as formas de luta de classes que pusessem em causa o “equilíbrio

mundial”, o que fez com que o PCUS deixasse de ser um partido revolucionário. Esta polémica acentuou-se com a publicação, em 1960, do documento Viva o Leninismo!, um conjunto de três textos editado pelas comemorações do 90º aniversário do nascimento de Lenine e parcialmente escrito por Mao Tsé-Tung.

O primeiro grande confronto destas duas linhas de pensamento político deu-se de modo claro na Conferência dos Partidos Comunistas, que decorreu em Moscovo, em Novembro- Dezembro de 1960, em que estiveram presentes 81 partidos comunistas, cujas delegações foram na

maioria dirigidas pelos secretários-gerais ou presidentes dos partidos. A delegação russa era dirigida, por exemplo, por Krutchev e a chinesa por Deng Xiaoping, presidente do PC da China. As divergências entre os dois partidos foram notórias com ataques de um lado e de outro durante toda a Conferência. No final, embora não tenham havido votações formais, a esmagadora maioria dos partidos apoiou os soviéticos e ao lado dos chineses ficaram os partidos asiáticos da sua esfera de influência, a Austrália, a Nova Zelândia e a Albânia A declaração final resultaria de uma dura negociação em que o PCUS aceitou não incluir uma condenação ao fraccionismo e o Partido Comunista da China aceitou incluir uma referência ao XX Congresso do PCUS76.

Em 1962, o PC da China alargou a sua crítica outros partidos comunistas para além dos soviéticos77, acelerando, dessa forma, o processo de cisão no movimento comunista internacional, quer dentro de cada partido, quer entre partidos.

O processo de cisão acentuou-se com a publicação pelo PC da China, em 14 de Junho de 1963, da Proposta sobre a Linha Geral do Movimento Comunista Internacional, a síntese sistematizada das divergências entre este partido e o PCUS. Neste documento, os chineses voltam a afirmar a ideia que a guerra é uma forma de fazer política, a contestar a tese da “coexistência pacífica” seguida pelo PCUS e a declarar “a necessidade da luta armada em todo o lado, mesmo nos países capitalistas ocidentais contra o imperialismo e contra a burguesia, tanto para a revolução nacional como para a transição do capitalismo para o socialismo”, afirmando, sem hesitações:

“O partido do proletariado e as massas revolucionárias devem dominar todas as formas de luta, inclusive a luta armada. Devem empregar a força armada revolucionária para derrotar a força armada anti-revolucionária quando o imperialismo e os seus lacaios recorram à repressão armada contra a revolução (…). O destacamento da vanguarda do proletariado só será invencível se dominar todas as formas de luta, pacífica e armada, aberta e secreta, legal e ilegal, parlamentar e de massas” 78.

A conclusão mais importante deste documento é que “o desenvolvimento e triunfo de uma revolução dependem da existência de um partido revolucionário do proletariado” que não existe, porque o que há é um “partido reformista burguês”, que obedece a países estrangeiros, que não segue os princípios marxistas-leninistas e que, consequentemente, não pode dirigir a luta do proletariado. O destinatário destas críticas era, naturalmente, o PCUS.

A partir desta altura, a ruptura entre o PCUS e o PC da China era inevitável e, este último, começou a publicar séries de artigos anti-soviéticos que reafirmam todas as áreas de ruptura teórica

76PEREIRA, Pacheco, 2008, O um dividiu-se em dois, Lisboa, Altheia Editores

77Nos documentos oficiais do PCC começaram a aparecer críticas aos partidos comunistas da Bulgária, Hungria,

Checoslováquia, Itália, França, Índia, RDA e EUA

78Partido Comunista da China, “Proposta sobre a Linha Geral do Movimento Comunista Internacional”, in PEREIRA,

e política entre os dois partidos.

A 26 de Outubro de 1963, os chineses afirmavam a inevitabilidade da divisão e começaram a criar uma rede maiosta internacional, utilizando uma vasta rede de propaganda para disseminar entre os velhos e os novos partidos comunistas a sua teoria política, em que o papel da violência revolucionária para derrubar regimes e destruir o sistema capitalista era incontornável.

Os novos partidos comunistas, designados de marxistas-leninistas para se diferenciarem dos partidos “pró-soviéticos”, iriam alicerçar a sua doutrina e a sua prática nestas teses, alinhando-se com o PC da China.

Em Portugal, o dissídio sino-soviético teve alguma repercussão dentro do Partido Comunista, tendo conduzido à saída de Francisco Martins Rodrigues, que defendia a luta armada como a forma de luta que devia ser adoptada no combate à ditadura. Francisco Martins Rodrigues iria formar, em 1964, juntamente com Rui d'Espiney e João Pulido Valente a primeira organização “marxista-leninista” portuguesa, a FAP/CMLP, que defendia abertamente a luta armada e, inclusivamente, elaborou planos de acções, apesar de não as conseguir concretizar, pois estes três dirigentes foram presos pela PIDE quando se encontravam clandestinamente em Portugal para realizar a primeira acção armada contra a ditadura.

Ao longo dos anos 60 e 70, várias organizações que se reivindicavam marxistas-leninistas foram surgindo em Portugal, influenciados pelo pensamento de Mao e pelo dissídio sino-soviético. Todas estas organizações defenderam o recurso à luta armada para combater a guerra colonial e a ditadura, tinham paióis de armamento, homens treinados e que tinham feito o serviço militar e esboços de acções. Apesar de nenhuma das organizações marxistas-leninistas portuguesas ter conseguido realizar acções armadas, não podemos deixar de destacar que o maoismo influenciou a sociedade portuguesa da época, sobretudo os sectores mais jovens, politizados e radicalizados.

No documento Luta Armada em Portugal (1970-1974) (páginas 52-55)